quarta-feira, 24 de abril de 2013

O Espírito da Missa Nova de Paulo VI


De um modo geral se está de acordo de que era necessária de uma maneira ou de outra uma
renovação, mais ainda um enriquecimento do rito romano, em grande parte imobilizado desde o Concílio de Trento por um excesso de rubricismo. Também se está de acordo no fato de que a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, promulgada pelo Concílio Vaticano II, corresponde em muitos de seus pontos às necessidades legítimas da pastoral atual. Sem dúvida o juízo que se tem sobre as reformas efetivamente realizadas não é unânime de nenhuma maneira, particularmente no concernente aos novos livros litúrgicos elaborados, como resultado do Concílio, por um grupo de especialistas.

Uns rechaçam estes novos livros, porque refletem demasiado o espírito da nova teologia sem ter
suficientemente em conta a tradição. Pensa-se que a renovação dos ritos, em seu conjunto, foi longe demais. Sem dúvida outros se lamentam de que ainda não se tenha ampliado o quadro estreito da visão rubricista e que se tenha assim fixado definitivamente nos novos livros litúrgicos, elementos que ainda não tinham sido provados e que por esta causa pareciam até duvidosos.

A situação do clero e dos fiéis cristãos era ainda pior no início das reformas litúrgicas. Não estavam preparados para as inovações.

Se a realização ritual dos diferentes atos do culto ou a administração dos sacramentos era própria do sacerdote ou do clero, sempre em primeiro plano e diante de alguns fiéis que permaneciam passivos; temos passado, de uma forma exagerada, a pôr o acento na atividade dos participantes, pondo num segundo plano os próprios elementos do culto. Isto nos tem empobrecido cada vez mais.

Não é raro ver que as antigas formas de culto, existentes até hoje, são desprezadas pelos sacerdotes e deixadas de lado sob o pretexto de estar antiquadas; nem sequer querem imaginar que têm perdido o trem da evolução moderna. Os atuais reformadores, demasiado atarefados, não pararam para considerar até que ponto, dentro do espírito dos fiéis, existe coincidência entre a doutrina e certas formas de piedade. Para muitos, modificar as formas tradicionais de culto significa uma modificação da fé.

Os responsáveis da igreja não escutaram a voz dos que não cessaram de lhes advertir, pedindo-lhes para não suprimir o missal romano tradicional e somente autorizar a nova liturgia dentro de certos limites e “ad experimentum”.


Eis aqui, hoje em dia, quão desgraçada é a situação: numerosos bispos calam diante de quase todos os “experimentos” litúrgicos; porém reprimem, mais ou menos severamente, o sacerdote que por razões objetivas ou de consciência se mantém na antiga liturgia.

Ninguém encontrará nada que objetar ao fato de que a autoridade eclesiástica queira, na medida do necessário, adaptar as formas litúrgicas às circunstâncias do momento. Mesmo isto é necessário fazer com reto juízo e prudência e, em qualquer caso, sem provocar ruptura com a tradição.

A ruptura com a tradição está consumada: pela introdução da nova forma de celebração da missa e os novos livros litúrgicos; e ainda mais pela liberdade concedida tacitamente pela hierarquia de organizar livremente a celebração da missa; sem que se possa entrever em tudo isto um avanço substancial do ponto de vista pastoral. Por outro lado se constata uma grande decadência da vida religiosa, que, é verdade, tem também outras causas.


A reforma litúrgica, saudada por muitos sacerdotes e leigos com muito idealismo e grandes
esperanças, tem se mostrado, cada ano que passa, uma desolação litúrgica de proporções inconcebíveis. Em lugar da esperada renovação da Igreja e da vida eclesiástica, estamos assistindo a um desmantelamento dos valores da fé e da devoção, que nos tinham sido transmitidos e em lugar de uma renovação fecunda da liturgia, contemplamos uma destruição da mesma, que se tinha desenvolvido organicamente no transcurso dos séculos.

A isto se acrescenta, sob o indício de um mal entendido ecumenismo, uma tremenda aproximação às concepções do protestantismo e um distanciamento considerável das antigas Igrejas do Oriente. Isto significa que se tem abandonado uma tradição, comum até agora, entre Oriente e Ocidente. Até mesmo os padres da reforma litúrgica reconhecem que no que sucedeu não podem se livrar dos espíritos que tinham invocado.

Ao contrário do que ocorre com os ritos da Igreja do Oriente, que jamais cessaram de se enriquecer, inclusive durante a idade média para logo se fixarem, a liturgia romana permaneceu através dos séculos quase inalterável em sua forma inicial, simples e austera. Em todo caso representa o rito mais antigo. Através dos tempos, muitos papas lhe acrescentaram certas modificações em sua redação, como o fez desde o princípio o Papa São Dâmaso (366-384) e sobretudo mais tarde São Gregório Magno (590-604).

A liturgia dâmaso-gregoriana permaneceu em vigor na Igreja Católica Romana até a reforma
litúrgica atual. É contrário aos fatos dizer, como freqüentemente se diz hoje, que se aboliu o “missal de São Pio V”. As modificações introduzidas no missal romano durante quase 1400 anos não tocaram o rito propriamente dito. Ao contrário do que estamos vivendo hoje, somente se tratou de um enriquecimento nas novas festas, em formulários de missas e em certas orações.

RITO ROMANO E RITO MODERNO

No artigo “Quatrocentos anos de Missa Tridentina”, publicado em diversas revistas religiosas, o
professor Rennings se aplicou a apresentar o novo missal, ou seja, o Ritus Modernus, como derivação natural e legítima da liturgia romana. Segundo o dito professor, não teria existido uma Missa de São Pio V se não unicamente por cento e trinta e quatro anos, ou seja, de 1570 a 1704, ano no qual apareceu sob as modificações desejadas pelo Romano Pontífice de então.

Em seu artigo, Rennings habilmente se aferrou a um ponto fraco dos tradicionalistas: a expressão Missa Tridentina ou Missa de São Pio V. Propriamente falando uma Missa Tridentina ou de São Pio V nunca existiu, já que, seguindo as instâncias do Concílio de Trento, não foi formado um Novus Ordo Missae, dado que o Missale sancti Pii V não é mais que o Missal da Cúria Romana, que foi se formando em Roma muitos séculos antes, e difundido especialmente pelos franciscanos em numerosas regiões do Ocidente. As modificações efetuadas em sua época por São Pio V são tão pequenas, que são perceptíveis tão somente pelos olhos dos especialistas.

Os Papas, até Paulo VI, não modificaram o Ordo Missae, mesmo introduzindo novos próprios para novas festas, o que não destrói a chamada Missa Tridentina mais do que os acréscimos ao Código Civil destroem o mesmo.

Portanto, deixando de lado a expressão imprópria de Missa Tridentina, falamos melhor de um Ritus Romanus.

O rito romano remonta em suas partes mais importantes pelo menos ao século V, e mais
precisamente ao Papa São Dâmaso (366-384). O Canon Missae, com exceção de alguns retoques efetuados por São Gregório I (590-604), alcançou com São Gelásio I (492-496) a forma que conservou até há pouco. A única coisa sobre a qual os Romanos Pontífices não cessaram de insistir do século V em diante, foi a importância para todos de adotar o Canon Missae Romanae, dado que dito cânon remonta nada menos que ao próprio Apóstolo Pedro.

O que fez São Pio V? Como já dissemos, tomou o missal em uso em Roma e em tantos outros
lugares, deu-lhe retoques, especialmente reduzindo o número das festas dos Santos que continha. Ele o tornou obrigatório para toda a Igreja? De modo algum! Respeitou até as tradições locais que pudessem se gloriar de ter, pelo menos, duzentos anos de idade. Assim, propriamente: era suficiente que o missal estivesse em uso, pelo menos, há duzentos anos, para que pudesse permanecer em uso ao lado e no lugar daquele publicado por São Pio V. O fato de que o Missale Romanum tenha se difundido tão rapidamente e tenha sido espontaneamente adotado também em dioceses que tinham o próprio mais que bicentenário, devesse a outras causas; não, por certo, a pressão exercida sobre elas por Roma. Roma não exerceu sobre elas nenhuma pressão, e isto numa época em que, bem diferente do que acontece hoje, não se falava de pluralismo, nem de tolerância.

O primeiro Papa que ousou inovar o Missal tradicional foi Pio XII, quando modificou a liturgia da Semana Santa. Seja-nos permitido observar, a respeito, que nada impedia de restabelecer a Missa do Sábado Santo no curso da noite de Páscoa, ainda que sem modificar o rito.
João XXIII o seguiu por este caminho, retocando as rubricas. Mas nem um nem o outro, ousaram inovar sobre o Ordo Missae, que continuou invariável. Porém, a porta tinha sido aberta, e por ela cruzaram aqueles que queriam uma substituição radical da liturgia tradicional e que a obtiveram. Nós, que tínhamos assistido com espanto a esta resolução, contemplamos agora aos nossos pés as ruínas, não da Missa Tridentina, mas da antiga e tradicional Missa Romana, que foi se aperfeiçoando através do curso dos séculos até alcançar sua maturidade. Não era perfeita a ponto de não ser ulteriormente mais aperfeiçoada, mas para adaptá-la ao homem de hoje não havia necessidade de substituí-la: bastavam alguns pequeníssimos retoques,deixando a salvo e imutável todo o resto.

Mas ao contrário, quiseram suprimi-la e substituí-la com uma liturgia nova, preparada com
precipitação e, diremos, artificialmente: com o Ritus Modernus. Ó, como se vê aparecer de modo sempre mais claro e alarmante o oculto fundo teológico desta reforma! Sim, era fácil obter uma mais ativa participação dos fiéis nos santos mistérios, segundo as disposições conciliares, sem necessidade de transformar o rito tradicional.

Porém a meta dos reformadores não era obter a mencionada maior participação ativa dos fiéis, mas fabricar um rito que interpretasse sua nova teologia, aquela mesma que está na base dos novos catecismos escolares. Já se veem agora as consequências desastrosas que vem se revelando desde a sua implantação.

Para chegar aos seus objetivos, os progressistas souberam explorar mui habilmente a obediência às prescrições romanas dos sacerdotes e dos féis mais dóceis... A fidelidade e o respeito devido ao Pai da Cristandade não chegam ao ponto de exigir uma aceitação despojada do devido sentido crítico de todas as novidades introduzidas em nome do Papa.

A fidelidade à Fé, antes de tudo! Agora, a Fé, parece-me que se encontra em perigo com a nova liturgia, ainda que não me atreva a declarar inválida a Missa celebrada segundo o Ritus Modernus.

É possível que vejamos a Cúria Romana e certos bispos – aqueles mesmos que nos querem obrigar, com suas ameaças, a adotar o Ritus Modernus –, descuidar de seu próprio dever específico de defensores da Fé, permitindo certos professores de teologia a enterrar os dogmas mais fundamentais de nossa Fé e aos discípulos dos mesmos propagar ditas opiniões heréticas em periódicos, livros e catecismos?

O Ritus Romanus permanece como o último rochedo no meio da tempestade. Os inovadores sabem muito bem disso. Daqui parte seu ódio furioso contra o Ritus Romanus, que combatem sob o pretexto de combater uma nunca existida Missa Tridentina. Conservar o Ritus Romanus não é uma questão de estética: é, para nossa Santa Fé, questão de vida ou morte.

O Papa pode mudar o Rito ?

A resposta a esta pergunta, seguindo as reflexões precedentes, parece de uma urgente necessidade. Mas, antes, convém esclarecer o que entendemos pela palavra “Rito” em tudo o que expomos a seguir. Podemos defini-lo como as formas reguladoras do culto que, remontando a Cristo, nasceram, uma a uma, a partir do costume geral e sancionadas depois pela autoridade eclesiástica.

1. Se o rito nasceu do costume geral – e sobre isto não há dúvida para o conhecedor da história da liturgia –, não pode ser recriado em sua totalidade.

Inclusive em seu princípio, as formas da liturgia cristã não constituíram nada fundamentalmente novo.

2. Como o rito foi se desenvolvendo no transcurso dos tempos, poderá continuar fazendo o mesmo no futuro. Mas este desenvolvimento deverá ter em conta a atemporalidade de cada rito e efetuá-lo de maneira orgânica. O fato de que, sob Constantino, o cristianismo se convertesse em religião do Estado, trouxe como consequência um maior desenvolvimento do culto. A missa não foi mais celebrada em pequenas igrejas domésticas, mas nas suntuosas basílicas. Prosperou o canto da Igreja. E em todas as partes se celebrou a liturgia com uma grande solenidade.

Este enriquecimento do culto contribuiu à formação de ritos diversos tanto no Oriente como no ocidente. Sua expansão se apoiava na fé e no “pneuma” de algumas personalidades, que em sua maior parte eram bispos de renome; enfim era seu prestígio o que dava lugar a novos formulários da missa. Mas este desenvolvimento foi efetuado sempre de maneira orgânica, sem ruptura com a tradição e sem uma intervenção dirigista das autoridades eclesiásticas.

3. Existem na Igreja vários ritos independentistas. No Ocidente, além do rito romano, existem os ritos galicano (já desaparecido), ambrosiano e moçárabe; no Oriente, entre outros, os ritos bizantinos, armênio, siríaco e copta.

A questão que aqui se estabelece é a seguinte: quando nos referirmos ao “ritus modernus” nos referimos a um novo rito ou se trata do desenvolvimento orgânico do rito romano já existente?

4. Cada rito constitui uma unidade homogênea. Portanto, a modificação de qualquer de seus componentes essenciais significa a destruição de todo o rito. Também a nova versão das rubricas sob o Papa João XXIII, versão que introduzia modificações bastante profundas, não constituiu uma mudança de rito propriamente dito nem tampouco o “ordo missae” de 1965.

Voltando à pergunta: Pode o Papa modificar todo o Rito?

O Concílio Vaticano I reconhece o poder “pleno e supremo”(plena et suprema potestas) do Papa no “tocante à disciplina e governo da Igreja estendida pelo mundo inteiro (“quae ad disciplinam et regimen Eclesiae per totum orbem diffusae pertinent”) (Dz.S. 3064).

Entretanto o termo “disciplina” em nenhum caso foi usado como se englobasse o rito da missa, tanto que vários Papas não cessaram de assinalar que este rito remonta à tradição apostólica. Somente por esta razão não se pode apelar para a “disciplina e governo da Igreja”. A isto acrescentamos que não existe nenhum só documento, nem sequer o “Codex Iuris canonici”, que diga expressamente que o Papa, enquanto Pastor supremo da Igreja, tenha o direito de abolir o rito tradicional. Tampouco em alguma parte se fala de que tenha direito de modificar os costumes litúrgicos particulares.

Os limites da “plena et suprema potestas” do Papa têm sido claramente determinados. É indiscutível que, para as questões dogmáticas, o Papa deve se ater à tradição da Igreja universal e por conseguinte segundo São Vicente de Lérins ao que se tem crido sempre, em todas as partes e por todos (quod semper, quod ubique, quod ab omnibus). Vários autores expressamente adiantam que em consequência, não compete ao poder discricionário do Papa abolir o rito tradicional.

Assim, o célebre teólogo Suárez (+ l6l7), referindo-se a autores mais antigos como Caetano (+ 1534)pensa que o Papa seria cismático “se não quisesse, como é seu dever, manter a unidade e o laço com o corpo completo da Igreja, como por exemplo, se excomungasse toda a Igreja ou se quisesse modificar todos os ritos confirmados pela tradição apostólica”.

Para aqueles que não concedem peso a esta afirmação de Suárez, assinalemos outro argumento que ainda poderá ser de importância bem maior, quanto ao direito que os Papas têm a dispor dos ritos herdados da tradição: o fato recordado mais acima que até Paulo VI, nenhum Papa empreendeu uma modificação tão ampla das formas litúrgicas como a que temos assistido; que não se aceitava a mais insignificante inovação num rito.

É necessário também indicar o seguinte: nem na Igreja Romana nem na do Oriente algum patriarca, ou algum bispo, por sua própria autoridade, impôs uma reforma litúrgica. Mas tanto no Oriente como no Ocidente, ao longo dos anos existiu um desenvolvimento orgânico e progressivo das formas litúrgicas.

Sem dúvida Papa Paulo VI surpreendeu o universo católico com a publicação de um novo “Ordo missae” que levava a data de 6 de abril de 1969. Enquanto a revisão de 1965 havia deixado intacto o rito tradicional contentando-se, sobretudo em conformidade com o artigo 50 da Constituição litúrgica, em descartar do “ordo” da missa qualquer acréscimo posterior, com o “ordo” de 1969 se criava um novo rito. Assim pois, o “ordo” existente até aqui não foi revisado no sentido como o entendia o Concílio, mas se encontrava totalmente abolido, mais ainda, alguns anos mais tarde, expressamente proibido.


GAMBER, Mons. Klaus - A Reforma da Liturgia Romana - Tradução: Luís Augusto Rodrigues Domingues.

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