De um modo geral se está de acordo de que era
necessária de uma maneira ou de outra uma
renovação, mais ainda um enriquecimento do rito
romano, em grande parte imobilizado desde o Concílio de Trento por um excesso
de rubricismo. Também se está de acordo no fato de que a Constituição sobre a Sagrada
Liturgia, promulgada pelo Concílio Vaticano II, corresponde em muitos de seus
pontos às necessidades legítimas da pastoral atual. Sem dúvida o juízo que se
tem sobre as reformas efetivamente realizadas não é unânime de nenhuma maneira,
particularmente no concernente aos novos livros litúrgicos elaborados, como
resultado do Concílio, por um grupo de especialistas.
Uns rechaçam estes novos livros, porque refletem
demasiado o espírito da nova teologia sem ter
suficientemente em conta a tradição. Pensa-se que a
renovação dos ritos, em seu conjunto, foi longe demais. Sem dúvida
outros se lamentam de que ainda não se tenha ampliado o quadro estreito da
visão rubricista e que se tenha assim fixado definitivamente nos novos livros
litúrgicos, elementos que ainda não tinham sido provados e que por esta causa
pareciam até duvidosos.
A situação do clero e dos fiéis cristãos era ainda
pior no início das reformas litúrgicas. Não estavam preparados para as
inovações.
Se a realização ritual dos diferentes atos do culto ou
a administração dos sacramentos era própria do sacerdote ou do clero, sempre em
primeiro plano e diante de alguns fiéis que permaneciam passivos; temos
passado, de uma forma exagerada, a pôr o acento na atividade dos participantes,
pondo num segundo plano os próprios elementos do culto. Isto nos tem
empobrecido cada vez mais.
Não é raro ver que as antigas formas de culto,
existentes até hoje, são desprezadas pelos sacerdotes e deixadas de lado sob o
pretexto de estar antiquadas; nem sequer querem imaginar que têm perdido o trem
da evolução moderna. Os atuais reformadores, demasiado atarefados, não pararam
para considerar até que ponto, dentro do espírito dos fiéis, existe
coincidência entre a doutrina e certas formas de piedade. Para muitos,
modificar as formas tradicionais de culto significa uma modificação da fé.
Os responsáveis da igreja não escutaram a voz dos que
não cessaram de lhes advertir, pedindo-lhes para não suprimir o missal romano
tradicional e somente autorizar a nova liturgia dentro de certos limites e “ad
experimentum”.
Eis aqui, hoje em dia, quão desgraçada é a situação:
numerosos bispos calam diante de quase todos os “experimentos” litúrgicos;
porém reprimem, mais ou menos severamente, o sacerdote que por razões objetivas
ou de consciência se mantém na antiga liturgia.
Ninguém encontrará nada que objetar ao fato de que a
autoridade eclesiástica queira, na medida do necessário, adaptar as formas
litúrgicas às circunstâncias do momento. Mesmo isto é necessário fazer com reto
juízo e prudência e, em qualquer caso, sem provocar ruptura com a tradição.
A ruptura com a tradição está consumada: pela
introdução da nova forma de celebração da missa e os novos livros litúrgicos; e
ainda mais pela liberdade concedida tacitamente pela hierarquia de organizar
livremente a celebração da missa; sem que se possa entrever em tudo isto um
avanço substancial do ponto de vista pastoral. Por outro lado se constata uma
grande decadência da vida religiosa, que, é verdade, tem também outras causas.
A reforma litúrgica, saudada por muitos sacerdotes e
leigos com muito idealismo e grandes
esperanças, tem se mostrado, cada ano que passa, uma
desolação litúrgica de proporções inconcebíveis. Em lugar da esperada
renovação da Igreja e da vida eclesiástica, estamos assistindo a um desmantelamento
dos valores da fé e da devoção, que nos tinham sido transmitidos e em lugar
de uma renovação fecunda da liturgia, contemplamos uma destruição da mesma, que
se tinha desenvolvido organicamente no transcurso dos séculos.
A isto se acrescenta, sob o indício de um mal
entendido ecumenismo, uma tremenda aproximação às concepções do
protestantismo e um distanciamento considerável das antigas Igrejas do Oriente.
Isto significa que se tem abandonado uma tradição, comum até agora, entre
Oriente e Ocidente. Até mesmo os padres da reforma litúrgica reconhecem que no
que sucedeu não podem se livrar dos espíritos que tinham invocado.
Ao contrário do que ocorre com os ritos da Igreja do
Oriente, que jamais cessaram de se enriquecer, inclusive durante a idade média
para logo se fixarem, a liturgia romana permaneceu através dos séculos quase
inalterável em sua forma inicial, simples e austera. Em todo caso representa o
rito mais antigo. Através dos tempos, muitos papas lhe acrescentaram certas
modificações em sua redação, como o fez desde o princípio o Papa São Dâmaso
(366-384) e sobretudo mais tarde São Gregório Magno (590-604).
A liturgia dâmaso-gregoriana permaneceu em vigor na
Igreja Católica Romana até a reforma
litúrgica atual. É contrário aos fatos dizer, como
freqüentemente se diz hoje, que se aboliu o “missal de São Pio V”. As
modificações introduzidas no missal romano durante quase 1400 anos não tocaram
o rito propriamente dito. Ao contrário do que estamos vivendo hoje, somente se
tratou de um enriquecimento nas novas festas, em formulários de missas e em
certas orações.
RITO ROMANO E RITO MODERNO
No artigo “Quatrocentos anos de Missa Tridentina”,
publicado em diversas revistas religiosas, o
professor Rennings se aplicou a apresentar o novo
missal, ou seja, o Ritus Modernus, como derivação natural e legítima da
liturgia romana. Segundo o dito professor, não teria existido uma Missa de São
Pio V se não unicamente por cento e trinta e quatro anos, ou seja, de 1570 a 1704, ano no qual
apareceu sob as modificações desejadas pelo Romano Pontífice de então.
Em seu artigo, Rennings habilmente se aferrou a um
ponto fraco dos tradicionalistas: a expressão Missa Tridentina ou Missa de São
Pio V. Propriamente falando uma Missa Tridentina ou de São Pio V nunca existiu,
já que, seguindo as instâncias do Concílio de Trento, não foi formado um Novus
Ordo Missae, dado que o Missale sancti Pii V não é mais que o Missal da
Cúria Romana, que foi se formando em Roma muitos séculos antes, e difundido
especialmente pelos franciscanos em numerosas regiões do Ocidente. As
modificações efetuadas em sua época por São Pio V são tão pequenas, que são
perceptíveis tão somente pelos olhos dos especialistas.
Os Papas, até Paulo VI, não modificaram o Ordo
Missae, mesmo introduzindo novos próprios para novas festas, o que não
destrói a chamada Missa Tridentina mais do que os acréscimos ao Código Civil
destroem o mesmo.
Portanto, deixando de lado a expressão imprópria de Missa
Tridentina, falamos melhor de um Ritus Romanus.
O rito romano remonta em suas partes mais importantes
pelo menos ao século V, e mais
precisamente ao Papa São Dâmaso (366-384). O Canon
Missae, com exceção de alguns retoques efetuados por São Gregório I
(590-604), alcançou com São Gelásio I (492-496) a forma que conservou até há
pouco. A única coisa sobre a qual os Romanos Pontífices não cessaram de
insistir do século V em diante, foi a importância para todos de adotar o Canon
Missae Romanae, dado que dito cânon remonta nada menos que ao próprio
Apóstolo Pedro.
O que fez São Pio V? Como já dissemos, tomou o missal
em uso em Roma e em tantos outros
lugares, deu-lhe retoques, especialmente reduzindo o
número das festas dos Santos que continha. Ele o tornou obrigatório para toda a
Igreja? De modo algum! Respeitou até as tradições locais que pudessem se
gloriar de ter, pelo menos, duzentos anos de idade. Assim, propriamente: era
suficiente que o missal estivesse em uso, pelo menos, há duzentos anos, para que
pudesse permanecer em uso ao lado e no lugar daquele publicado por São Pio V. O
fato de que o Missale Romanum tenha se difundido tão rapidamente e tenha
sido espontaneamente adotado também em dioceses que tinham o próprio mais que
bicentenário, devesse a outras causas; não, por certo, a pressão exercida sobre
elas por Roma. Roma não exerceu sobre elas nenhuma pressão, e isto numa época
em que, bem diferente do que acontece hoje, não se falava de pluralismo, nem de
tolerância.
O primeiro Papa que ousou inovar o Missal tradicional
foi Pio XII, quando modificou a liturgia da Semana Santa. Seja-nos permitido
observar, a respeito, que nada impedia de restabelecer a Missa do Sábado Santo
no curso da noite de Páscoa, ainda que sem modificar o rito.
João XXIII o seguiu por este caminho, retocando as
rubricas. Mas nem um nem o outro, ousaram inovar sobre o Ordo Missae,
que continuou invariável. Porém, a porta tinha sido aberta, e por ela cruzaram
aqueles que queriam uma substituição radical da liturgia tradicional e que a
obtiveram. Nós, que tínhamos assistido com espanto a esta resolução,
contemplamos agora aos nossos pés as ruínas, não da Missa Tridentina, mas da
antiga e tradicional Missa Romana, que foi se aperfeiçoando através do
curso dos séculos até alcançar sua maturidade. Não era perfeita a ponto de não
ser ulteriormente mais aperfeiçoada, mas para adaptá-la ao homem de hoje não
havia necessidade de substituí-la: bastavam alguns pequeníssimos
retoques,deixando a salvo e imutável todo o resto.
Mas ao contrário, quiseram
suprimi-la e substituí-la com uma liturgia nova, preparada com
precipitação e, diremos, artificialmente: com o Ritus Modernus. Ó, como se vê
aparecer de modo sempre mais claro e alarmante o oculto fundo teológico desta
reforma! Sim, era fácil obter uma mais ativa participação dos fiéis nos santos
mistérios, segundo as disposições conciliares, sem necessidade de transformar o
rito tradicional.
Porém a meta dos reformadores
não era obter a mencionada maior participação ativa dos fiéis, mas fabricar um rito que interpretasse sua
nova teologia, aquela mesma que está na base dos novos catecismos
escolares. Já se veem agora as consequências desastrosas que vem se revelando
desde a sua implantação.
Para chegar aos seus objetivos, os progressistas souberam
explorar mui habilmente a obediência às prescrições romanas dos sacerdotes e
dos féis mais dóceis... A fidelidade e o respeito devido ao Pai da Cristandade
não chegam ao ponto de exigir uma aceitação despojada do devido sentido crítico
de todas as novidades introduzidas em nome do Papa.
A fidelidade
à Fé, antes de tudo! Agora, a Fé,
parece-me que se encontra em perigo com a nova liturgia, ainda que não
me atreva a declarar inválida a Missa celebrada segundo o Ritus Modernus.
É possível que vejamos a Cúria Romana e certos bispos
– aqueles mesmos que nos querem obrigar, com suas ameaças, a adotar o Ritus
Modernus –, descuidar de seu próprio dever específico de defensores da Fé,
permitindo certos professores de teologia a enterrar os dogmas mais fundamentais
de nossa Fé e aos discípulos dos mesmos propagar ditas opiniões heréticas em
periódicos, livros e catecismos?
O Ritus Romanus permanece como o último
rochedo no meio da tempestade. Os inovadores sabem muito bem disso. Daqui
parte seu ódio furioso contra o Ritus Romanus, que combatem sob o
pretexto de combater uma nunca existida Missa Tridentina. Conservar o Ritus
Romanus não é uma questão de estética: é,
para nossa Santa Fé, questão de vida ou morte.
O Papa pode
mudar o Rito ?
A resposta a esta pergunta, seguindo as reflexões
precedentes, parece de uma urgente necessidade. Mas, antes, convém esclarecer o
que entendemos pela palavra “Rito” em tudo o que expomos a seguir. Podemos
defini-lo como as formas reguladoras do culto que, remontando a Cristo, nasceram,
uma a uma, a partir do costume geral e sancionadas depois pela autoridade
eclesiástica.
1. Se o rito
nasceu do costume geral – e sobre isto não há dúvida para o conhecedor da
história da liturgia –, não pode ser recriado em sua totalidade.
Inclusive em seu princípio, as formas da liturgia
cristã não constituíram nada fundamentalmente novo.
2. Como o
rito foi se desenvolvendo no transcurso dos tempos, poderá continuar fazendo o
mesmo no futuro. Mas este desenvolvimento deverá ter em conta a atemporalidade
de cada rito e efetuá-lo de maneira orgânica. O fato de que, sob Constantino, o
cristianismo se convertesse em religião do Estado, trouxe como consequência um
maior desenvolvimento do culto. A missa não foi mais celebrada em pequenas
igrejas domésticas, mas nas suntuosas basílicas. Prosperou o canto da Igreja. E
em todas as partes se celebrou a liturgia com uma grande solenidade.
Este enriquecimento do culto contribuiu à formação de
ritos diversos tanto no Oriente como no ocidente. Sua expansão se apoiava na fé
e no “pneuma” de algumas personalidades, que em sua maior parte eram
bispos de renome; enfim era seu prestígio o que dava lugar a novos formulários
da missa. Mas este desenvolvimento foi efetuado sempre de maneira orgânica,
sem ruptura com a tradição e sem uma intervenção dirigista das autoridades
eclesiásticas.
3. Existem
na Igreja vários ritos independentistas. No Ocidente, além do rito romano,
existem os ritos galicano (já desaparecido), ambrosiano e moçárabe; no Oriente,
entre outros, os ritos bizantinos, armênio, siríaco e copta.
A questão que aqui se estabelece é a seguinte: quando
nos referirmos ao “ritus modernus” nos referimos a um novo rito ou se
trata do desenvolvimento orgânico do rito romano já existente?
4. Cada rito
constitui uma unidade homogênea. Portanto, a modificação de qualquer de seus componentes
essenciais significa a destruição de todo o rito. Também a nova versão
das rubricas sob o Papa João XXIII, versão que introduzia modificações bastante
profundas, não constituiu uma mudança de rito propriamente dito nem tampouco o
“ordo missae” de 1965.
Voltando à pergunta: Pode o Papa modificar todo o
Rito?
O Concílio Vaticano I reconhece o poder “pleno e
supremo”(plena et suprema potestas) do Papa no “tocante à disciplina e governo
da Igreja estendida pelo mundo inteiro (“quae ad disciplinam et regimen
Eclesiae per totum orbem diffusae pertinent”) (Dz.S. 3064).
Entretanto o termo “disciplina” em nenhum caso foi
usado como se englobasse o rito da missa, tanto que vários Papas não cessaram
de assinalar que este rito remonta à tradição apostólica. Somente por esta
razão não se pode apelar para a “disciplina e governo da Igreja”. A isto
acrescentamos que não existe nenhum só documento, nem sequer o “Codex Iuris
canonici”, que diga expressamente que o Papa, enquanto Pastor supremo da
Igreja, tenha o direito de abolir o rito tradicional. Tampouco em alguma parte
se fala de que tenha direito de modificar os costumes litúrgicos particulares.
Os limites da “plena et suprema potestas” do
Papa têm sido claramente determinados. É indiscutível que, para as questões
dogmáticas, o Papa deve se ater à tradição da Igreja universal e por
conseguinte segundo São Vicente de Lérins ao que se tem crido sempre, em todas
as partes e por todos (quod semper, quod ubique, quod ab omnibus).
Vários autores expressamente adiantam que em consequência, não compete ao poder discricionário do Papa
abolir o rito tradicional.
Assim, o célebre teólogo Suárez (+ l6l7), referindo-se
a autores mais antigos como Caetano (+ 1534)pensa que o Papa seria cismático
“se não quisesse, como é seu dever, manter a unidade e o laço com o corpo
completo da Igreja, como por exemplo, se excomungasse toda a Igreja ou se
quisesse modificar todos os ritos confirmados pela tradição apostólica”.
Para aqueles que não concedem peso a esta afirmação de
Suárez, assinalemos outro argumento que ainda poderá ser de importância bem
maior, quanto ao direito que os Papas têm a dispor dos ritos herdados da
tradição: o fato recordado mais acima que até Paulo VI, nenhum Papa empreendeu
uma modificação tão ampla das formas litúrgicas como a que temos assistido; que
não se aceitava a mais insignificante inovação num rito.
É necessário também indicar o seguinte: nem na Igreja
Romana nem na do Oriente algum patriarca, ou algum bispo, por sua própria
autoridade, impôs uma reforma litúrgica. Mas tanto no Oriente como no Ocidente,
ao longo dos anos existiu um desenvolvimento orgânico e progressivo das formas
litúrgicas.
Sem dúvida Papa Paulo VI surpreendeu o universo
católico com a publicação de um novo “Ordo missae” que levava a data de
6 de abril de 1969. Enquanto a revisão de 1965 havia deixado intacto o rito
tradicional contentando-se, sobretudo em conformidade com o artigo 50 da
Constituição litúrgica, em descartar do “ordo” da missa qualquer
acréscimo posterior, com o “ordo” de 1969 se criava um novo rito. Assim pois, o “ordo”
existente até aqui não foi revisado no sentido como o entendia o Concílio, mas se encontrava totalmente abolido,
mais ainda, alguns anos mais tarde, expressamente proibido.
GAMBER, Mons. Klaus - A Reforma da Liturgia Romana - Tradução: Luís Augusto Rodrigues Domingues.
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