Papa Pio IX, autor do Syllabus |
O
Syllabus de Pio IX termina com esta proposição condenável e condenada:
“O
Pontífice romano pode e deve se reconciliar e transigir com o progresso, o liberalismo
e a civilização moderna”.
A última proposição do
decreto que se chamou o Syllabus de Pio
X, proposição igualmente condenável e
condenada, está concebida assim:
“O catolicismo de hoje não se pode
conciliar com a verdadeira ciência, a menos que se transforme num
cristianismo não dogmático, isto é, num protestantismo sábio e Liberal”.
É necessário que a Igreja
se reconcilie com a civilização moderna. E a base proposta para essa
reconciliação é, não a aceitação dos dados da verdadeira ciência, que a Igreja
jamais repudiou, que Ela sempre favoreceu, cujos progressos Ela sempre aplaudiu
e para o qual contribuiu mais do que qualquer outra instituição; mas o abandono
da verdade revelada, abandono que transformaria o catolicismo num protestantismo largo e
liberal, no qual todos os homens pudessem se reencontrar,quaisquer que fossem suas
ideias a respeito de Deus, de Suas revelações e de Seus mandamentos.
“O objetivo último do homem é ser feliz” diz Bossuet. Isto não é exclusivo dele: é o fim para o qual tendem
todas as inteligências, sem exceção. O grande orador não falha em reconhecer isso: “As
naturezas inteligentes não têm vontade nem desejo senão para sua
felicidade”. E acrescenta: “Nada de mais razoável, porque o que há de melhor do que
desejar o bem, quer dizer, a felicidade?” Assim,
encontramos no coração do homem um
impulso invencível, que o impele a procurar a felicidade. Se quisesse, não poderia se
desfazer dele. É o fundo de todos os seus pensamentos, o grande móvel de todas as
suas ações; e mesmo quando ele se atira à morte, é por estar persuadido de achar no nada uma sorte preferível àquela na qual
ele se vê. O homem pode se enganar, e
de fato ele se engana muito frequentemente na busca da felicidade, na
escolha da via que deve levá-lo a ela. “Colocar a felicidade
onde ela está é a fonte de
todo o bem, diz ainda Bossuet; e a fonte de todo o mal consiste em colocá-la onde não é
preciso”. Isto é tão verdadeiro para a sociedade como para
o homem individual. O impulso em direção à felicidade vem do Criador, e Deus nele acrescenta Sua
luz para iluminar o caminho, diretamente por Sua graça, indiretamente pelos ensinamentos de Sua Igreja. Mas
pertence ao homem, indivíduo ou sociedade, o livre
arbítrio dirigir-se, ir buscar sua felicidade ali onde lhe agrada colocá-la, no
que é realmente bom, e, acima de toda bondade, no Bem absoluto, Deus; ou naquilo
que têm apenas as aparências do bem,
ou que não é senão um bem relativo.
Desde a criação do gênero
humano o homem se desviou do bom caminho. Ao invés de crer na palavra
de Deus e de obedecer à Sua determinação, Adão deu ouvidos à voz encantadora
que lhe dizia para colocar seu fim nele mesmo, na satisfação de sua
sensualidade, nas ambições de seu orgulho. “Sereis como deuses”; “o fruto da árvore era bom de comer, belo
de ver, e de um aspecto que excitava o desejo”. Tendo assim se desviado desde o
primeiro passo, Adão arrastou sua descendência na direção que ele acabava de tomar.
Deus teve piedade dela. No Seu conselho de infinita misericórdia e de infinita
sabedoria, Ele resolveu recolocar o homem sobre o caminho da felicidade. E a
fim de tornar Sua intervenção mais eficaz, Ele quis que uma Pessoa divina
viesse sobre a terra mostrar o caminho por Sua palavra, tocar os homens por Seu
exemplo. O Verbo de Deus se encarnou e veio passar trinta e três anos entre
nós, para nos tirar da via da perdição e para nos abrir a estrada de uma
felicidade não enganosa. Suas palavras e Seus atos derrubavam todas as ideias
até então aceitas. Ele dizia: Bem-aventurados os pobres! Bem- aventurados os
mansos, os pacíficos, os misericordiosos! Bem-aventurados os puros! Até a vinda
dEle, dizia-se: Bem-aventurados os ricos! Bem-aventurados aqueles que dominam!
Bem-aventurados os que vivem sem nada recusar às suas paixões! Ele tinha
nascido em um estábulo, fizera-Se o servidor de todos, sofrera morte e paixão,
a fim de que não se considerassem suas palavras meras declamações, mas lições,
as mais persuasivas lições que possam ser concebidas, dadas que eram por um
Deus, e um Deus que Se aniquilou por amor a nós.
Ele quis perpetuar essas
lições, torná-las sempre expressivas e operantes aos olhos e nos ouvidos de
todas as gerações que deviam vir. Para isso Ele fundou a Santa Igreja.
Estabelecida no centro da humanidade, Ela não cessou, pelos ensinamentos de
seus doutores e pelos exemplos de seus santos, de dizer a todos os que Ela viu passar sob
seus olhos: “Procurais, ó mortais, a felicidade, e procurais uma coisa
boa; ficai atentos apenas para não procurardes onde ela não está”.
Do século I ao século
XIII, os povos tornaram-se cada vez mais atentos a essa pregação, e o número
dos que dela fizeram luz e regra de vida foi cada vez maior. Sem dúvida, havia
fraquezas, fraquezas das nações e fraquezas das almas.
Nosso Senhor Jesus Cristo,
com Seu Novo Testamento, era o doutor escutado, o guia seguido, o rei obedecido.
Sua realeza era tal ponto reconhecida
pelos príncipes e pelos povos, que eles a proclamavam até em suas moedas. Em
todas estava gravada a cruz, o signo augusto da ideia que o cristianismo tinha
introduzido no mundo, que era o
princípio da nova civilização, da civilização cristã, que devia regê-lo, o
espírito de sacrifício oposto à ideia pagã, ao espírito de gozo que tinha
construído a civilização antiga, a civilização pagã.
À medida que o espírito
cristão penetrava as almas e os povos, almas e povos cresciam na luz e no bem,
se elevavam pelo só fato de verem a felicidade no alto e de a carregarem consigo. Os
corações tornavam-se mais puros, os espíritos mais inteligentes. Os
inteligentes e os puros introduziam na sociedade uma ordem mais harmoniosa, aquela que
Bossuet nos descreveu no sermão sobre a eminente dignidade dos pobres. A ordem
mais perfeita tornava a paz mais geral e mais profunda; a paz e a ordem
engendravam a prosperidade, e todas essas coisas davam ensejo às artes e às ciências, esses reflexos da
luz e da beleza dos céus. De sorte que, como observou Montesquieu: “A religião cristã, que parece não ter outro
objetivo além da felicidade da outra vida, ainda constrói nossa felicidade
nesta”.
OBS: A
Igreja foi a grande responsável pelo progresso científico e cultural da Europa.
Ao contrário do que se é pregado hoje nas obscurantistas cátedras
universitárias por professores comunistas/marxistas.
A ascensão, não direi das
almas santas, mas das nações, teve seu ponto culminante no século XIII. São
Francisco de Assis e São Domingos, com seus discípulos São Luís de França e
Santa Elisabete da Hungria, acompanhados e seguidos por tantos outros,
mantiveram por algum tempo o nível que havia sido atingido pela emulação que tinham
excitado nas almas os exemplos de desapego das coisas deste mundo, de caridade
em relação ao próximo e de amor a Deus, que tantos outros santos tinham dado.
Mas enquanto essas almas nobres atingiam os mais altos cumes da santidade,
muitas outras esfriavam no seu entusiasmo por Deus; e por volta do fim do
século XIV, manifestou-se abertamente o movimento de retrocesso que arrebatou a
sociedade e que a conduziu à situação atual, quer dizer, o triunfo próximo, o
reino iminente do socialismo, fim obrigatório da civilização moderna. Porque enquanto
a civilização cristã elevava as almas e tendia a dar aos povos a paz social e a prosperidade mesmo temporal, o fermento da civilização pagã tende
a produzir seus últimos efeitos: a procura, por todos, de todos os prazeres; a
guerra, para consegui-los, de homem contra homem, de classe contra classe, de
povo contra povo; guerra que não poderia terminar senão com o aniquilamento do
gênero humano.
A dupla concepção de vida
O paganismo, empurrando o
gênero humano pelo declive em que o pecado original o colocara, dizia ao homem
que ele estava sobre a terra para fruir a vida e os bens que este mundo lhe
oferece. O pagão não ambicionava, não
buscava nada além disso; e a sociedade pagã estava constituída para oferecer
esses bens tão abundantes e esses prazeres tão refinados, ou também tão
grosseiros quanto possam ser, para os que estavam em situação de pretendê-los.
A civilização antiga nasceu desse princípio, todas as suas instituições dele
decorriam, sobretudo as duas principais, a escravidão e a guerra. Os povos
fortes subjugavam os povos fracos, e os cidadãos escravizavam os estrangeiros e
mesmo seus irmãos, para obter produtores de riquezas e instrumentos de prazer.
O cristianismo chegou e
fez o homem compreender que devia procurar numa outra direção a felicidade cuja necessidade não cessa de atormentá-lo.
Ele destruiu a noção que o pagão criara da vida presente. O divino Salvador
ensinou-nos por Sua palavra, persuadiu-nos por
Sua morte e ressurreição, que se a vida presente é uma vida, ela
não é A VIDA que Seu Pai nos destinou.
A vida presente não é senão a preparação para a vida eterna.
Aquela é o caminho que conduz a esta. Nós estamos in
via, diziam os escolásticos, caminhando ad terminum, na
estrada para o céu. No céu nós veremos a Deus face a face, é a grande promessa que nos foi feita.
Todos os seres vivos têm
sua maneira de conhecer, limitada por sua própria natureza. A planta tem um
certo conhecimento das substâncias que devem servir à sua manutenção, posto que
suas raízes se estendem em direção a elas, procurando-as para ingeri-las. Esse
conhecimento não é uma visão. O animal vê, mas ele não tem a inteligência das
coisas que seus olhos abarcam. O homem compreende essas coisas, sua razão as
penetra, abstrai as ideias que elas contêm e através delas se eleva à ciência. Mas as
substâncias das coisas permanecem escondidas, porque o homem é apenas um animal
racional e não uma pura inteligência. Os anjos, inteligências puras, veem a si
mesmos na sua substância, podem contemplar diretamente as substâncias da mesma
natureza da deles, e com mais razão as substâncias inferiores.
Mas eles não podem ver a Deus. Deus é uma substância à parte, de uma ordem
infinitamente superior. O maior esforço do espírito humano conseguiu qualificá-Lo de “ato puro”, e a
Revelação nos diz que Ele é uma trindade de pessoas na unidade da
substância, a segunda engendrada pela primeira, a terceira que procede das outras
duas, e isso numa vida de inteligência e de amor que não tem começo nem fim. Ver a Deus
como Ele é, amá-Lo como Ele Se ama e nisto
consiste a beatitude prometida está
acima das forças de toda natureza criada e mesmo possível. Para
compreendê-Lo, essa natureza não deveria ser nada menos que igual a Deus.
Mas aquilo que não tem
cabimento pela natureza pode sobrevir pelo dom gratuito de Deus. Nós não
podemos chegar a isso senão por alguma coisa de sobre acrescentado, que nos
eleva acima de nossa natureza, que nos torna capazes daquilo de que somos
radicalmente impotentes por nós mesmos, como seria o dom da razão para um
animal ou o dom da visão para uma planta. Essa alguma coisa é chamada aqui em
baixo de graça santificante. “Bem-amados,
diz o apóstolo São João, agora somos filhos de Deus, e aquilo que um dia
seremos ainda não se manifestou: seremos semelhantes a Ele, porque nós O
veremos tal como Ele é” (I Jo., III, 2).
Essa alguma coisa nós a
recebemos desde este mundo, no santo Batismo. O apóstolo São João a chama um
germe (I Jo., III, 9), isto é, o início de uma vida. Era o que Nosso Senhor nos
assinalava quando falava a Nicodemos sobre a necessidade de um novo nascimento,
de uma geração para a nova vida: a vida que o Pai tem n’Ele mesmo, que Ele dá
ao Filho, e que o Filho nos traz ao nos enxertar n’Ele pelo Santo Batismo. Essa palavra enxerto, que
dá uma imagem tão viva de todo o mistério, São
Paulo a tomara de Nosso Senhor, que disse
a Seus apóstolos: “Eu sou a videira, vós sois os ramos. Assim como
o ramo não pode dar fruto por si só, sem permanecer na videira, assim também vós, se não
permanecerdes em Mim”.
Isto não quer dizer que
desde o momento em que o cristianismo foi pregado os homens não pensaram em
mais nenhuma outra coisa que não fosse a sua santificação. Eles continuaram a
perseguir as finalidades secundárias da vida presente, e a cumprir, na
família e na sociedade, as funções que elas requerem e os deveres que elas impõem.
Ademais, a santificação não se opera unicamente pelos exercícios espirituais,
mas pelo cumprimento de todo dever de estado, por todo ato feito com pureza de intenção.
Além disso, permaneceram
na sociedade, e nela permanecerão até o fim dos tempos, as duas categorias de
homens que a Santa Escritura tão bem denomina: os bons e os maus. Todavia é de
se reparar que o número dos maus diminui e o número dos bons aumenta à medida
que a fé adquire mais influência na sociedade. Estes, porque têm a fé na vida
eterna, amam a Deus, fazem o bem, observam a justiça, são os benfeitores de
seus irmãos, e por tudo isso fazem reinar na sociedade a segurança e a paz.
Aqueles, porque não têm fé, porque seus olhares ficaram fixados nesta terra, são
egoístas, sem amor, sem piedade por seus semelhantes: inimigos de todo o bem, eles são na sociedade uma
causa de discórdia e de impedimento para a civilização.
Misturados uns aos outros,
os bons e os maus, os crentes e os incrédulos, formam as duas cidades descritas
por Santo Agostinho: “O amor a si, que pode ir até ao desprezo de Deus,
constitui a sociedade comumente chamada “o
mundo” o amor a Deus, levado até ao desprezo de si mesmo, produz a
santidade e povoa “a vida celeste ”.
À medida que a nova
concepção da vida trazida por Nosso Senhor Jesus Cristo à terra entrou nas
inteligências e penetrou nos corações, a sociedade se modificou: o novo ponto de vista mudou
os costumes, e, sob a pressão das ideias e dos costumes, as instituições se
transformaram. A escravidão desapareceu, e ao invés de se ver os poderosos subjugarem seus
irmãos, viu-se-os se dedicarem até ao heroísmo para obter-lhes o pão da vida
presente, e também, e sobretudo, para obter-lhes o pão da vida espiritual, para
elevar as almas e santificá-las. A guerra não mais foi feita para se apoderar dos territórios
de outrem, e conduzir homens e mulheres à escravidão, mas para quebrar os obstáculos
que se opunham à expansão do reino de Cristo e obter para os escravos do
demônio a liberdade dos filhos de Deus.
Facilitar, favorecer a
liberdade dos homens e dos povos nos seus passos em direção ao bem, tornou-se a
finalidade para a qual as instituições sociais se encaminharam, senão sua
finalidade expressamente determinada. E as almas aspiraram ao céu e trabalharam
para merecê-lo. A busca dos bens temporais pelo gozo que deles se pode tirar não foi mais o único nem mesmo o principal
objeto da atividade dos cristãos, pelo menos dos que estavam
verdadeiramente imbuídos do espírito
do cristianismo, mas a busca dos bens espirituais, a santificação da alma, o crescimento
das virtudes, que são o ornamento e as verdadeiras delícias da vida daqui de
baixo, e ao mesmo tempo garantia da bem-aventurança eterna.
Tal foi a obra da Idade
Média (Idade da Luz). Durante seu curso, a Igreja realizou uma tripla tarefa.
Ela lutou contra o mal que provinha das diversas seitas do paganismo e o destruiu; ela transformou
os bons elementos que se encontravam entre os antigos romanos e as diversas
espécies de bárbaros; enfim, Ela fez triunfar a ideia que Nosso Senhor Jesus Cristo dera
da verdadeira civilização. Para aí chegar, Ela tinha-Se empregado primeiramente
em reformar o coração do homem; daí viera a
reforma da família, a família reformara o Estado e a sociedade: via
inversa daquela que o ocidente apóstata segue hoje (verdadeira idade das
trevas).
Início da Civilização Moderna
O século XIII foi o apogeu
da civilização cristã: “Talvez jamais a Esposa de Cristo tenha reinado com um
império tão absoluto sobre o pensamento e sobre o coração dos povos...
Então, mais do que em nenhum outro momento desse rude combate,
o amor de seus filhos, sua dedicação sem limites, sua quantidade e sua coragem
a cada dia crescentes, os santos que Ela via eclodir diariamente entre eles, ofereciam
a essa Mãe imortal forças e consolações das quais Ela não foi cruelmente privada
senão depois de muito tempo. Graças a Inocêncio III, que continua a obra de Gregório
VII, a cristandade é uma vasta unidade
política, um reino sem fronteira, habitado por múltiplas raças. Os senhores e os
reis tinham aceitado a supremacia
pontifícia. Foi preciso que viesse o protestantismo para destruir essa obra”.
Antes mesmo do
protestantismo, um primeiro e rudíssimo golpe foi dado na sociedade cristã, a
partir de 1308. O que constituía a força dessa sociedade era, como diz Montalembert,
a reconhecida e respeitada autoridade do Soberano Pontífice, o chefe da
cristandade, o regularizador da civilização cristã. Essa autoridade foi contraditada,
insultada e quebrada pela violência e pela astúcia do rei Filipe IV, na perseguição
a que ele submeteu o Papa Bonifácio VIII; ela também foi diminuída pela complacência
de Clemente V relativamente a esse mesmo rei, que chegou até a mudar a sede do
Papado para Avignon em 1305. Urbano VI não deveria voltar a Roma senão em 1378.
Durante esse longo exílio, os Papas perderam uma boa parte de sua independência
e seu prestígio encontrou-se singularmente enfraquecido. Quando retornaram a
Roma, após setenta anos de ausência, tudo estava pronto para o grande cisma do
Ocidente, que iria durar até 1416, e que por um momento decapitou o mundo
cristão.
Desde então, a força
começou a avantajar-se sobre o direito, como antes de Jesus Cristo. Viram-se as
guerras retomar o caráter pagão de conquista e perder o caráter de libertação. A França “filha
primogênita”, que tinha esbofeteado sua Mãe em Anagni, foi a primeira a
sofrer as consequências de sua prevaricação: guerra dos Cem Anos, Crécy,
Poitiers, Azincourt. Esse período de transição que liga a Idade Média aos
tempos modernos. Esse período foi chamado de Renascença.
Ela se produziu numa época de moleza, de decadência quase geral da vida religiosa,
período lamentável cujas características são, a partir do século XIV, o enfraquecimento
da autoridade dos Papas, a invasão do espírito mundano no clero, a decadência da filosofia e
da teologia escolástica, uma espantosa desordem na vida política e civil.
Sob a influência de uma admiração
excessiva, poderíamos dizer doentia, pelos encantos dos escritores
clássicos, arvorava-se francamente o estandarte do paganismo; os seguidores
dessa reforma pretendiam modelar tudo exatamente como na antiguidade, os
costumes e as ideias, restabelecer a preponderância do espírito pagão e destruir
radicalmente o estado de coisas existente, considerado por eles
como uma degenerescência.
A influência desastrosa exercida na moral
pelo humanismo fez-se igualmente sentir cedo e de maneira
assustadora no domínio da religião. Os seguidores da Renascença pagã
consideravam sua filosofia antiga e a fé da Igreja como dois mundos inteiramente distintos e sem
nenhum ponto de contato.
Eles queriam que o homem
tivesse a felicidade na terra, que
todas as suas forças, toda a sua atividade fossem empregadas para buscar a felicidade temporal; diziam que o dever da
sociedade era de se organizar de tal maneira que ela conseguisse chegar a
oferecer a cada um o que pudesse
satisfazer-lhe todos os desejos e em
todos os sentidos.
Sob a influência desses
intelectuais, a vida moderna tomou uma direção inteiramente nova, que foi o
oposto da verdadeira civilização. Porque, como disse muito bem Lamartine:
Toda
civilização que não vem da ideia de Deus é falsa.
Toda
civilização que não tende à ideia de Deus é curta.
Toda
civilização que não é
penetrada da ideia de Deus é fria e vazia.
A última expressão de uma civilização perfeita é Deus melhor visto, melhor
adorado, melhor servido pelos
homens.
A mudança se operou
primeiro nas almas. Muitos perderam a concepção segundo a qual todo o fim está
em Deus, para adotar aquela que quer que
tudo esteja no homem. “Ao homem decaído e
resgatado, disse com muita propriedade Bériot, a Renascença opôs o homem
nem decaído, nem resgatado, que se eleva à uma admirável altura pelas simples
forças de sua razão e de seu livre arbítrio”. O coração não mais serviu para amar
a Deus, o espírito para conhecê-Lo, o corpo para servi-Lo, e mediante isso
merecer a vida eterna. Como no tempo do
paganismo, elas fizeram do prazer, do gozo, a finalidade da vida; elas
procuraram os meios para obtê-los na riqueza, e para adquirir esta não se
tiveram mais tanto em conta os direitos de outrem.
Para os Estados, a
civilização não foi mais a santidade de numerosos, e as instituições sociais
meios ordenados para preparar as almas para o céu. Novamente eles encerraram a função da sociedade no tempo,
sem atenção para as almas feitas para a eternidade. Naquela época, como hoje, deram a isso o nome de progresso! As novas invenções, a imprensa, a pólvora, o
telescópio, a descoberta do Novo Mundo etc., vindo juntar-se ao estudo das
obras da antiguidade, provocaram uma embriaguez de orgulho, que disse: “a razão humana basta a si mesma para
governar seus negócios na vida social e política. Não temos necessidade de uma
autoridade que sustente ou corrija a razão”. A arte, a literatura e a ciência retiraram-se pouco a pouco do serviço
da alma para se empenharem na animalidade: fato que conduziu para dentro da
ordem moral e da ordem religiosa essa revolução que foi a Reforma. Da ordem
religiosa o espírito da Renascença ganhou a ordem política e social com a Revolução.
E ei-los que atacam a ordem econômica com o socialismo (comunismo). É aí que a
civilização pagã devia chegar, é aí que ela encontrará seu fim, ou nós o nosso;
seu fim, se o cristianismo retomar o domínio sobre os povos apavorados ou,
melhor dizendo, acabrunhados pelos males que o socialismo (comunismo) fará
pesar sobre eles; o nosso, se o socialismo puder levar até o fim a experiência
do dogma do livre gozo nesta terra e nos fizer sofrer todas as consequências.
A Renascença é, pois, o
ponto de partida do estado atual da sociedade. Tudo quanto sofremos vem daí.
Se quisermos conhecer nosso mal e tirar desse conhecimento o remédio radical
para a situação presente, é preciso remontar à Renascença.
Todos os erros que depois
perverteram o mundo cristão, todos os atentados perpetrados contra as suas
instituições, tiveram aí sua fonte; podemos dizer que tudo isto a que assistimos foi
preparado pelos humanistas. Eles são os iniciadores da civilização moderna.
Alberti preparou uma outra
espécie de atentado, o mais característico da civilização contemporânea.
Jurista e literato, compôs um tratado do Direito. Aí proclamava “que a Deus deve ser deixado o cuidado das coisas divinas, e que as coisas humanas são da competência do juiz”. Era, como observa
Guiraud, proclamar o divórcio da sociedade civil e da sociedade
religiosa; era abrir os caminhos àqueles que querem que os governos não
persigam senão os fins temporais e permaneçam indiferentes aos espirituais,
defendam os interesses materiais e deixem de lado as leis sobrenaturais da
moral e da religião; era afirmar que os poderes terrestres são incompetentes ou
devem ser indiferentes em matéria religiosa, que eles não têm que conhecer a
Deus, que eles não têm que fazer observar Suas leis. Era, numa palavra,
formular a grande heresia do tempo presente, e arruinar pela base a civilização
dos séculos cristãos. O princípio proclamado por esse secretário apostólico
encerrava o germe
de todas as teorias que nossos modernos “defensores da sociedade laica” atribuem
a si. Bastava deixar esse princípio se desenvolver para chegar a tudo que hoje
testemunhamos com tristeza.
A glorificação do prazer era o tema preferido das dissertações dos
humanistas. Laurent Valla afirmava no seu tratado De
Voluptate que “o prazer é o verdadeiro bem, e que não há outros bens fora do prazer”. Essa convicção levou-o, a
ele e a muitos outros, a escrever em poesia as piores licenciosidades. Assim
eram prostituídos os talentos que deveriam ter sido empregados em vivificar a
literatura e a arte cristãs.
Sob todos os aspectos
ocorria o divórcio entre as tendências da Renascença e as tradições do cristianismo.
Enquanto a Igreja continuava a pregar a decadência do homem, a afirmar sua
fraqueza e a necessidade de um socorro divino para o cumprimento do dever, o
humanismo tomava a dianteira relativamente a Jean-Jacques Rousseau para proclamar a
bondade da natureza: ele deificava o homem. Enquanto a Igreja assinalava uma
razão e um fim sobrenaturais para a vida humana, colocando em Deus o termo do
nosso destino, o humanismo, repaganizado, limitava
a este mundo e ao próprio homem o ideal da vida.
A Conjuração Anticristã, O Templo Maçônico que
quer se erguer sobre as ruínas da Igreja Católica (Tomo I) –
Monsenhor Henri Delassus.
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