O primeiro que empreendeu
uma reforma da liturgia, e isto em razão de considerações teológicas, foi com
certeza Martinho Lutero. Negava o
caráter sacrifical da missa e por isto estava escandalizado por certas partes
da missa, particularmente pelas orações sacrificais do cânon.
Expôs suas idéias de reforma
em seu “Formula missae” de 1523 e também em seu “Deutsche Messe und
Ordnung des Gottesdienstes” (Missa alemã ou ordenamento do culto divino) de
1526.
Lutero foi suficientemente
ágil para não deixar que suas inovações litúrgicas pudessem ser
claramente percebidas. Sabia
a importância das formas e os costumes tradicionais enraizados no povo. Era necessário
que seus partidários não se percebessem demasiado das diferenças com a missa
que tinha existido até então. Além disso, Lutero era adepto dos antigos ritos e
cantos. Só modificou o que, segundo seu critério, era um abuso ou estava em
contradição com sua concepção teológica.
Quando por exemplo o
reformador e seus partidários começaram a suprimir o cânon, ninguém se deu conta,
pois, como se sabe, o cânon se dizia sempre em voz baixa. Prudentemente Lutero
não suprimiu em seguida a elevação da hóstia e do cálice: seria a primeira que
os fiéis iriam perceber. Continuou, como anteriormente, empregando o latim e o
canto gregoriano, ao menos nas grandes igrejas, quanto ao canto em alemão, já
era muito conhecido antes da Reforma e, em muitas ocasiões, cantado no decorrer
da missa. Nada parecia constituir uma coisa nova.
A nova reorganização da
liturgia, sobretudo as profundas modificações do rito da missa, que tiveram lugar
sob o pontificado de Paulo VI e que com o tempo chegaram a ser obrigatórias;
foram ainda mais radicais que a
própria reforma litúrgica de Lutero, pelo menos no concernente ao rito
externo, e não levaram em conta o sentimento popular. Em todo caso certamente a
nova teologia (liberal) é a que apadrinhou a reforma. É particularmente claro
para a coleção de cânticos “Gotteslob”. De modo algum é necessário
chegar a afirmar, como sucede às vezes, que por razão do novo “ordo”, a
missa seria em si mesma inválida. Mas o número de missas verdadeiramente
inválidas poderia muito bem ter consideravelmente aumentado a partir da reforma
litúrgica.
Nem as prementes censuras de
Cardeais de prestígio, que tinham emitido objeções dogmáticas a
respeito do novo rito da
missa, nem as insistentes súplicas provenientes de todas as partes do mundo,
impediram que Paulo VI introduzisse imperativamente
o novo missal.
Depois do Concílio, as
missas são mais atraentes para os fiéis? A nova liturgia contribuiu para o
aumento da fé e da piedade?
Só parece que foi assim, mas pouco depois da introdução em 1969 do novo “ordo
missae”, nossas igrejas se esvaziavam mais e mais e diminuía o número de
nossos sacerdotes e religiosos em proporções preocupantes. São muitas as
possíveis causas. Não obstante, a reforma litúrgica não foi capaz de parar esta
evolução negativa e provavelmente contribuiu não pouco para fomentá-la.
Algumas rupturas com o rito romano
O “ordo missae”
publicado em 1965, pouco depois do Concílio, e ao qual se fez referência
anteriormente, mostrava
claramente que num princípio não se tinha pensado numa reforma fundamental do “ordo
missae”. Como expressamente se faz notar em sua introdução, tiveram em
conta as exigências da Constituição litúrgica, de que o antigo rito permanecera
intacto exceto por algumas alterações e supressões secundárias (como a do Salmo
42, nas orações ao pé do altar e o último evangelho).
Não se fazem imprimir uns
missais destinados a ter somente quatro anos de validade. Por conseguinte o
novo “ordo missae” de 1965 era, evidentemente, o previsto para os
novos missais, revisados segundo a “Instructio”.
Os ritos de introdução,
dotados – sobretudo na versão alemã do missal – de numerosas “prescrições de
possíveis opções” abrem uma porta enorme ao arbítrio do sacerdote celebrante.
Que grande palavreado os fiéis devem suportar desde o começo da missa! Tal como
sucede mais de uma vez nas comunidades protestantes.
Quando anteriormente o padre
queria instruir a assembleia com um comentário de introdução à
missa – o que era e é uma
boa coisa – podia fazê-lo antes do começo da missa. Assim a missa não se interrompia
com uma segunda “homilia”29. Damo-nos conta desta ruptura especialmente agora,
durante a missa solene cantada em latim, quando depois do canto inicial,
segue-se uma saudação e uma introdução, frequentemente muito longa, à que se
segue o “ato penitencial”.
Recordar com frequência aos
fiéis a necessidade do espírito de penitência, objeto do “ato penitencial”, é
certamente importante. Mas podemos nos perguntar se foi bom tê-lo colocado em
um lugar fixo dentro da missa e, além disso, se este “reconheçamos que somos
pecadores” não se converterá com o tempo numa simples fórmula. É necessário que
a importância da “confissão sacramental” não se veja diminuída a nenhum preço.
Desgraçadamente, o texto da
oração universal depois do evangelho não foi fixado no novo missal, como foi
nas diferentes liturgias da Igreja do Oriente e nos ritos galicano e ambrosiano.
Os textos destes ritos poderiam ter servido de modelo para sua formulação. Em
nossos dias assistimos aos piores desvios na livre elaboração dessa oração. Nem
sequer os formulários apresentados aos fiéis num livreto “ad hoc” se
podem utilizar. Sim, é novo e de certa forma contrário à tradição litúrgica
pronunciar a oração universal não no altar, mas na sede. Para recitar uma
oração longa, como por exemplo as grandes orações da Sexta-feira Santa, o
celebrante subia ao altar a
fim de se encontrar, como os fiéis, voltado para o Oriente para rezar.
A parte seguinte da missa no
novo missal se intitula "liturgia eucarística" (“liturgia
eucharistica”). Contentemo-nos aqui, onde só é questão de rito, em indicar
que a esta denominação falta toda alusão ao fato de que a missa é um
sacrifício.
A modificação que Paulo VI
ordenou das palavras da consagração e da frase que segue, empregadas na
liturgia romana durante mais de 1.500 anos, não estava prevista pelo Concílio e
carece de utilidade para a pastoral. A tradução de “pro mu1tis” por “por
todos”, que se refere a modernas concepções teológicas, não se encontra em
nenhum texto litúrgico antigo. É no mínimo duvidosa e por isso mesmo acabou escandalizando.
A oração “Libera” que
segue, também foi modificada. Não só se omitiu a menção à Mãe de Deus e a outros
santos, mas foi-lhe dado um novo final; a proclamação, pelo povo da doxologia:
“vosso é o reino...”.
É verdade que os ritos
orientais conhecem esta doxologia, ainda que numa forma (trinitária) mais desenvolvida;
mas ela serve ao celebrante para concluir a oração do Senhor dita pelo diácono
ou pelo coro.
No novo “ordo” da
missa, esta doxologia recitada pelo povo no contexto em que se diz, é uma clara
cópia do culto protestante.
Quase se elaboraram formas
do “ordo missae” diferentes em cada paróquia; das quais algumas se distanciam
consideravelmente do que o missal oficial apresenta como norma, e sem que as
autoridades da Igreja intervenham.
O que se ganhou, com a nova
liturgia, em favor da “participação ativa” (“Actuosa participatio”) dos
fiéis, tão desejada pelo Concílio? Nossa resposta não pode ser outra: nada que
não se pudesse obter sem modificar substancialmente o rito existente até hoje.
A proclamação das leituras em língua vernácula – e eventualmente, como temos
dito, perícopes suplementares opcionais para os domingos e uma leitura contínua
para os dias da semana –, a reintrodução da oração universal antes do
ofertório, a possibilidade de outros cantos ao lado dos gregorianos, tudo isto
teria sido suficiente para incitar os fiéis a participar ativamente na missa.
Desgraçadamente não se
contentaram com algumas reformas prudentes e necessárias;
negligenciaram a
recomendação do Concílio, que no artigo 23 de sua Constituição sobre a liturgia
diz: “não se introduzam inovações, a não ser que uma utilidade autêntica e
certa da Igreja o exija”. Quiseram mais: quiseram mostrar-se abertos
à nova teologia tão equívoca, abertos ao mundo de hoje. Não haviam transcorrido
nem cinco anos após o Concílio, quando um novo “ordo missae” apareceu
pontualmente e se submeteu à aprovação do papa Paulo VI.
De fato, grande número de
nossos velhos sacerdotes contribuiu para que se instalasse o novo rito muito
rapidamente e sem maiores dificuldades. Não quiseram passar por antiquados e retrógrados
aos olhos dos sacerdotes jovens. Por outro lado a nova liturgia em língua
vernácula, respondia aos desejos de pastores de almas que já tinham
“organizado” missas deste tipo, ainda que isto se tivesse feito por “vias
paralelas”.
Este confronto de forças no
seio da Cúria Romana não veio à luz no momento, nem sequer para
pessoas iniciadas. Sem
dúvida a investigação litúrgica pode pôr em evidência as verdadeiras fontes do
novo “ordo missae”. Estas não estão enraizadas na tradição da Igreja
primitiva, como se poderia crer e como normalmente se ouve dizer, nem
sequer na tradição que temos em comum com a Igreja do Oriente.
O uso da palavra
“sacrifício” é absoluta e voluntariamente evitado no texto da “Institutio
generalis Missalis romani”. Só aparece de forma verdadeiramente acessória,
por exemplo, no número 2 (“sacrificium eucharisticum”). Pelo contrário,
a Constituição sobre a Sagrada liturgia fala claramente sempre de “sacrificium
missae” (tanto nos números 49 como no 55) enquanto a “Institutio generalis”
só fala de “eucharistia” (números 282 e 285) ou “celebratio
eucharistica” (números 5 e 285), o que corresponde exatamente ao
termo “celebração eucarística”.
Visivelmente a definição da
missa que se tinha dado na primeira versão do novo “ordo missae” foi
tirada da teologia da ceia
protestante: “A ceia do Senhor ou missa é a sináxis sagrada ou
assembléia do povo de Deus, reunido sob a presidência do sacerdote, para
celebrar o memorial do Senhor”. Que esta definição se encontre em um documento
que leva a assinatura de Paulo VI e que em seguida tivesse que corrigir esta
definição, mostra de forma brutal quanta confusão existe hoje na Igreja.
A CELEBRAÇÃO “DE FRENTE
PARA O POVO”
Em suas “Instruções para a
adaptação das igrejas ao espírito da liturgia romana” de 1949, Th. Klauser
adianta que “certos sinais deixam entrever que, na Igreja do futuro, o
sacerdote se colocará como antes, detrás do altar, e celebrará com o rosto
voltado para o povo, como se faz ainda em certas basílicas romanas; o desejo,
que se percebe por todas as partes, de ver mais claramente expressada a
comunidade da mesa eucarística, parece exigir esta solução”.
Isto que Klauser apresentava
então como algo desejável se converteu, passado o tempo, em norma em quase
todas as partes. Pensa-se ter feito reviver um costume da Igreja primitiva.
Entretanto, como vamos ver,
pode-se provar com toda a certeza que jamais existiu, nem na Igreja do
Oriente, nem na do Ocidente, uma celebração “versus populum”, mas que
unicamente todos se voltavam para o Oriente para orar.
Foi Martinho Lutero o
primeiro a pedir que o sacerdote no altar se voltasse para o povo. Mas pelo que
se sabe, nem ele mesmo obedeceu a esta exigência, e somente algumas das Igrejas
protestantes o adotaram, sobretudo entre os reformados. Só recentemente a
celebração “versus populum” se converteu num costume quase geral na
Igreja Romana, enquanto que as Igrejas Orientais, e com freqüência também as comunidades
protestantes, continuam com a prática existente até agora.
Na Igreja Oriental, o
costume de celebrar “versus populum” nunca existiu, nem existe uma
palavra para designá-la. O espaço diante do altar suscita o máximo respeito. Só
o sacerdote (e ao seu lado o diácono) tem direito de estar ali. Detrás da
iconostase só o sacerdote tem o direito de passar diante do altar. É de notar que,
na concelebração, que, como é sabido, goza no Oriente de uma grande tradição, o
celebrante principal normalmente dá as costas à assembléia, enquanto que os
sacerdotes concelebrantes se colocam diante do altar e à sua esquerda. Nunca se
colocam detrás do altar (o lado do Oriente). Não é necessário precisar que se trata
quase sempre de uma concelebração “cerimonial”, tradicional e muito corrente no
Oriente até hoje, no transcurso da qual os sacerdotes que rodeiam o celebrante
principal (o bispo), não pronunciam com este as
palavras da consagração. Por
isto e no sentido estrito da palavra, há um só celebrante.
O costume de celebrar de
frente par o povo apareceu entre nós pelos anos vinte, quando se começou a
celebrar a eucaristia no seio de grupos pequenos. O movimento litúrgico e,
antes dele, Pius Parsch, propagaram este costume. Acreditavam reviver assim uma
tradição da Igreja primitiva, pois tinham observado que, em algumas basílicas
romanas, o altar também estava voltado “versus populum”. Porém não se
deram conta de que nestas basílicas, contrariamente a outras igrejas, a abside
não estava no Oriente, mas a entrada.
Na Igreja primitiva e na
Idade Média, o que determinava a posição com relação ao altar era poder voltar-se
para o Oriente durante a oração. Por isso Santo Agostinho declara: “Quando nos
levantamos para orar, nos voltamos para o Oriente, ali de onde sol se levanta.
Não como se Deus estivesse ali e tivesse abandonado as outras regiões do
universo, (...) mas com o objetivo de exortar o espírito a se voltar para uma natureza
superior, a saber, Deus”.
Mesmo porém no caso
hipotético de que nas antigas basílicas romanas os fiéis não estivessem
voltados para a entrada
durante a oração sacrifical, de modo
algum teria existido um cara a cara do sacerdote e do povo, já que o
altar estava escondido por cortinas durante a oração eucarística. E estas não
eram abertas de novo, segundo
testemunho expresso de São João Crisóstomo, até a litania diaconal.
Assim, nas basílicas onde a
entrada, e não a abside, se encontrava ao leste, os fiéis não tinham o
rosto voltado para o altar.
Tampouco lhe davam as costas, o que, segundo a concepção antiga, seria impossível,
dada a santidade do altar. Como os fiéis estavam nas naves laterais, tinham o
altar à sua direita ou à sua esquerda. Formavam, aberto ao Oriente, um
semicírculo, em cuja parte mais alta se situava o celebrante e seus
assistentes.
E o que acontecia nas
igrejas onde a abside estava ao oriente? Isso dependia do lugar onde se
situavam os assistentes à
missa. Se rodeavam o altar, situado na abside, formando um semicírculo, o
semicírculo se abria para o Oriente. O liturgo34 simplesmente não se colocava
na parte alta do semicírculo, mas em seu centro. Destacava-se assim mais
visivelmente dos outros participantes.
Por outro lado, na idade
média, o povo se colocava quase sempre na nave central da igreja, servindo as
laterais para as procissões. Esta disposição detrás do sacerdote celebrante
comportava um elemento dinâmico, como se o povo de Deus avançasse em cortejo
rumo à terra prometida. A orientação indicava a meta do cortejo: o Paraíso
perdido que se buscava para o leste (cf. Gn 11,8). O celebrante e seus
assistentes formavam a cabeça do cortejo.
O semicírculo aberto, que
foi a primeira disposição para a oração dos assistentes à missa,
manifestava, ao contrário da
dinâmica da procissão, um princípio estático: a espera do Senhor que subiu ao
céu na direção do Oriente (cf. Sl 67,34) e que regressará (cf. At 1,11). O
semicírculo aberto estava pensado para isto: quando se espera a uma
personalidade importante, se abrem as filas e se forma assim um semicírculo
para acolher em seu centro aquele que se espera.
São João Damasceno expressa
a mesma idéia em seu “De fide orthodoxa”, IV,12: “Quando ele subiu
aos céus, foi elevado para o oriente, e dessa forma os discípulos o adoraram, e
assim ele retornará, do mesmo modo que eles o viram subir ao céu (cf. At 1,11),
como o Senhor mesmo disse: ‘Porque, como o relâmpago parte do oriente e ilumina
até o ocidente, assim será a volta do Filho do Homem’ (Mt 24,27).
Esperando por ele,
prostramo-nos voltados para o Oriente. Isto é uma tradição não escrita,
derivada dos Apóstolos.
É verdade que o homem
moderno, como diz Nussbaum, quase não entende que se tenha que voltar para o
Oriente para rezar. O sol nascente não tem para nós a mesma força simbólica que
tinha para o homem da antigüidade. Em troca, é diferente quando se trata de
tomar uma mesma orientação pelo sacerdote e o povo quando rezam a Deus. Que
todos os fiéis devam estar, segundo as palavras de Santo Agostinho citadas
anteriormente, “conversi ad Dominum”, é evidentemente uma exigência atemporal e tem, ainda hoje, um
sentido.
O sacerdote olhando para o
povo praticamente já não aparece como
representante da comunidade, mas apenas como um ator que, em todo caso na parte
central da Missa, representa o papel de Deus. Todavia se nessa nova maneira o
sacerdote se converte num ator, encarregado de interpretar Cristo em seu
cenário, então Cristo e o sacerdote parecem, por causa desta restituição
teatral da ceia, identificar-se um com o outro de maneira um tanto inaceitável.
até então o sacerdote oferecia o sacrifício como intermediário anônimo,
como cabeça da comunidade, voltado para Deus e não para o povo, em nome de
todos e com todos; as orações que recitava lhes eram prescritas... hoje em dia
este sacerdote vem ao nosso encontro como um homem, com suas particularidades
humanas, seu estilo de vida pessoal e seu olhar voltado para nós.
Precisamente estas mudanças
na posição do sacerdote no altar durante a missa, têm um sentido
simbólico e sociológico
verdadeiro. Quando o sacerdote ora e sacrifica tem, como os fiéis, os olhos
postos em Deus; e quando proclama a palavra de Deus ou distribui a Eucaristia
se volta para o povo. Este principio até agora tinha sido observado
constantemente; mas, sobretudo por razões teológicas, sobreveio uma mudança na
Igreja romana e as consequências são visíveis e nada agradáveis.
A reforma da liturgia romana - Mosenhor Klauss Gamber.
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