A Idade Média não era tão
diferente dos tempos modernos, como credes; as
leis eram diferentes, assim como os usos e os costumes, mas
as paixões humanas eram as mesmas. Se um de nós foss transportado para a Idade
Média veria ao seu redor trabalhadores, soldados, padres, economistas,
desigualdades sociais, ambições, traições. “O QUE MUDOU FOI O OBJETIVO DA ATIVIDADE
HUMANA”. Não se poderia dizer de melhor maneira. Os homens da Idade Média
eram da mesma natureza que a nossa, natureza inferior à dos anjos e, ademais,
decaída. Eles tinham nossas paixões, deixavam-se, como nós, arrastar por elas,
frequentemente a excessos mais violentos. Mas o objetivo era a vida eterna: os
usos, as leis e os costumes inspiravam-se nela; as instituições religiosas e
civis dirigiam os homens para seu fim último, e a atividade humana se dirigia,
em primeiro lugar, à melhoria do homem interior. O que conta como “progresso” não é o que
contribui para uma maior perfeição moral do
homem, mas o que aumenta seu domínio sobre a matéria e a natureza, a fim de
colocá-las mais completa e docilmente a serviço do bem-estar temporal.
Para alcançar esse
bem-estar foram sucessivamente proclamadas a independência da razão relativamente à Revelação, a independência da sociedade civil relativamente à
Igreja, a independência da moral relativamente à lei de Deus: três etapas na
via do PROGRESSO perseguido pela Renascença, pela Reforma e pela Revolução.
Não se deve crer que os
humanistas, literatos e artistas, cujas aberrações vimos do tríplice ponto de vista
intelectual, moral e religioso, não formassem senão pequenos cenáculos fechados, sem
eco, sem ação no exterior. Ademais, era na corte dos príncipes que os
humanistas tinham suas academias; era ali que compunham seus livros; era ali que
espalhavam suas ideias, que estabeleciam seus costumes; e é
sempre do alto que desce
todo mal e todo bem, toda perversão assim como toda edificação.
Não há, pois, motivo para
espanto se a Reforma, que foi uma primeira tentativa de aplicação prática das
novas ideias formuladas pelos humanistas, foi recebida e propagada com tanto
ardor pelos príncipes na Alemanha e em outras partes e se ela encontrou no povo
acolhimento tão fácil.
A resistência foi muito
fraca na Alemanha; foi mais vigorosa na França. O cristianismo tinha penetrado
mais profundamente nas almas de nossos pais do que em qualquer outro lugar;
combatido na sua teoria pelos humanistas, ele sobreviveu mais tempo na maneira
de viver, de pensar e de sentir. Daí, entre nós, uma luta mais encarniçada e
mais prolongada. Ela começou pelas guerras de religião, continuou na Revolução,
ela dura sempre, como muito bem assinalou Waldeck-Rousseau.
As diversas peripécias
desse longo drama mantêm em expectativa o céu, a terra e o inferno; porque se a
França decidir-se por rejeitar o veneno revolucionário, ela restaurará no mundo
inteiro a civilização que ela foi a primeira a compreender, a adotar e a propagar. Se
ela sucumbir, o mundo terá tudo temer.
O protestantismo veio-nos
da Alemanha, e, sobretudo de Genebra. Ele foi bem denominado. Era impossível
qualificar a Reforma de Lutero com uma palavra diferente de protesto,
porque ela é protesto contra a civilização cristã, protesto contra a Igreja que
fundara essa civilização, protesto contra Deus, do qual essa civilização emanava. O protestantismo
de Lutero é o eco sobre a terra do Non serviam de Lúcifer. Ele proclama a
liberdade, a dos rebeldes, a de Satã: o liberalismo. Ele diz
aos reis e aos príncipes: “Empregai vosso poder para sustentar e para
fazer triunfar minha revolta contra a Igreja e eu vos entrego toda a autoridade religiosa”.
Tudo o que a Reforma tinha
recebido da Renascença e que ela devia transmitir à Revolução está contido
nesta palavra: Protestantismo.
Comunicado de indivíduo a indivíduo, o protestantismo logo ganhou província
após província. O historiador alemão e protestante Ranke, diz qual foi seu
grande meio de sedução: o desregramento
moral, que a Renascença havia colocado em lugar de honra. Muitas pessoas
abraçaram a Reforma, diz ele, com a esperança de que ela
lhes asseguraria uma maior liberdade na conduta privada. Com efeito, existe entre
o catolicismo e o protestantismo, tal como pregou Lutero, uma diferença radical
sob esse aspecto. O catolicismo promete
recompensas futuras para a virtude e ameaça o vício com castigos eternos;
por aí, ele põe o mais poderoso freio às paixões humanas. A Reforma vinha
prometer o paraíso a todo o homem,
mesmo ao mais criminoso, com a única ressalva de um ato de fé interior para a justificação pessoal, por imputação
dos méritos de Cristo. Se, pelo só efeito dessa persuasão, que é fácil de
conceder, os homens recebem a garantia de ir ao paraíso, mesmo continuando a se entregarem ao pecado, e mesmo ao crime,
muito tolo seria aquele que renunciasse a obter aqui em baixo tudo o que
encontra à sua disposição.
Deus, no entanto, não
deixou Sua Igreja sem socorro nesta, como em nenhuma outra provação. Santos,
entre outros São Bernardino de Siena, não cessaram de advertir e de mostrar o
perigo. Eles não foram ouvidos. E foi por isso que a Renascença engendrou a
Reforma e a Reforma a Revolução, cujo objetivo é aniquilar a civilização
cristã para substituí-la em todo o universo pela civilização dita moderna.
A partir de Clóvis, o
catolicismo não tinha deixado um só dia de ser a religião do Estado. Das tradições carolíngias e merovíngias foi a única conservada completamente
intacta até a Revolução. Durante meio século os protestantes tentaram separar
de sua Mãe a filha primogênita da Igreja; usaram alternadamente a astúcia e a
força para se apoderarem do governo, para colocar o povo francês tão católico
sob o jugo dos reformadores, como acabavam de fazer na Alemanha, na Inglaterra,
na Escandinávia. Estiveram prestes a conseguir.
Os huguenotes tinham a
intenção de substituir a monarquia cristã por um governo e um gênero de vida
“modelados segundo os de Genebra”, quer dizer, a república. “Os huguenotes, diz Tavannes, estão a
caminho de fundar uma democracia”. O jurista protestante François Hatman exerceu
sobre os espíritos, no sentido democrático, uma grande influência com seu livro
Franco-Gallia, 1573. Ele coloca a serviço das teorias
republicanas uma história à sua maneira, para conduzir, com grande reforço de
textos e de afirmações, os franceses à “sua constituição primitiva”. “A
soberana e principal administração do reino, dizia ele, pertence à geral e solene assembleia dos
três Estados”. O rei reina, mas não
governa. O Estado, a República é tudo, o rei quase nada. Ele joga
seus leitores na plena soberania do povo.
O Franco-Gallia
teve uma repercussão enorme. O sistema exposto nesse livro é a
democracia tal como compreendida hoje em dia. Essa forma de governo, dando aos agitadores fácil acesso aos primeiros cargos do Estado, propicia-lhes o poder para propagarem suas
doutrinas; ao mesmo tempo, ela dá melhor resposta às ideias de independência
que estavam no fundo da Reforma, ao direito que a Renascença queria conferir ao homem para que se dirigisse por
ele mesmo em direção ao ideal de felicidade que ela lhe apresentava. A
França, por causa dos huguenotes, estava à beira do abismo.
A situação não era menos
crítica para a Igreja Católica. Ela acabava de perder a Alemanha, Escandinávia,
a Inglaterra e a Suíça; os Países Baixos se insurgiam contra Ela. O objetivo
mais constante de todo o partido protestante, para o qual Coligny não cansou de
trabalhar, era arrastar a França para uma liga geral com todos os Estados
protestantes, para esmagar a Espanha, única grande nação católica que
permaneceu poderosa. Isto teria sido a ruína completa da civilização cristã.
Deus não o permitiu e a
França também não. Os Valois fraquejavam, hesitavam, adotavam variações na sua
política. A Liga nasceu para tomar em suas mãos a defesa da fé, para mantê-la
na nação e no governo do país. Os católicos, que, formavam agora a quase
totalidade dos franceses, quiseram ter chefes absolutamente inquebrantáveis
em sua fé. Escolheram a Casa de Guise. “Em qualquer apreciação que se
faça sobre as guerras de religião, diz Boselli, é impossível desconhecer
que a Casa de Guise foi, durante todo esse período, a própria encarnação
da religião do Estado, do culto nacional e tradicional ao qual tantos franceses
permaneciam unidos. Ela personificou a ideia da fidelidade católica. Os Guise
provavelmente ter-se-iam tornado reis de França se Henrique III se tivesse
feito
protestante, ou se Henrique IV não se tivesse feito católico”.
Deus quis conservar à
França sua estirpe real, como Ele havia feito uma primeira vez pela missão dada a
Joana d'Arc. O herdeiro do trono, segundo a lei sálica, era Henrique de Navarra, aluno
de Coligny, protestante e chefe dos protestantes. Deus mudou seu coração. A
França recobrou a paz, e Luís XIII e Luís XIV recolocaram nosso país no caminho da
civilização católica. Digamos, entretanto, que esse último cometeu essa falta, que
por si devia ter graves consequências, de desejar a declaração de 1682. Ela
trazia nos seus flancos a constituição civil do clero, ela começava a obra,
nefasta entre todas, da secularização que prossegue hoje até às suas últimas
consequências.
Luís XV, que se abandonou
aos usos da Renascença, viu a obra de descristianização iniciada pela Reforma
ser retomada por Voltaire e pelos enciclopedistas precursores de Robespierre,
ancestrais daqueles que nos governam atualmente. Taine disse com muita
propriedade:
“A Reforma não é senão um movimento particular dentro de uma revolução que
começou antes dela”. O século XIV abre o caminho; e depois, cada século
se ocupa apenas a preparar, na ordem das ideais, novas concepções, e, na ordem
prática, novas instituições. Desde aquele tempo, a sociedade não mais reencontrou
seu guia na Igreja, nem a Igreja Sua imagem na sociedade”.
A Conjuração Anticristã, O Templo Maçônico que
quer se erguer sobre as ruínas da Igreja Católica (tomo
I) – Monsenhor Henri Delassus
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