quinta-feira, 12 de abril de 2018

Simpósio Igreja Católica, aonde vais? Intervenção de Marcello Pera





Tradução de Airton Vieira – Texto da exposição de Marcello Pera[1] em Roma durante o encontro Igreja Católica, aonde vais?, em 7 de abril de 2018. Discurso improvisado, de estilo claramente espontâneo e coloquial, transcrito a partir da gravação.

Obrigado. Boa tarde a todos. Me pediram uma intervenção muito breve há dez minutos. Procurarei ser o mais breve possível. Os temas que já vêm sendo debatidos aqui são muito complexos e mereceriam todos um bom aprofundamento, mas me limitarei a fazer algumas breves observações. Para começar, considero de bom augúrio que me convidassem a falar, e recordar o cardeal Caffarra, que era um muito querido amigo meu, como todos vós. Também tem sua importância porque sou o terceiro a tomar a palavra, mas assim como Brandmüller é cardeal, direi que meu amigo Burke também é cardeal, e eu que sou o terceiro poderei portanto esperar seguir pelo mesmo caminho. Dizia o cardeal Caffarra que a situação da Igreja é confusa, que há que ser cego para não vê-la. Os cardeais Burke, Brandmüller e muitos outros têm acrescentado um novo adjetivo: que a situação é bastante confusa, e muito grave, e muito perigosa. Estou de acordo com eles.


Desde minha perspectiva, que evidentemente não é a deles, perspectiva de muito interesse e atenção, não tenho intensão de acrescentar nenhum elemento aos temas de debate relativos à discussão sobre este ou aquele tema, [uma vez que] há uma confusão do que se diz atualmente sobre o matrimônio. É confuso o que se afirma sobre o sacerdócio, sobre a moral sexual, sobre os direitos não negociáveis, sobre uma série de coisas que se converteram em… pelo visto estavam claras e se tornaram turvas… não… Gostaria de fazer uma pergunta por detrás destas simples confusões, aquilo em que consiste realmente a confusão hoje em dia na Igreja Católica para os que naturalmente denunciam a confusão, e de que nasce e provém essa confusão. Não tenho tempo de falar do segundo tema. Me limitarei a fazer uma breve alusão. Se alguém pensa, como eu, que a atual confusão é derivada ou é responsabilidade primária do papa Francisco, para mim que comete um erro histórico, porque a confusão, essa confusão, ao menos aquela à que me refiro, é também anterior àquela à que tem contribuído o papa Francisco.

A confusão… o digo um pouco resumidamente, e também de forma algo esquemática, pelo que rogo me desculpem, a confusão tem a ver com a natureza da mensagem cristã. E a apresento com esta pergunta alternativa: a mensagem cristã, é uma mensagem de salvação ou de libertação? É uma linguagem esjatológica[2] ou uma linguagem teológica?

Compreenderão que a diferença é profunda. Uma mensagem de salvação tem a ver com todos, com cada um da mesma maneira. Não faz distinção. O cardeal Burke citou a carta de São Paulo aos gálatas. O próprio São Paulo diz aos gálatas que não há judeu nem escravo nem amo, não há homem nem mulher, e que por isso não há ricos nem pobres, por isso não há imigrantes nem residentes, e assim sucessivamente. A mensagem de salvação é para todos, e é a mesma para todos. A mensagem de libertação é outra coisa. A mensagem de libertação é para alguns, e não para todos da mesma maneira, porque não todos devem ou podem ser igualmente liberados. Se libera à mulher, e não ao homem. Se libera ao débil, e não ao forte. Ao pobre, e não ao rico. Ao imigrante, e não ao residente. A linguagem da libertação estabelece uma distinção, e concebe o destinatário da mensagem de Cristo de uma maneira diversa. Não é que refaça a salvação, mas diz outra coisa. A mensagem entendida como libertação diz que a encarnação de Cristo, e portanto a revelação de Deus, tem uma função que tem a ver com este mundo, ou, como se dizia antes, hoc seculum, e não tem portanto a ver com o outro mundo. E mais. O que se faz neste mundo, as injustiças que se corrigem neste mundo, os sofrimentos que se aliviam neste mundo, as igualdades que se criam neste mundo, tudo isso contribui à salvação no outro. Isto significa interpretar o cristianismo de uma maneira mundana, de uma maneira secular, de uma maneira enfocada ao século em vez de ao outro mundo. A tal ponto que quem considera que a mensagem cristã é a mensagem da salvação é consciente também, se dá conta da crua realidade de que o cristão não pode impedir as injustiças e sofrimentos do mundo. Não é sua competência. E por que se dá conta? Porque sabe que foi precipitado a este mundo por causa da rebelião contra Deus, isto é, do pecado original, e que não tem a missão de eliminar do mundo ao que foi lançado essas inevitáveis injustiças, já que o mundo secular é o mundo caído. O vê, o reconhece com amargura, e é impotente ante isso. E, segundo esta interpretação, também Deus é impotente. 

O qual tollit peccata mundi, mas isso não significa que os elimine, porque criou o mundo, precisamente pelo mundo do pecado. O mundo está caído. Portanto não retira, não assume nem faz sua nenhuma responsabilidade (não só as injustiças que são consequência disso, mas o pecado que as provoca). E consciente aos que creem nele que se redimam por meio das injustiças e o sofrimento.

Daí a volta à interpretação, e não pensemos já na esjatologia, mas na ideologia. Ou seja: pensemos o que faz a linguagem do cristão no mundo, não na perspectiva da salvação. Veremos que faz exatamente o contrário. Se empenha em eliminar as injustiças. Escuta a voz do mundo, o grito do mundo que sofre, e se crê capaz de sair ao passo das injustiças e sofrimentos, traduzindo a mensagem cristã a uma mensagem secular ou política. E assim a Igreja, não só a de Bergoglio, que é o último protagonista desta evolução ou involução, assim a Igreja tem acolhido as petições do mundo secular e as tem feito suas. Assim a Igreja tem reconhecido os direitos irrevogáveis da mulher, do homem, da criança, do imigrante, do que sofre. Isto é, tem transferido a mensagem do terreno da salvação ao da libertação, convencida de que quem se empenha na libertação adquire méritos para salvar-se.

Houve um tempo em que essa ideia de que se ganham méritos para a salvação empenhando-se com as próprias forças, com o próprio esforço no mundo, se chamava pelagianismo, e se considerava uma heresia.

Observo que nestes últimos tempos se colocam interrogantes com respeito ao papa Francisco a propósito de alguns elementos de confusão que desgraçadamente também ele tem introduzido nesta questão, sobre a existência do inferno, e todos nós gostaríamos de saber se o Papa crê no inferno. Eu gostaria de fazer outra pergunta que me parece talvez mais decisiva que a relativa à existência ou não do inferno: Santidade: a Igreja hoje em dia crê no pecado original, crê que o pecado original só se pode redimir mediante a graça de Deus, [ou] crê que do pecado original só é possível redimir-se com obras da justiça, de política ou de caridade? Eu creio que aí radica a confusão. Porque se têm expressado algumas coisas, há posturas que me lembram a heresia pelagiana, ao convencimento de que me salvo ante Deus porque me empenho em eliminar por minhas próprias forças uma injustiça no mundo. Para mim, esta é uma perspectiva ideológica que está muito difundida atualmente nas atitudes, nas palavras, nos obiter dicta (sentenças vinculantes que sentam jurisprudência) deste pontífice que, infelizmente, a meu juízo, tem afetado a Igreja nos últimos tempos; não só neste século. Hoje se dizem e se aceitam coisas na Igreja que há oitenta ou noventa anos se consideravam heresias. Que está passando? Creio que estamos atravessando uma dessas fases tão arriscadas, com a confusão e a gravidade, [nós] os cristãos estamos transformando-a em uma filosofia em grande medida humanitária, com conotações escriturísticas vagas, interpretadas quase sempre ad hoc, traduzidas quase sempre ad usum Delphini. Estamos aceitando esta forma de humanismo, que não obstante não é, a meu juízo, a religião, a mensagem cristã da salvação que deveria caracterizar-nos a todos se não quisermos terminar por converter-nos em uma seita a mais, ou uma classe ou subespécie de filosofia da libertação como tantas outras que têm existido. Obrigado.


[1] Filósofo e político italiano. ndt
[2] O termo está correto. Assim o explica o R.P. Alfredo Sáenz na introdução de seu El fin de los tempos y siete autores modernos, 4ª edição: Gladius, Buenos Aires, Argentina, 2008 (tradução autorizada): “O leitor notou que falamos “esjatologia” e não “escatologia”, como é de costume. Por que com j? O fazemos seguindo ao Pe. Castellani, que observa que há duas palavras parecidas em espanhol, ambas provenientes do grego: escatológico, que significa pouco menos que “pornográfico”, – de scatos, que quer dizer excremento –, e esjatológico, que significa estudo das últimas coisas (ultimidades) – de ésjaton: o último. ndt

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