Sacrifícios não
sangrentos - Tão alto
quanto podemos voltar, a história do gênero humano nos oferece vestígios desta
espécie de sacrifício. Desde Caim e Abel, vemos todos os povos oferecerem em reconhecimento
a Deus, o trigo de seus campos, o pão de sua mesa, os peixes de seus rios e os
animais de suas florestas. Alguns davam o leite de seus rebanhos, e outros a
fumaça de seus incensos e os perfumes de suas ervas aromáticas. Em outras
ocasiões, eram simples frutos que se apresentavam para o sacrifício, e a história
da antiga Roma nos ensina que eles nunca tocavam nos frutos novos sem separar
antes a parte dos deuses.
Aprendemos que povos pagãos e selvagens, os deveres de
reconhecimento para com Deus; ora, se o homem oferecia em homenagem ao Criador
de todas as coisas as primícias de seus bens, devemos crer, ainda hoje, que
Deus também nos exige esses sacrifícios pacíficos de reconhecimento. Damos aos
pobres, oferecemos aos representantes de Deus sobre a terra os sacrifícios de
nossa generosa caridade,
quando o Senhor estende seu orvalho fecundo sobre nossos
campos e suas bênçãos sobre nossas empresas.
Quando Ele enche nossos celeiros de abundantes colheitas,
as nossas mãos devem, portanto, reconhecer sempre a parte de Deus, que se
tornará a parte do pobre.
Sacrifícios sangrentos - Várias razões levaram à sua
instituição e, aqui, falaremos somente das duas principais. Entre todos os
povos, em todos os tempos e sobre toda terra, havia a crença generalizada entre
os homens de que no sangue derramado havia uma virtude de purificação e
reconciliação do pecador com Deus. É o que são Paulo diz admiravelmente em sua
epístola aos Hebreus: Segundo a lei, quase todas as coisas se purificam com o sangue
e os pecados não são redimidos ao menos que ele seja derramado.. Assim, quando
o homem imolava uma vítima, ele reconhecia que, como pecador, ele merecia a
morte e, se em seu lugar ele oferecia um animal inocente, é porque Deus não
havia lhe dado direito sobre sua própria vida.
Para expressar melhor esta verdade, era prescrito àquele
que apresentava a vitima a obrigação de estender as mãos sobre sua cabeça.
Quando o sacrifício era para todo povo, os chefes faziam, em nome de todos, esta
cerimônia simbólica, cuja finalidade era lembrar a todos sobre o peso de seus
próprios pecados. Assim, se a vítima tomava o lugar do culpado, quanto mais
grave fosse o pecado, mais vil deveria ser o animal oferecido em expiação. Para
a idolatria, a maior das iniquidades, se imolava uma cabra; para a ignorância
dos sacerdotes, era um bezerro, e para a negligência do príncipe, um bode.
Há também outro motivo para os sacrifícios sangrentos,
mais misterioso e mais comovente. Os sacrifícios foram destinados para manter,
entre os homens, um pensamento de esperança e redenção. Após a queda, Deus
resolveu resgatar o culpado pela efusão do sangue de seu Filho divino. Ele quis
estabelecer um sinal sensível que perpetuasse esta promessa e figurasse, ao
mesmo tempo, o futuro sacrifício do Calvário. É assim que o sangue da vítima,
suas feridas, os seus sofrimentos, vieram, segundo os desejos admiráveis da sabedoria
divina, lembrar, sem cessar aos filhos de Adão o futuro Redentor derramando seu
sangue por eles, os curando de suas feridas, se fazendo o homem das dores,
que, segundo o discípulo bem amado, foi imolado desde o começo do mundo.
Os detalhes no qual entraremos agora vão nos clarear, mas
que o leitor nos permita antes, esta observação de Santo Agostinho, que a
propósito, não se deve esquecer: .os antigos sacrifícios, diz o grande doutor,
não eram perfeitamente suficientes para expressar o sacrifício de Jesus Cristo
em toda sua extensão. É por isso que esses significavam uma condição e aquele,
outra.
A
figura dos sacrifícios
O que impressiona, em primeiro lugar ao estudar os
sacrifícios antigos, é a estrita condição de que todas as vítimas eram
escolhidas entre os animais inocentes e entre os mais familiarizados com o
homem. Os animais selvagens ou deformados nunca eram admitidos no altar. Assim,
poder-se-ia, de uma maneira óbvia, dizer de Jesus Cristo, que se torna familiar
ao homem até se fazer a doce e santa vítima do Calvário, cujo sangue, infinitamente
puro, formado do sangue mais puro da mais santa das Virgens, pela operação do
próprio Espírito Santo?
Outra condição exigia que a vítima fosse o primeiro do
rebanho. Ainda aqui temos a figura do Salvador, que segundo a linguagem de são
Paulo, é o primeiro dentre os homens que se tornaram seus irmãos pela Encarnação.
Esses sacrifícios geralmente terminavam com uma refeição
onde se participava da carne da vítima, e todas as condições da vida social, se
achavam, por um instante, confundidas. Quem não enxerga, já nesse rito, uma imagem
do banquete eucarístico?
Ele termina a renovação do sacrifício da cruz todos os
dias sobre nossos altares; nele nos alimentamos da Vítima divina; todas as
classes se misturam junto de um Deus pobre e escondido.
As vítimas, após sua imolação, eram queimadas totalmente
ou em parte. De acordo com Santo Agostinho, podemos olhar a fumaça das vítimas
imoladas que se elevavam ao céu como uma imagem de Jesus Cristo.
Após ser imolado sobre a cruz, Ele ressuscita glorioso e
se eleva por sua Ascensão até o trono de Deus.
Esses são apenas resumos dos sacrifícios. Vamos
considerá-los em particular, afim de que a luz mais brilhante irrompa sobre o
assunto.
Sacrifício de Isaac - Este querido filho da promessa é
descrito no relato bíblico, escalando, após uma caminhada de três dias, que
foram para Abraão de uma agonia contínua, a montanha de Moria, e carregando ele
mesmo a madeira de seu sacrifício. Atado por seu pai sobre a fogueira, ele não
opõe nenhuma resistência. Ao ver a faca que vai mergulhar em seu peito, ele não
tem a menor reclamação em seus lábios.
Mas, a resignação do filho e a generosidade do pai
satisfizeram o Senhor, e um anjo detém o braço já levantado de Abraão e lhe
mostra, entre espinhos que se entrelaçam em seus chifres, um carneiro que foi imolado
no lugar de Isaac.
Dois mil anos se passaram, e eis que um dia, o Filho
divino da promessa, o Filho único e bem amado do Eterno, o verdadeiro Isaac,
carrega a madeira de seu sacrifício, subindo, em silêncio, as mesmas trilhas
que havia percorrido antes dele, o filho de Abraão10. Pregam-no na cruz; não se
ouve nenhuma reclamação. É a mão de seu Pai que, de alguma forma empurra os
pregos pela mão do carrasco, e, para adicionar um último recurso, vemos o
Cordeiro divino, assim como o nomeiam os padres, com os espinhos na fronte,
imolado em nosso lugar.
Sacrifício do cordeiro pascal - Era prescrito imolá-lo de tarde; não
podendo quebrar-lhe nenhum osso. S. Justino nos fornece um detalhe comovente de
que os membros do cordeiro eram dispostos em forma de cruz diante os presentes.
As portas dos Israelitas avermelhadas de seu sangue
estavam preservadas da espada do Anjo da morte. Considerando a imagem, não se
vê o Cordeiro de Deus morto na tarde do sábado, a Vítima santa, a quem os soldados
não quebraram nenhum osso, e cujo sangue derramado sobre nossas frontes pelo
santo batismo nos arranca da morte eterna?
Nessas comparações, Luis de Lion, acrescenta: “Se corta,
diz ele, o Cordeiro pascal e se o come inteiramente, a carne, as vísceras, a
cabeça. Não há parte no Salvador, onde a faca não tenha penetrado, onde o dente
de seus inimigos não tenha mordido: as costas, os pés, as mãos, a cabeça, as
orelhas, os olhos, a própria boca que foi preenchida de fel. Sua alma
santíssima foi transpassada pela dor”.
Sacrifício da vaca
vermelha - Para esse
sacrifício, a vítima deveria ser de cor vermelha e de idade perfeita. Era
preciso que o julgo jamais houvesse pesado sobre ela, e ela deveria ser imolada
fora do campo. Encontramos tudo isso na imolação do Calvário. A Vítima divina
não oferece mais do que uma imensa ferida. Ela é toda avermelhada em seu
sangue. Ela tem a plenitude da idade, 33 anos. Livre, ela jamais conheceu o julgo do pecado, enfim, foi fora dos
muros de Jerusalém que lhe crucificaram.
Entregará a vítima ao sumo sacerdote, havia prescrito o
Senhor sobre este sacrifício, e este, após a ter conduzido fora do campo, a
imolará na presença de todo o povo.
Todos aqueles que participaram de sua morte serão
contaminados e permanecerão impuros até a tarde16. Que detalhes proféticos! Não
é o povo que entrega Jesus Cristo ao grande sacerdote Caifás? Todo o povo
judeu, reunido em Jerusalém para a Páscoa, não foi testemunha da morte de Nosso
Senhor? Enfim, esse mesmo povo, culpado do sangue de Cristo, não portará até o
fim dos dias a mancha indelével de seu crime?
Sacrifício de duas
rolinhas - Mencionaremos
esse sacrifício por causa do interesse particular ligado a ele: o oferecimento
dele pela augusta Virgem no dia da Purificação. Vamos ouvir Monsenhor Ollier:Os
mistérios da morte e da ressurreição de Nosso Senhor formam os termos do
sacrifício oferecido exteriormente no templo no dia da Purificação. Eles eram
representados por duas rolinhas, que, segundo a Escritura, deveriam ser
apresentadas para Deus a fim de tomar o lugar do Filho e, para significar o
sacrifício ao qual Ele estava destinado. Uma dessas pombas, ou rolinhas, era
oferecida em sacrifício pelo pecado, e, nesse sacrifício, o animal era degolado
e seu sangue derramado sobre o altar para representar a morte e a imolação de
Jesus Cristo na cruz. A outra era lançada no fogo, e lá era consumida
inteiramente. Por isso, chamavam-no (este ato) de holocausto, e ele representava a
ressurreição de Jesus Cristo, abandonado em Deus e consumido pelo fogo de sua
divindade. É por isso que Simeão, de forma profética, fala desses dois mistérios
à santa Virgem. Ele será, em sua morte e em sua ressurreição, a causa da morte
e da ressurreição de muitos.
Que dor pungente para a alma de Maria, testemunha da
imolação desta vítima inocente que esboça a imolação desta outra vítima
inocente que repousa sobre seu coração! Mas também para ela, que penhor de esperança
ao ver a outra vítima consumida e destruída pelo fogo do holocausto! Inspirada
do alto, ela vislumbrou sob este símbolo, seu Filho glorificado, transfigurado,
consumido pela divindade na manhã de sua ressurreição.
O sacrifício do Bode
Expiatório - Tinha
também um alto significado. Tomavam-se dois bodes. Um era imolado e o outro era
reconduzido solto após ter sido carregado das iniquidades de todo o povo. O bode
imolado marcava a natureza humana de Jesus Cristo, que sofreu a morte. O bode
reenviado marcava a natureza divina que não pode morrer. Esses dois bodes,
oferecidos conjuntamente à Deus, pertenciam a um único sacrifício. Jesus
Cristo, Deus e homem, se oferece a Deus. O homem morre, Deus subsiste, mas o Homem
Deus quis carregar os pecados do mundo e tomar a forma do homem pecador, para
nos salvar.
Sacrificavam-se para Deus, na antiga lei, somente três
tipos de quadrúpedes, os da raça bovina, ovinos e caprinos. Eles também
sacrificavam três espécies de aves, a rolinha e a pomba, que eram usadas em
todo tipo de sacrifício, e o pardal, usado no sacrifício para a purificação dos
leprosos. Santo Tomás nos dá a razão disso: Deus assim prescreveu, para
oferecer a imagem do Salvador. O bezerro representava Jesus Cristo na virtude
de sua cruz; o cordeiro, em sua inocência; o carneiro em sua força; o bode, na forma
de pecador que Ele revestiu; a rolinha e a pomba, na união de suas duas
naturezas; ou separadamente, a rolinha, em sua castidade, e a pomba, em sua
caridade.
No sacrifício não sangrento, se oferecia pão, vinho,
óleo, sal e incenso, mas nunca o mel que era proscrito por ordem de Javé. Aqui
também temos sempre a figura de Jesus Cristo: o pão representava a carne
sagrada na Eucaristia; o vinho, seu sangue precioso; o óleo, sua graça
fortificante; o sal, sua ciência; o incenso, sua oração. O mel, símbolo dos
prazeres, não teria sido um contrassenso no sacrifício de uma Vítima que deveria
se chamar o homem de todas as dores?
Nossa intenção não é fazer um estudo de todos os
sacrifícios antigos. Os limites desta obra não o permitem. O que dissemos pode
ser suficiente para solidificar esta convicção de que todas as vítimas da lei
antiga eram somente a sombra da grande Vítima, que o mundo esperava, e que
ainda nos resta dizer uma palavra.
O
verdadeiro Sacrifício
Os sacrifícios da antiga lei eram numerosos. Os livros
santos nos oferecem um exemplo bem notável. Somente para a dedicação do templo,
Salomão imolou ao Senhor doze mil bois e cento e vinte mil ovelhas.
Este sangue, por mais abundante que tenha sido, não
podia, diz o grande Apóstolo, expiar o pecado. A falta original tinha aberto
entre Deus e o homem um abismo.
Nenhuma vítima até aí poderia preenchê-lo. A razão para
essa impotência é de fácil compreensão: a vítima imolada participava de algum
modo da maldição lançada sobre a terra no dia da queda. Por outro lado, o sacrificador
só podia elevar ao céu uma mão
maculada, pois todo homem é pecador, testemunha o
Espírito Santo23. Como a reconciliação poderia, então, se operar por um sangue
impuro e por uma mão maculada? Era necessário, portanto, diz o Apóstolo: um sacerdote
santo, inocente, sem mancha, não tendo nada em comum com os pecadores, elevado
por sua santidade acima dos céus24., oferecendo também uma vítima
santa que Deus pudesse considerar com um olhar complacente. Um pontífice
inocente e uma vítima sem mancha podem ser encontrados em um mundo onde tudo é
pecado ou tudo é maldito?
Ou, não precisamos de um sacerdote e de uma vítima
agradável à Deus, para não permanecermos sob o peso da cólera do céu?
O Deus da eterna misericórdia veio em nosso socorro.
Mergulhe vosso olhar nas profundezas dos céus, Verbo divino está ao pé do trono
do Eterno. Escute estas palavras que emocionam os anjos: Meu Pai, o Senhor não
quer sacrifícios, nem holocaustos, eles não podem vos agradar. É-Lhe necessária
outra vítima. Esta vítima serei Eu. Eis-me aqui, abate-se. Deixe cair os golpes
de vossa justa cólera.
Sabemos como o Filho de Deus se fez, para nós, ao mesmo
tempo vítima e sacerdote. Vítima, pois seu sangue fluiu até a última gota, de
suas veias que o amor tinha secado. Sacerdote, porque Ele se entrega, Ele mesmo,
nas mãos dos carrascos. Tal sacrifício desarmou o braço de Deus, e a terra pôde
ouvir estas palavras, caídas do alto dos céus, como uma promessa de
reconciliação: Este é meu Filho bem-amado, Nele coloco toda minha afeição.
Tal foi o sacrifício sangrento dos cristãos. Jesus Cristo
não limitou sua misericórdia. Ele queria que a lei do novo testamento fosse
também seu sacrifício não sangrento. Seu amor ardente o trouxe para suportar,
todos os dias, os sofrimentos renovados de sua paixão. Mas Jesus Cristo ressuscitado,
não podendo mais nem sofrer, nem morrer, soube ainda, nos segredos de sua
infinita bondade, achar o meio de se imolar realmente e a cada instante, sem
sofrer nem morrer. Para este fim, foi instituído o santo sacrifício da Missa,
que não é mais do que o sacrifício da cruz, renovado, no meio de nós, de uma
maneira não sangrenta e sob os véus do mistério.
O Culto Católico Em suas cerimônias e em seus símbolos - Abbé A. Durand. Tradução: Robson Carvalho.
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