“A justiça divina pesa em balanças diferentes os
pecados dos homens dissimulados e os dos sinceros.”
(Dante Alighieri)
Jesus na discussão com os fariseus chama hipócritas aos que sabem
perceber as coisas mais ordinárias e não se atentam às fundamentais, que não
esperam o filho crescer para proporcionar-lhe algum benefício material (p. ex.:
uma vacina ou uma conta bancária) ao tempo em que negligenciam o espiritual (p.
ex.: os Sacramentos, dos quais o Batismo é a porta de entrada[1]).
Tais pessoas farão o mesmo com as verdades de fé definidas pela Igreja, que
quanto mais desconhecem mais atacam. Tal é o caso do Purgatório.
Como o próprio nome diz, não por acaso, o Purgatório (do latim purgare)
é o lugar destinado por Deus para purgar (extirpar, limpar, purificar) uma
alma.
Do que, como, por que e para que?
Vimos no capítulo anterior que há duas espécies de pecado, o
original e os atuais.
Ambos fazem com que nossa alma seja manchada (maculada), sendo que o primeiro
só se extirpa (purga) pelo Batismo. Os segundos, dependendo da gravidade, ou
por uma confissão sincera e contrita feita diretamente a Deus (para os menos
graves, chamados veniais), ou somente através da Confissão sacramental (para os
mais graves, chamados mortais)[3], que o
sacerdote, com a autoridade conferida pela Igreja e “em nome do Pai, do Filho e
do Espírito Santo”,
retém
(absolve)[4]. Ocorre que
mesmo perdoado o pecador, apagado seu pecado diante de Deus, a mancha continua
na alma carecendo ser limpa. Qual o melhor “produto” para esta limpeza? O
sofrimento resignado e paciente, aquele em que sofremos não como masoquistas,
mas penitentes, sabendo que o merecemos pelos pecados passados, presentes e
futuros. Caso não soframos o bastante ou não soframos como deveríamos – isto é
Deus quem o decide –, as manchas acompanharão o espírito quando este se separar
do corpo. Como no céu nada de impuro pode entrar, há que ter um lugar onde se
possa purificá-lo. E por quê? por uma simples questão de justiça, o que será
explicado a seguir.
Direto ao assunto
O único pecado para o qual não há perdão é aquele em que não se
busca sincera e honestamente o perdão divino. Quando atribuímos a Deus as obras
do demônio e vice-versa se torna impossível reconhecer que estamos em pecado,
uma vez que passamos a considerar o certo como errado e vice-versa, sendo por
isso levados ao não arrependimento. Como consequência nos afastaremos cada vez
mais do Criador, acabando por nos encontrar tão sujos, frios e resistentes (em
estado de pecado mortal) que salvo um favor especial da misericórdia divina,
não escaparemos ao “fogo e ranger de dentes”. É o pecado contra o Espírito
Santo.
Aos que recebem a graça do arrependimento sincero, ainda que no
último minuto se salvará “... mas como que pelo fogo” (1 Cor III, 13ss), ou
seja, purificados após a morte, pois, como já foi dito, no céu nada de impuro
pode entrar. Sabemos que alguém mui provavelmente aqui fará eco a Lutero e dirá:
“Basta a fé em Jesus Cristo, basta aceitar Jesus!”, ao que a Igreja
responde: e o que é aceitar Jesus senão fazer o que Ele mandou que se fizesse,
viver como Ele quis que se vivesse e pertencer a Sua (única) Igreja como quis
que pertencêssemos? Isto é aceitar Jesus! O resto será “... Senhor, Senhor...”; e
para estes conhecemos a resposta do Justo Juiz.
Exemplifiquemos, supondo que dois irmãos gêmeos morram juntos caindo
com seu automóvel em um precipício. Suponhamos que os dois, apesar de irmãos,
tivessem tido vidas completamente distintas, um buscando honesta e sinceramente
a Deus, o outro, ao contrário, vivendo de “sexo, drogas e rock’n roll”. Ao
rumar em direção ao abismo alguns segundos lhes sobram para desejar sincera e intensamente
o perdão, que certamente será concedido. Mas como conclusão do ato misericordioso
quem ousará supor que ele se dê desvinculado da justiça e os dois acabem por ir
ao mesmo lugar ao mesmo tempo? Supor que seja conferida a ambos a mesma simultânea
recompensa? Há quem pense que assim se dá, sem se dar conta de que pensar desta
forma é, na melhor das hipóteses, imoral.
A doutrina protestante nega a justiça divina ao negar que haja um
lugar de onde “... não sairás de lá antes de ter pago o último centavo” (Mt V,
26). Os sofismas e falsos argumentos, entretanto, não se sustentam diante de
uma reflexão sensata da questão, pois se Deus recompensa de forma distinta a quem
faz diferentes atos de bondade, uma vez que seremos julgados segundo as nossas
obras[5],
como não pensar o mesmo em relação aos pecados? Aqui não adianta apelar ao “bom
ladrão” – que ao que tudo indica foi direto aos céus tendo Jesus perdoado suas
culpas e lhe prometido o paraíso –, do contrário deixamos de reconhecer o caráter
de exceção deste personagem; ou isso ou todos teriam de passar pelo mesmo
sofrimento e com a mesma disposição de espírito para adquirir a recompensa que
teve[6].
O que se faz ao negar que haja um lugar de onde se deva pagar o
que aqui não foi pago pelo sofrimento, pelos infortúnios ou mesmo pelo
martírio, é tentar a Deus, é afirmar que a Justiça pode ser injusta. Um tipo de
doutrina assim acaba por levar o mundo ao caos, pois (fato inegável) as pessoas
passarão a pensar e a dizer: “Deus é amor, é misericórdia, perdoa sempre”, “Não
tem problema, depois peço perdão, afinal Deus é bonzinho”, “A carne é
fraca, Deus
sabe, foi ele quem criou a gente, relaxa!”. Não por acaso, isto já o encontramos
no próprio Lutero: “Crê firmemente, e peca muitas vezes”[7]. Mas será o
mesmo Lutero – ultimamente mui exaltado em alguns círculos católicos (sic!) – inicia
suas 95 teses dizendo[8]: “Quando nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo disse:
‘Fazei penitência...’, quis que toda a vida dos crentes fosse penitência.”
(tese 1), para em seguida, na terceira delas, esclarecer: “Entretanto, o vocábulo
não aponta somente a uma penitência interior; antes, uma penitência interna é
nula se não obra exteriormente diversas mortificações da carne”[9]. Parece a mesma pessoa o
autor de ambas afirmações? O fato é que os
adeptos do Deus bonzinho um dia dele ouvirá: “Apartai-vos de mim, malditos,
para o fogo eterno, que foi preparado para o demônio e para os seus anjos...”[10],
pois “... de Deus não se zomba”[11].
Outro velho exemplo para entender a questão: lavamos uma camisa
branca que está suja e manchada com sabão em pó. Esta camisa sairá limpa,
porém, continuará manchada. Será necessário então algo mais, a água sanitária, por exemplo; eis o
Purgatório. Há que ter claro que se na morte obtivermos o perdão já estaremos
salvos, não há mais como se condenar (tal como a camisa que já sai limpa da
máquina), mas assim como a camisa, o espírito ainda estará manchado; por isso
será preciso “deixar de molho na água sanitária”, isto é, apagar as manchas
(pagar o que se deve) para poder ser usada (habitar o Céu). Tão fácil de
entender quanto o infelizmente cada vez mais raro castigo dado ao filho: quando
a prole faz o que não deve e pede sinceramente desculpas, certamente será
desculpada, mas dependendo da gravidade do ato tem de ser castigada para que
aprenda a noção de justiça (consequência dos atos) e do que seja certo ou
errado. Os pais ao infringir o castigo, que tranquilamente pode ou não ser as
palmadas, já a desculparam, mas esta desculpa não deverá livrá-la do castigo,
senão provavelmente voltará ao erro com mais facilidade.
Em sentido análogo temos o Purgatório. Por não ter pagado o que
Deus julga ser suficiente pelos pecados cometidos, Ele nos põe a pagar (de
castigo), para que sejamos purificados das manchas que o pecado confere ao
espírito e possamos finalmente vê-lo face a face com os débitos sanados, cientes
da dimensão da gravidade da ofensa cometida contra o Ser infinito[12].
Os que estão no Purgatório sabem que aí estão por uma questão de justiça, e
apesar do grande sofrimento que sentem também sabem que já estão salvos (lavados)
e que, portanto, este grande sofrimento será temporário: “... não sairás de lá antes
de...”. Por isso, mesmo sofrendo são gratos à misericórdia divina por
tê-los livrado do sofrimento eterno, de onde não sairiam jamais.
Não será difícil prever que em torno a este assunto se levantarão
questionamentos e dúvidas, somente sanados se primeiro se estiver disposto a
perceber a retidão da doutrina, sua justeza e harmonia com os preceitos
divinos. Quem
se dispor poderá ter suas dúvidas de uma vez sanadas pelas leituras indicadas.
Para isso verificaremos “onde está na Bíblia” esta doutrina: no segundo livro
de Macabeus, em seu capítulo XII, versos de 39 a 45. Ali se verá que além de
existir um lugar após a morte para se purgar os pecados, as pessoas que para lá
são destinadas poderão ser auxiliadas pelos que aqui permanecem e pelos que já
se encontram com Deus, comprovando que a caridade é de verdade a única que não
acaba com a morte[13], o que também
é atestado no livro de Tobias (XII, 12)[14].
Para os que entenderam a questão do cânone bíblico acima[15],
bastariam estas duas claras passagens. Mas como sabemos que mesmo aqui alguns
ainda estarão reticentes, o que não será nenhum pecado contanto que possuam
reta intenção e desejem honestamente a busca da verdade, agreguemos ainda mais
comprovação, agora através de escritos que os protestantes não podem negar. No
evangelho de S. Mateus é Jesus quem fala: “Todo o que disser alguma palavra
contra o Filho do homem, lhe será perdoado; porém o que a disser contra o
Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem neste século nem no futuro” (XII, 32). Aqui
precisamos de atenção para uma questão lógica: supondo que só exista o Céu e o
Inferno como creem os protestantes, que necessidade teria deste detalhe
agregado? Bastaria com dizer que tal pecado não seria perdoado, pura e
simplesmente. Mas ao dizer que determinado tipo de falta não possui perdão
“neste século nem no futuro”, é o mesmo que dizer que tanto “neste” como
“no futuro” há faltas que podem ser perdoadas, neste caso quanto à sua
culpabilidade ou consequências (o castigo devido, a pena). Junte-se tudo isto
novamente a Mt V, 25s; 1 Cor III, 11-15; 1 Pe III, 19s, e teremos uma perfeita visão
de conjunto.
Para não nos estender, o que fugiria ao objetivo deste trabalho,
indico um link ilustrativo do debate entre Lutero e Eck acima mencionado[16].
Ali o leitor terá estas citações com explicações simples e diretas, acrescidas
de outras passagens comprobatórias, inclusive, de documentos do início da
Igreja, muito anteriores a Constantino, considerado, ignorante ou cinicamente, o
“criador” do catolicismo[17].
É preciso ressaltar, contudo, que os vivos podem ajudar as almas
do Purgatório a sair mais rápido deste lugar de justo sofrimento, e não a
salvá-las, pois já estão salvas. Nossos atos de caridade para com elas podem
ser comparados a uma fiança que auxilia
o condenado a sair mais rápido da prisão. Este condenado, posto que sua pena
não seja perpétua (como seria no Inferno), irá sair em um dado momento, ocorre
que quanto antes chegar a fiança, mais cedo sairá. Uma vez crendo equivocamente
não podermos sofrer por nossos pecados após a morte, no caso de não merecermos
o Inferno, acabamos relaxando em nossa fé e na vigilância por julgar já certa a
salvação apenas em aceitá-la, como prega a doutrina da predestinação calvinista[18]. Também
contradiz o fato de existir pessoas que morrem sem ser más o suficiente para
merecer o Inferno, mas sem ser boas o suficiente para merecer diretamente o Céu.
Sem contar que os evangélicos que se julgam salvos somente por “aceitar Jesus”
também entram diretamente em contradição com o Evangelho que diz: “... aquêle,
porém, que perseverar até o fim,
esse será salvo” (Mt X, 22). E com
São Paulo: “Aquele, pois, que crê estar de pé (possuindo a graça de Deus),
veja, não caia (no pecado)” (1 Cor X, 12); e ainda: “Considera, pois, a bondade
e a severidade de Deus; a severidade para com aqueles que caíram e a bondade de
Deus para contigo, se permaneceres na bondade; doutra maneira também serás
cortado. E eles também, se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados,
pois Deus é poderoso para os enxertar de novo” (Rom XI, 22s). Aqui, não somente
os supostos salvos podem condenar-se como os condenados, enquanto vivem, podem
reverter pelo arrependimento a condenação.
Em tempo: 1) o Purgatório
somente durará até o Juízo final ou fim do mundo, da mesma forma que o Limbo
dos Justos durou até a morte e ressureição de Cristo; a partir daí ele não terá
mais função de ser. Após o Juízo os condenados irão (ou voltarão), agora de
corpo e alma, para o Inferno, os salvos (incluindo os do Purgatório) para o Céu
e as crianças não batizadas – considerando a S. Tomás e outros teólogos – para
o Limbo.
2) A maioria desconhece ou
ignora que os sofrimentos, infortúnios, desgraças, “má sorte”, catástrofes etc
possuem basicamente estas causas: são consequências do pecado de um mundo que
se volta para si e sua desordem ao invés de voltar-se ao Criador e sua ordem.
Então Deus permite o mal, ainda que não o queira, para que com ele o homem
aprenda e por ele se purifique graças a um arrependimento e penitência
sinceros. Somente os males dos quais se pode tirar bens é que Deus permite que
existam. Quando temos este entendimento passamos a ver de forma distinta, sem necessidade de
queixas, injúrias, lamentos, maledicências ou a necessidade de nos vitimizar,
pois cada sofrimento – o saberemos na hora da morte – foi merecido ou teve um
propósito. Quando sabemos sofrer evita-se novos sofrimentos, inclusive os do
Purgatório, que ultrapassam todo e qualquer sofrimento terreno, uma vez sendo
“como que pelo fogo” que chegaremos ao destino último, ou seja, por um
sofrimento merecidamente atroz é que chegaremos completamente purgados (limpos)
ao Paraíso. Por fim, como vimos, nossos sofrimentos ainda podem auxiliar a
inúmeras almas, tanto do Purgatório como da Terra. Isto é o que chamamos – e
professamos – de Comunhão dos Santos, em que Deus se utiliza de uns membros
para ajudar aos outros, a exemplo dos membros corporais. Daí que não devemos
cair no grave erro de achar que ao morrer nossos entes queridos irão diretamente
ao Céu, já “estarão em paz”, “já não sofrem mais”, pois isto nos descuida de
rezar e se sacrificar por suas almas para que se livrem do Inferno ou sofram
menos no Purgatório. E se uma última razão ainda posso acrescentar, esta seria
a de que os nossos sofrimentos, quando bem dispostos, de forma ínfima mas mui
aceitável servirão para completar em nossa carne “o que falta aos sofrimentos
de Cristo” (Col I, 24)[19].
†
[1]
Ver capítulo anterior: O Batismo e o Limbo das Crianças.
[2] Jo XIX, 11.
[3] Há a
possibilidade de esta confissão também obter o perdão para os pecados mortais,
caso não exista um sacerdote próximo ao penitente e este esteja sob risco de vida.
Se sobrevive, estará obrigado tão logo surja a possiblidade a confessar-se
sacramentalmente. Se, contudo, morrer antes, valerá a confissão feita a Deus,
sempre que esta tiver sido realizada com sinceridade e contrição perfeitas, com
o firme propósito de não se cometer mais tal ou tais pecados. Ressalte-se,
porém, o caráter de exceção aqui contido.
[4] Ver capítulo
VIII - O Celibato e a Confissão.
[6] E mesmo aqui há que
considerar que neste “direto”, mui razoavelmente tenha havido alguma passagem
pelo Purgatório, uma vez que somente poderia ter “ido para o Céu” após a
Ressurreição do Senhor.
[8]
Hoje, se se pergunta aos protestantes se conhecem as teses luteranas,
responderão que tampouco ao autor delas, isto é, o seu pai na (herética) fé.
[9] www.luteranos.cl
(tradução livre). Vale a pena ressaltar, para surpresa de muitos protestantes,
que Lutero não era contra as Indulgências, como tampouco o Purgatório a elas
vinculado, o que demonstram a maior parte de suas teses. De uma forma ou outra, o fato é que o desafiante – como bem
o destaca a introdução das mesmas – acabou por não ficar para o debate quando a
Igreja aceitou o desafio de responder-lhe os argumentos através de seus
representantes. É o que comprovam os anais da época, em que os mesmos biógrafos
de Lutero não o negam, como muito bem o demonstra os trabalhos aqui citados
(notas 7, 14 e 16).
[14] Como
ainda demonstram os seus biógrafos, Lutero negará estes livros após perder uma
disputa apologética com o clérigo João Eck, para seguir justificando sua má
doutrina da sola fide.
[15] Ver capítulo
VI – O Cânon.
[17] A questão de Constantino,
e por consequência do surgimento da Igreja, poderá ser vista pelas indicações de
fontes ao final das postagens.
[18] João Calvino
(1509-1564), considerado o segundo reformador protestante após Lutero, criou
esta doutrina na qual, em síntese, Deus já predestina alguém para o céu ou para
o inferno, não havendo nada que se possa fazer para reverter esta situação.
Isto irá ao encontro do que disse Lutero: “crê firmemente e peca muitas
vezes”, pois se já estamos salvos ou condenados tudo o que fizermos não
reverterá esta decisão. Santo Agostinho séculos antes já refutara e condenara
esta má doutrina em sua obra Confissões, que recomendo a leitura. Dizia em
síntese o santo doutor que a “predestinação” divina conta com nossa
participação e livre-arbítrio, condensada em sua célebre frase: “Deus que te
criou sem ti, não te salvará sem ti”.
[19] Ainda haveria
que agregar um outro detalhe a respeito do sofrimento no Purgatório, e é que este
se dá em níveis distintos de acordo com o grau e a variedade dos pecados
cometidos. Para isso deixo a indicação de uma obra mui esclarecedora: O Manuscrito do Purgatório, encontrado
na web.
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