domingo, 23 de dezembro de 2018

PREFÁCIO À EDIÇÃO ESPANHOLA DO LIVRO MÃE DE DEUS E NOSSA MÃE


Por Javier Paredes*

Se Deus é o Senhor da História, como afirma João Paulo II, não pode permitir que sua Mãe desentoe do curso da História. Portanto suas aparições, além da finalidade religiosa, conterão também um sentido histórico, porque nem Deus nem a Virgem fazem coisas despropositadas ou vãs. Por esse motivo, quando inicia a Idade Contemporânea com a Revolução Francesa (1789), a Virgem Maria, como veremos, aparece de forma distinta de como fizera até então. Há dois séculos tem baixado do Céu em múltiplas ocasiões, nem tanto para comunicar algo a um vidente de modo particular, mas para utilizar esses videntes como intermediários a fim de transmitir mensagens a todos seus filhos.

Em algo tínhamos, nós seus filhos, estropiado, obrigando a Virgem a atuar de um modo diferente de como havia feito até então. Sem dúvida, não são poucas as vezes nas que os homens deram às costas a Deus ao longo dos séculos. Mas durante a Revolução Francesa, a Filha Primogênita da Igreja tornou prisioneiro o Papa Pio VI (1775-1799) e, sem respeitar sua dignidade nem seus 81 anos, foi levado de Roma a França, onde chegou em estado tão deplorável que faleceu em Valence-sur-Rhône em 29 de agosto de 1799. O clero da Igreja Constitucional da França, que havia jurado a cismática Constituição Civil do Clero, negou a Pio VI um enterro cristão. O prefeito da localidade escreveu no registro de óbitos: “Faleceu o cidadão Braschi, que exercia a função de pontífice”. E os jornais franceses deram a notícia com a manchete: “Pio VI e último”.

Mas a Igreja Católica é tão divina que segue em pé depois de mais de dois mil anos, apesar das tentativas de destruí-la nestes vinte séculos. E de modo algum nos surpreende o ódio contra os cristãos, se recordamos que o mesmo Jesus Cristo profetizou que o tanto que perseguiram a Ele o fariam a seus seguidores.


Os três tipos de perseguição contra os católicos

Na tipologia persecutória ou martirial[1] podem se distinguir três modelos diversos que, ainda que com diferente eficácia, buscam eliminar da face da terra a Esposa de Cristo. Cada um desses modelos não exclui necessariamente os outros dois. Ao longo do tempo vão aparecendo sucessivamente, concentrando-se os três no que se conhece como Idade Contemporânea, isto é, os anos que transcorrem da Revolução Francesa (1789) aos nossos dias. Pois bem, ao meu juízo, esta situação de máximo perigo aos cristãos em que hoje nos encontramos é a que anima a Virgem Maria, que é a Mãe de Deus e Nossa Mãe, a intervir, a cobrir-nos sob seu manto de um modo inusitado. Frente a quem se propôs a bloquear o futuro verdadeiro da Vida Eterna, e reduzir toda nossa existência à pura materialidade, proclamando o fim da Igreja Católica, a Virgem decide baixar do Céu a desmenti-lo e a manifestar-se como Nossa Esperança. Suas aparições são, em definitivo, sua luminosa resposta ao perigo que ameaça a Igreja, acossada agora pela tríplice tipologia persecutória.

Assim, no primeiro modelo os perseguidores ignoram que é a graça santificante o que mantém viva a Igreja e não o número maior ou menor de cristãos. Em consequência pensam que eliminando o maior número possível conseguirão acabar com a Igreja. Mas seu erro de princípio explica que obtenham um resultado contrário ao de seus objetivos, pois como já pôs de manifesto Tertuliano (160-225): “o sangue dos mártires é semente de cristãos”. Neste modelo encaixam tanto as ações dos imperadores romanos, como as perseguições comunistas do século XX[2].

O segundo tipo de martírio apareceu durante a Revolução Francesa. Nesta ocasião os perseguidores, alguns deles sacerdotes e bispos (porque, ainda que renegados, são sacerdotes in aeternum), sabendo perfeitamente que o catolicismo é uma religião sacramental, sabem que é através dos sacramentos que circula a graça que produz a santidade. O historiador francês Jean de Viguerie, em um excelente livro intitulado Cristianismo e Revolução, manifestou como as medidas revolucionárias tinham por objetivo apartar os fiéis dos sacramentos. E afirma em suas conclusões que esta perseguição sim que foi eficaz, e o demonstra medindo a prática sacramental na França antes da Revolução e depois de ser pacificado religiosamente o país após a concordata assinada por Napoleão em 1802: o declínio é considerável. Se a Igreja se manteve viva  neste país foi porque a revolução também utilizou o primeiro tipo de martírio, conseguindo que o sangue de milhares de católicos franceses se convertesse em semente de cristãos, e porque muitos outros viveram a religião católica na clandestinidade, se negando a participar nas cerimônias cismáticas oficiadas pelos padres juramentados[3].

A santidade de um mártir salta com facilidade o trâmite do juízo, mas ao resto dos franceses penso que terão sido perguntados no juízo particular se assistiram as missas clandestinas dos padres refratários ou preferiram participar das cerimônias blasfemas da Deusa Razão, para não sair do sistema. E por força há que reconhecer que os padres juramentados, que negaram a Pio VI um enterro cristão e transformaram a liturgia em um culto civil, prolongam sua influência até os dias de hoje, quando em defesa da espontaneidade, alguns pulam as normas litúrgicas e celebram uns rituais que com toda propriedade podem ser qualificados como cismáticos. 

Paradoxalmente, certos atos litúrgicos recomendados, como é o de comungar de joelhos na boca, às vezes há que fazê-los hoje de modo clandestino.

O terceiro tipo é o martírio da coerência. Agora já não importa tanto aos perseguidores se vamos ou deixamos de ir à missa. E mais, se a paróquia em que se celebra tem uns pedregulhos de uns quantos séculos; o sistema político pode fazer até com que se financie a manutenção e limpeza do templo. Portanto, em nosso juízo particular, aos cristãos do século XXI não será perguntado somente se assistimos missa aos domingos e festas de guarda, além disso será pedido contas também e especialmente do que fizemos com esta sociedade dessacralizada. Porque, diferentemente de outras épocas em que também havia obrigação de dar a face por Jesus Cristo na vida pública, na nossa é especialmente necessário pelo fato de nossas instituições civis estar mais necessitadas de Deus, e porque além disso o magistério nos recorda no Concílio Vaticano II que o próprio dos leigos é santificar as estruturas temporais. E a tarefa não é simples, já que a coerência é incompatível com a esquizofrenia moral, que farisaicamente pode aprovar o financiamento de templos, colégios católicos e ONGs bem intencionadas, em troca de que não saiamos das sacristias, para impedir assim que cristianizemos os parlamentos, a mídia, as universidades, as fábricas, as diversões, os hospitais...

O dramático deste terceiro modelo de perseguição é que os verdugos não se encontram fora da Igreja, pois a coerência dos católicos que puseram na santidade o objetivo de suas vidas põe em evidência não os ateus, nem os homens sem fé, nem os “vermelhos”, nem os maçons, mas todos aqueles católicos tíbios e esquizofrênicos que preferem o juízo dos homens ao de Deus. Esta perseguição que já começou é tão grave e tão importante na história da Humanidade porque no dia que se generalize será o último e claro sinal de que entramos nos últimos tempos anunciados no Apocalipse, que precedem ao fim do mundo, sem que saibamos o tempo que transcorrerá entre os últimos tempos e o fim do mundo.

Os trovões e os relâmpagos ficam reservados para o fim do mundo, que – como disse – virá precedido dos últimos tempos nos que terá lugar esta terceira perseguição, já iniciada, em um ambiente tão calmo e normal, que deste momento em diante haverá de estar mui apegado à Santíssima Virgem e à Caridade com os irmãos, porque do contrário deslizaremos sem nos dar conta e passaremos a engrossar as fileiras dos verdugos. Ademais, os que se mantiverem fiéis à verdade serão tachados de radicais, fanáticos e fundamentalistas, como já ocorre atualmente, mesmo que ainda não se apresente dita acusação com a virulência e animosidade com que chegará no futuro[4].

O modernismo

Nas origens desta terceira perseguição, que converte a ajuda da Virgem como o único recurso, se encontra o modernismo, que em resumo consiste em edificar a Igreja utilizando como cimento o pecado contra o Espírito Santo, ao introduzir o conceito de autonomia do homem no âmbito religioso. A proclamação da autonomia do homem, reivindicada como um direito fundamental, exigia necessariamente a negação da concepção do homem como criatura, dependente do Criador. Porque segundo o peculiar conceito da Criação que têm os deístas do século XVIII, havia que arrancar de Deus seu clássico atributo de autêntico Criador, para conceder-lhe quando muito o ofício de chefe de manutenção de um mundo de que não zela como deveria. A concepção de homem como um ser autônomo que pode conferir a si mesmo suas próprias leis foi a ideia nutrícia da ideologia liberal progressista, negando-lhe assim toda possibilidade de transcendência. E ante semelhante proposta logicamente Pio IX (1846-1878) saiu ao passo condenando o liberalismo.

As distintas tendências modernistas podem ser definidas como um novo intento gnóstico que trata de substituir os fundamentos doutrinais sobre os que o seu Fundador edificou a Igreja, em um afã de deslocar a fé e a Revelação como base do fato religioso e colocar em seu lugar os critérios do racionalismo e da ciência positivista. Em suma, o modernismo subordina a fé ao que os modernistas denominam “formulações dos tempos modernos”, que por ser opostas à fé acabam modificando o depósito legado por Cristo.

O círculo dos modernistas foi muito reduzido, realmente eram muito poucos e estavam bem localizados. Todos eles eram clérigos entre os que se destacavam o sacerdote Alfred Fermin Loisy (1857-1940) na França, o jesuíta George Tyrrel (1861-1909) na Inglaterra, o professor do seminário romano Ernesto Buonaiuti (1881-1946) e o sacerdote italiano Romolo Murri (1870-1944). Não obstante serem tão poucas as cabeças mais destacadas, ainda assim influíram sob os católicos, e isso em primeiro lugar por sua condição de clérigos de quem dependem muitas almas e, além disso, porque diferentemente dos hereges, acostumados a abandonar a Igreja, o próprio dos seguidores do modernismo é permanecer dentro dela, pois o modernista considera ser sua missão reformá-la de acordo com seu próprio pensamento.

Assim, por exemplo, o modernista em sua concepção dialética concebe – como tese e antítese – a coexistência de uma igreja institucional e outra carismática, a primeira tradicional e a segunda progressista, de cujo enfrentamento surge o avanço; naturalmente em dita concepção o modernista é o representante dos carismas e do progressismo. Por isso é que para eles não só não seria compatível, como inclusive necessário realizar uma crítica aos alicerces mesmos da Igreja e ao mesmo tempo conservar-se em seu seio. Por isso a estratégia modernista para evitar uma excomunhão é não utilizar enfrentamentos diretos, nem fazer afirmações taxativas, ou esconder sua personalidade assinando suas publicações com pseudônimos, como o de Hilaire Bourdon que foi o utilizado por Tyrrel. Como estrategista, ninguém tão habilidoso como Buonaiuti que as manipulou para manter-se dentro da Igreja até 1926, apesar de excomungado em duas ocasiões nos anos 1921 e 24.

Os modernistas não articularam um corpo orgânico doutrinal e preferiram seguir a tática de expor suas ideias de um modo difuso, utilizando o recurso das meias verdades. Tudo isso além de dificultar a atuação das autoridades eclesiásticas em conseguir estabelecer a divisória entre as publicações de conteúdo errôneo, oferecia aos modernistas a possibilidade de não tomar conhecimento quando chegasse a condenação. Apesar de tudo, a claridade e coerência de Pio X (1903-1914) foi meridiana: a fé da Igreja não tem necessidade de adaptar-se a nada, devido à plenitude dos tempos já ter se produzido com a revelação de Jesus Cristo, Deus feito homem. Partindo desse princípio básico que salvaguardava o depósito legado por Cristo, Pio X denunciou os objetivos dos modernistas mediante o decreto Lamentabili (3-VII-1907), expôs de um modo organizado a doutrina do modernismo e a condenou na encíclica Pascendi (8-IX-1907) e estabeleceu toda uma série de medidas disciplinares em vários documentos, o mais importante dos quais foi o motu próprio Sacrorum Antistitum (1-X-1910).

O decreto Lamentabili condena 65 proposições modernistas, algumas das quais são: a fé proposta pela Igreja contradiz a história; a Sagrada Escritura não tem origem divina e deve ser interpretada como um documento humano; a Ressurreição de Jesus não foi um fato histórico, mas uma elaboração posterior da consciência cristã; os sacramentos do Batismo e da Penitência não têm origem divina; não há verdade imutável e esta evolui com o homem; a Igreja, por se aderir a verdades imutáveis, não pode conciliar-se com o progresso. E concluía, literalmente, o decreto com a 65ª proposição: O catolicismo atual não pode conciliar-se com a verdadeira ciência se não se transforma em um cristianismo não dogmático, isto é, em protestantismo amplo e liberal.

Na encíclica Pascendi, além de indicar os remédios contra a crise modernista, Pio X retrata três figuras: a do filósofo modernista, a do crente modernista e a do teólogo modernista. O primeiro, por fundamentar suas ideias no agnosticismo e reduzir-se ao fenomênico, acaba por afirmar o princípio de imanência vital, segundo o qual Deus é um produto da consciência que o sentimento de cada um engendra; deste modo a consciência religiosa, ou seja, o “sentimento” religioso de cada um é erigido como autoridade suprema, acima – por suposto – do magistério e da autoridade da Igreja. O segundo deve limitar-se a elaborar em seu interior a experiência do divino, e por isso, as crenças se identificam com as experiências singulares. Ao último, dizia o Papa que, por partir do princípio de que Deus é imanente ao homem e que em consequência a autoridade religiosa não é mais que a soma de todas as experiências individuais, advoga que a autoridade eclesiástica deve reger-se por critérios democráticos. Este radicalismo religioso, imanentista, individualista e subjetivista dos modernistas, que esvaziava completamente de sentido a Igreja, era condenado pelo Sumo Pontífice, por ser o modernismo – segundo se lê na Pascendi – o conjunto de todas as heresias com capacidade para destruir não só a religião católica, como qualquer sentido religioso, devido os pressupostos do modernismo desembocarem, em definitivo, no ateísmo.

Pois bem, que Pio X fizesse um diagnóstico certeiro da doença que alquebrava a Igreja de modo algum pode interpretar-se como que durante seu pontificado já se pudesse dar alta ao paciente. Certamente que a estratégia dos primeiros modernistas não foi muito eficaz para atrair um grande número de seguidores. Propor que se devesse viver à margem do magistério e ser autônomo para que cada um pudesse decidir as verdades de fé, que podiam ser mudadas para estar em consonância com a ciência moderna, não teve suficiente impacto social a princípios do século XX. Mas após décadas de letargia, que alguns interpretaram equivocadamente como sua morte definitiva, despertaram os modernistas tendo um êxito sem precedentes, após Paulo VI (1963-1978) publicar a Humanae vitae (25-VII-1968); a partir daí sim que existiu e continua existindo muitos católicos partidários de reivindicar sua autonomia, para que, à margem da moral da Igreja Católica, cada um possa decidir o que está bem e o que está mal no leito conjugal. A questão é que o depósito da fé e da moral é indivisível e se começa-se a rejeitar a Humanae vitae acaba-se por virar as costas a todo o magistério da Igreja.

Não foi pouco o mérito de Pio X ao descobrir o tumor. Faltava aos sucessivos [Papas] pôr os remédios para curá-lo e evitar a metástase, porque os modernistas não se renderam ao longo do século XX, ao ponto de Paulo VI ter de reconhecer publicamente a fumaça de Satanás metida dentro da Igreja. E nestas estamos, esperançosos e pendentes de que a Mãe de Deus e Nossa Mãe abra portas e janelas para ventilar nossos recintos e evitar que nos asfixie a fumaça modernista de Satanás.

Madri, 28 de março de 2013, festa de Quinta-feira Santa

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* Titular de História Contemporânea da Universidade de Alcalá.


[1] Na tipologia persecutória ou martirial: nos tipos de perseguição ou martírio dados aos cristãos.
[2] Ao que podemos acrescentar a do Islã na atualidade.

[3] A este propósito e para melhor entender alguns termos utilizados com relação à revolução francesa ver: “Orlando Fedeli - Napoleão e a Revolução Francesa”, em: <https://www.youtube.com/watch?v=BxQtBGKDapo&t=295s>. Acesso em: 21 dez. 2018.

[4] Sobre estes dois últimos parágrafos, reflexo do momento presente, vale a pena conferir o: SEGUNDO SERMÃO: Das enganosas maneiras que terá o perverso e maldito filho da perdição, o Anticristo (RAVASI, Javier Olivera. Sermões de São Vicente Ferrer: o Anticristo e o Juízo Final. Martyria, 2018. pp. 46-68).

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