Sobre a condição dos operários (contra
o socialismo/comunismo)
PAPA LEÃO XVIII
INTRODUÇÃO
MOTIVO DA ENCÍCLICA: A
QUESTÃO OPERÁRIA
A sede de
inovações, que há muito tempo se apoderou das sociedades e as tem numa agitação
febril, devia, tarde ou cedo, passar das regiões da política para a esfera
vizinha da economia social.
Efetivamente,
os progressos incessantes da indústria, os novos caminhos em que entraram as
artes, a alteração das relações entre os operários e os patrões, a afluência da
riqueza nas mãos de um pequeno número, ao lado da indigência da multidão, a
opinião enfim mais avantajada que os operários formam de si mesmos e a sua
união mais compacta, tudo isso, sem falar da corrupção dos costumes, deu em resultado
final um temível conflito. Por toda parte, os espíritos estão apreensivos e
numa ansiedade expectante, o que por si só basta para mostrar quantos e quão
graves interesses estão em jogo. Essa situação preocupa e põe ao mesmo tempo em
exercício o gênio dos doutos, a prudência dos sábios, as deliberações das
reuniões populares, a perspicácia dos legisladores e os conselhos dos
governantes, e não há, presentemente, outra causa que impressione com tanta
veemência o espírito humano.
É por isso
que, veneráveis irmãos, o que em outras ocasiões fizemos, para bem da Igreja e
da salvação comum dos homens, em nossas encíclicas sobre a soberania política,
a liberdade humana, a constituição cristã dos Estados e outros assuntos
análogos, refutando, segundo nos pareceu oportuno, as opiniões errôneas e
falazes, o julgamos dever repetir hoje e pelos mesmos motivos, falando-vos da condição dos operários.
Já tocamos
essa matéria muitas vezes, quando se nos tem proporcionado ensejo; mas a
consciência do nosso cargo apostólico impõe-nos como um dever tratá-la nesta
encíclica mais explicitamente e com maior desenvolvimento, a fim de pôr em
evidência os princípios de uma solução, conforme à justiça e à equidade. O
problema nem é fácil de resolver, nem isento de perigos. É difícil,
efetivamente, precisar com exatidão os direitos e os deveres que devem ao mesmo
tempo reger a riqueza e o proletariado, o capital e o trabalho. Por outro lado,
o problema não é sem perigos, porque não
poucas vezes homens turbulentos e astuciosos procuram desvirtuar-lhe o sentido
e aproveitam-no para excitar as multidões e fomentar desordens. Em todo
caso, nós estamos persuadidos, e todos concordam nisso, de que é necessário,
com medidas prontas e eficazes, vir em auxílio dos homens de classes inferiores,
atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de
miséria imerecida. O século passado (século XVIII) destruiu, sem as substituir
por coisa alguma, as corporações antigas, que eram para eles uma proteção; os princípios e o sentimento religioso
desapareceram das leis e das instituições públicas, e assim, pouco a pouco, os
trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto, com o decorrer do tempo,
entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça de uma concorrência desenfreada.
A usura voraz
veio agravar ainda mais o mal. Condenada muitas vezes pelo julgamento da
Igreja, não deixou de ser praticada sob outra forma por homens ávidos de
ganância, e de insaciável ambição. A
tudo isso deve-se acrescentar o monopólio do trabalho, e dos papéis de crédito,
que se tornaram o quinhão de um pequeno número de ricos e de opulentos, que
impõem assim um julgo quase servil à imensa multidão de proletários.
PARTE I
O SOCIALISMO: FALSO
REMÉDIO
A solução socialista
inaceitável pelos operários
Os
socialistas, para curar esse mal, instigam
nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem, e pretendem que toda
propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que os bens de um
indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua administração deve
voltar para os municípios ou para o Estado. Mediante essa transladação das
propriedades e essa igual repartição das riquezas e das comodidades que elas
proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz aos
males presentes. Mas semelhante teoria, longe de ser capaz de pôr termo ao
conflito, prejudicaria o operário se fosse posta em prática. Outrossim, é sumamente injusta, por violar os direitos
legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender à subversão
completa do edifício social.
De fato, como
é fácil compreender, a razão intrínseca do trabalho empreendido por quem exerce
uma arte lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador, é conquistar um bem
que possuirá como próprio e como pertencendo-lhe; porque, se põe à disposição
de outrem suas forças e sua indústria, não é, evidentemente, por outro motivo
senão para conseguir com que possa prover à sua sustentação e às necessidades
da vida, e espera do seu trabalho, não só
direito ao salário, mas ainda um direito estrito e rigoroso para usar
dele como entender. Portanto, se, reduzindo as suas despesas, chegou a fazer
algumas economias, e se, para assegurar a sua conservação, as emprega, por
exemplo, num campo, torna-se evidente
que esse campo não é outra coisa
senão o salário transformado – o terreno assim adquirido será propriedade do
trabalhador com o mesmo título que a remuneração do seu trabalho. Mas quem
não vê que é precisamente nisso que consiste o direito da propriedade
mobiliária e imobiliária? Assim, essa conversão da propriedade particular em
propriedade coletiva, tão preconizada pelos socialistas, não teria outro efeito senão tornar a situação dos operários mais
precária, retirando-lhes a livre disposição do seu salário e roubando-lhes, por
isso mesmo, toda esperança e toda possibilidade de engrandecerem o seu
patrimônio e melhorarem a sua situação.
Mas, e isso
parece ainda mais grave, o remédio proposto está em oposição flagrante com a
justiça, porque a propriedade particular
e pessoal é, para o homem, de direito natural.
Há,
efetivamente, desse ponto de vista, uma grandíssima diferença entre o homem e
os animais destituídos de razão. Estes não se governam a si mesmos; são
dirigidos e governados pela natureza, mediante duplo instinto, que, por um lado,
conserva a sua atividade sempre viva e lhes desenvolve as forças, por outro,
provoca e circunscreve ao mesmo tempo cada um dos seus movimentos. O primeiro
instinto leva-os à conservação e à defesa de sua própria vida; o segundo, à
propagação da espécie; e esse duplo resultado obtêm-no facilmente pelo uso das
coisas presentes e postas ao seu alcance. Por outro lado, seriam incapazes de
transpor esses limites, porque apenas são movidos pelos sentidos e por cada
objeto particular que os sentidos percebem.
Muito
diferente é a natureza humana. Primeiramente, no homem reside, em sua
perfeição, toda a virtude da natureza sensitiva, e desde logo lhe pertence, não
menos que esta, gozar dos objetos físicos e corpóreos. Mas a vida sensitiva
ainda só não abraça toda a natureza humana, mas é-lhe muito inferior e própria
para lhe obedecer e ser-lhe sujeita. O que em nós se avantaja, o que nos faz
homens e nos distingue essencialmente no animal, é a razão ou a inteligência, e
em virtude dessa prerrogativa deve reconhecer-se ao homem não só a faculdade
geral de usar das coisas exteriores, mas ainda o direito estável e perpétuo de
as possuir, tanto as que se consomem pelo uso, como as que permanecem depois de
nos terem servido.
A propriedade particular é de direito
natural
Uma
consideração mais profunda da natureza humana fará sobressair melhor ainda essa
verdade. O homem abrange pela sua inteligência uma infinidade de objetos, e às
coisas presentes acrescenta e prende as coisas futuras; além disso, é senhor
das suas ações também sob a direção da lei eterna e sob o governo universal da
providência divina, ele é, de algum modo, para si a sua lei e a sua providência. É por isso que
tem o direito de escolher as coisas que julgar mais aptas , não só para prover
ao presente, mas ainda ao futuro. De onde segue que deve ter sob o seu domínio
não só os produtos da terra, mas ainda a própria terra, que, pela sua
fecundidade, ele vê estar destinada a ser sua fornecedora do futuro. As
necessidades do homem repetem-se perpetuamente: satisfeitas hoje, renascem
amanhã, com sempre novas exigências. Foi preciso, portanto, para que ele
pudesse realizar o seu direito em todo o tempo, que a natureza pusesse à sua
disposição um elemento estável e permanente, capaz de lhe fornecer perpetuamente
os meios. Ora, esse elemento só podia ser a terra, com os seus recursos sempre
fecundos.
E não se apele para a providência do
Estado, porque o Estado é posterior ao homem, e antes que ele pudesse
formar-se, já o homem tinha recebido da natureza o direito de viver e proteger
sua existência.
Não se oponha também à legitimidade da
propriedade particular o fato de que Deus concedeu a terra a todo o gênero
humano para a desfrutar,
porque Deus não concedeu aos homens para que a dominassem confusamente todos
juntos. Tal não é o sentido dessa verdade. Ela significa, unicamente, que Deus
não assinou uma parte a nenhum homem em particular, mas quis deixar a limitação
das propriedades à indústria humana e às instituições dos povos.
Aliás, posto
que dividida em propriedades particulares, a terra não deixa de servir à
utilidade comum de todos, não havendo ninguém entre os mortais que não se
alimente do produto dos campos. Quem não tem bens próprios, supre-se pelo
trabalho, de maneira que se pode afirmar, com toda a verdade, que o trabalho é o meio universal de prover às
necessidades da vida, quer ele exerça num terreno próprio, quer em alguma
arte lucrativa cuja remuneração, apenas, sai dos produtos múltiplos da terra,
com os quais ele se comuta.
De tudo
resulta, mais uma vez, que a propriedade
particular é plenamente conforme a natureza. A terra, sem dúvida, fornece
ao homem com abundância as coisas necessárias as coisas necessárias para a
conservação de sua vida e ainda para o seu aperfeiçoamento, mas não poderia
fornecê-las sem a cultura e sem os cuidados do homem. Ora, que faz o homem,
consumindo os recursos do seu espírito e as forças do seu corpo em procurar
esses bens da natureza? Aplica, para assim dizer, a si mesmo a porção da
natureza corpórea que cultiva e deixa nela como que um certo cunho da sua
pessoa, a ponto de que, com toda justiça, esse bem será possuído de futuro como
seu, e não será lícito a ninguém violar
o seu direito de qualquer forma que seja.
O direito de propriedade é fruto do
trabalho humano
A força
desses raciocínios é de uma evidência tal, que chegamos a admirar como certos
partidários de velhas opiniões podem ainda contradizê-los, concedendo sem
dúvida ao homem particular o uso do solo e os frutos dos campos, mas recusando-lhe
o direito de possuir, na qualidade de proprietário, esse solo em que edificou,
a porção da terra que cultivou. Não veem, pois, que despojam assim esse homem
do fruto do seu trabalho; porque, afinal, esse campo amanhado com arte pela mão
do cultivador mudou completamente de natureza: era selvagem, ei-lo arroteado;
de infecundo, tornou-se fértil; o que tornou melhor está inerente ao solo e
confunde-se de tal forma com ele, que em grande parte seria impossível
separá-lo. Suportaria a justiça que um
estranho viesse então atribuir-se esta terra banhada pelo suor de quem cultivou?
Da mesma forma que o efeito segue a causa, assim
é justo que o fruto do trabalho pertença ao trabalhador. É, pois, com
razão, que a universalidade do gênero humano, sem se deixar mover pelas
opiniões contrárias de um pequeno grupo, reconhece, considerando atentamente a
natureza, que nas suas leis reside o primeiro fundamento da repartição dos bens
e das propriedades particulares; foi com razão que o costume de todos os
séculos sancionou uma situação tão conforme à natureza do homem e à vida
tranquila e pacífica das sociedades.
Por seu lado,
as leis civis, que tiram o seu valor,
quando são justas, da lei natural, confirmam esse mesmo direito e
protegem-no pela força.
Finalmente, a
autoridade das leis divinas vem pôr-lhes o seu selo, proibindo, sob pena gravíssima, até mesmo o desejo do que pertence aos
outros: “ Não desejarás a mulher do
teu próximo, nem a sua casa, nem o seu campo, nem o seu boi, nem a sua serva,
nem o seu jumento, nem coisa alguma que
lhe pertença ” (Dt 5,21).
A liberdade do homem
Entretanto,
esses direitos, que são inatos a cada homem considerando isoladamente,
apresentam-se mais rigorosos ainda, quando se consideram nas suas relações e na
sua conexão com os deveres da vida doméstica.
Ninguém põe
em dúvida que, na escolha de um gênero de vida, seja lícito a cada um seguir o
conselho de Jesus Cristo sobre a virgindade, ou contrair um laço conjugal. Nenhuma lei humana poderia apagar um laço
conjugal poderia apagar de qualquer
forma o direito natural e primordial de todo homem ao casamento, nem
circunscrever o fim principal para que ele foi estabelecido desde a origem: “ Crescei e multiplicai-vos”(Gn 1, 28). Eis,
pois, a família, isto é, a sociedade doméstica, sociedade muito pequena
certamente, mas real e anterior a toda sociedade civil, à qual, desde logo, será forçosamente necessário atribuir
certos direitos e certos deveres absolutamente independente do Estado.
Assim, este direito de propriedade que nós, em nome da natureza, reivindicamos
para o indivíduo, é preciso agora transferi-lo para o homem constituído chefe
de família. Mas isso não basta: passando para a sociedade doméstica, esse
direito adquire aí tanto maior força quanto mais extensão lá recebe a pessoa
humana. A natureza não impõe somente ao pai de família o dever sagrado de
alimentar e sustentar seus filhos; vai mais longe. Como os filhos refletem a fisionomia de seu pai e são uma espécie de
prolongamento de sua pessoa, a natureza inspira-lhe o cuidado do seu futuro
e a criação de um patrimônio que os ajude a defender-se, na perigosa jornada da
vida, contra todas as surpresas da má fortuna. Mas esse patrimônio poderá ele
criá-lo sem a aquisição e a posse de bens permanentes e produtivos que possa
transmitir-lhes por via de herança?
Família e Estado
Assim como a
sociedade civil, a família, conforme atrás dissemos, é uma sociedade
propriamente dita, com a sua autoridade e o seu governo paterno, é por isso que
sempre indubitavelmente na esfera que lhe determina o seu fim imediato, ela
goza, para a escolha e uso de tudo o que exigem a sua conservação e o exercício
de uma justa independência, de direitos pelo menos iguais aos da sociedade
civil. Pelo menos iguais, dizemos nós, porque
a sociedade doméstica tem sobre a sociedade civil uma prioridade lógica e uma
prioridade real, de que participam necessariamente os seus direitos e os seus
deveres. E os indivíduos e as famílias, entrando na sociedade, nela
achassem, em vez de apoio, um obstáculo, em vez de proteção, uma diminuição de
seus direitos, dentro em pouco a
sociedade seria mais para evitar do que para procurar.
O Estado e sua intervenção na família
Querer, pois, que o poder civil invada
arbitrariamente o santuário da família é um erro grave e funesto.
Certamente,
se existe em algum lugar uma família que se encontre numa situação desesperada
e que faça esforços vãos para sair dela, é justo que, em tais extremos, o poder
público venha em seu auxílio, porque a família
é um membro da sociedade. Da mesma forma, se existe um lar doméstico que
seja palco de graves violações dos direitos mútuos, que o poder público intervenha para restituir a cada um os seus
direitos. Isso não é usurpar as atribuições dos cidadãos, mas fortalecer os
seus direitos, protegê-los e defendê-los como convém. Todavia, a ação daqueles que presidem ao governo
público não devem ir mais além; a natureza proíbe-lhes ultrapassarem esses
limites. A autoridade paterna não podia
ser abolida, nem absorvida pelo Estado, porque ela tem uma origem comum na vida
humana. “ Os filhos são alguma coisa de seu pai ”; são de certa forma uma
extensão da sua pessoa, e, para falar com justiça, não é imediatamente por si
que eles se agregam e se incorporam na sociedade civil, mas por intermédio da sociedade
doméstica em que nasceram. Porque os “ os filhos são naturalmente alguma coisa
do seu pai ... devem ficar sob a tutela dos pais até que tenham adquirido o
“livre-arbítrio”. Assim, substituindo a
providência paterna pela providência do Estado, os socialistas vão contra a justiça
natural e quebram os laços da família.
As desastrosas consequências da
solução socialista
Mas, além da
injustiça do seu sistema, veem-se bem todas as suas funestas consequências, a
perturbação em todas as classes da sociedade, uma odiosa e insuportável
servidão para todos os cidadãos, porta
aberta a todas as invejas, a todos os descontentamentos, a todas as
discórdias; o talento e a habilidade privado dos seus estímulos, e, como
consequência necessária, as riquezas estancadas na sua fonte; enfim, em lugar
dessa igualdade tão sonhada, a igualdade
na indigência e na miséria.
Por tudo o
que nós acabamos de dizer, se compreende que a teoria socialista de propriedade coletiva deve absolutamente
repudiar-se como prejudicial àqueles mesmo que se quer socorrer, contrária aos
direitos naturais dos indivíduos, como
desnaturando a função do Estado e perturbando a tranquilidade pública.
Fique, pois, assente que o primeiro fundamento a estabelecer para todos aqueles
que querem sinceramente o bem do povo é
a inviolabilidade da propriedade particular. Expliquemos agora onde convém
procurar o remédio desejado.
Parte II
O VERDADEIRO REMÉDIO:
A UNIÃO DAS ASSOCIAÇÕES
- A OBRA DA IGREJA
É com toda
confiança que nós abordamos este assunto, e em toda a plenitude do nosso
direito; porque a questão de que se trata é de tal natureza, que, a não se
apelar para religião e para a Igreja, é impossível encontrar-lhe uma solução
eficaz. Ora, como é principalmente a nós que está confiada a salvaguarda da religião
e a dispensação do que é domínio da Igreja, calarmo-nos seria aos olhos de
todos trair o nosso dever.
Certamente
uma questão dessa gravidade demanda ainda de outros a sua parte de atividade e
de esforços – isto é, dos governantes, dos senhores e dos ricos, e dos próprios
operários, de cuja sorte se trata. Mas o que nós afirmamos sem hesitação é a
inanidade de sua ação fora da Igreja. É a Igreja, efetivamente, que haure no
Evangelho doutrinas capazes de pôr termo ao conflito ou ao menos de o suavizar,
expurgando-o de tudo de que ele tenha de severo e áspero; a Igreja, que não se
contenta em esclarecer o espírito dos seus ensinos, mas também se esforça em
regular, de harmonia com eles, a vida e os costumes de cada um; a Igreja, que,
por uma multidão de instituições eminentemente benéficas, tende a melhorar a
sorte da classes dos pobres; a Igreja, que quer e deseja ardentemente que todas
as classes empreguem em comum as suas luzes e as suas forças para dar à questão
operária a melhor solução possível; a Igreja, enfim, que julga que as leis e a
autoridade pública devem levar a esta solução, sem dúvida com medida e com prudência, a sua parte do
concurso.
I-Necessidade das desigualdades sociais e do
trabalho cansativo
O primeiro
princípio a pôr em evidência é o que o homem deve aceitar com paciência a sua
condição: é impossível que na sociedade
civil todos estejam elevados ao mesmo nível. É, sem dúvida, isto o que
desejam os socialistas; mas contra a
natureza todos os esforços são vãos. Foi ela, realmente, que estabeleceu entre
os homens diferenças tão multíplices como profundas; diferenças de
inteligência, de talento, de habilidade, de saúde, de força; diferenças necessárias,
de onde nasce espontaneamente a desigualdade das condições. Essa desigualdade,
por outro lado, reverte em pontos de todos, tanto da sociedade como dos
indivíduos; porque a vida social requer um organismo muito variado e funções
muito diversas, e o que leva precisamente os homens a partilharem essas funções
é, principalmente, a diferença de suas respectivas condições.
No que diz
respeito ao trabalho em particular, o homem, mesmo no estado de inocência, não era destinado a viver na ociosidade, mas,
ao que a vontade teria abraçado livremente como exercício agradável, a
necessidade lhe pôs como uma expiação: “A terra será maldita por tua causa; é
pelo trabalho que tirarás com que alimentar-te todos os dias da vida” (Gn
3,17).
O mesmo se dá
com todas as outras calamidades que caírem sobre o homem; neste mundo essas
calamidades não terão fim nem tréguas, porque os funestos frutos do pecado são
amargos, acres, acerbos, e acompanham necessariamente o homem até o derradeiro
suspiro. Sim, a dor e o sofrimento são o
apanágio da humanidade, e os homens poderão ensaiar tudo, tudo tentar para os
banir; mas não o conseguirão nunca, por mais recursos que empreguem e por
maiores forças que para isso desenvolvam. Se há quem, atribuindo-se o poder
fazê-lo, prometa ao pobre uma vida isenta de sofrimentos e de trabalhos, toda
de repouso e de perpétuo gozos, certamente
engana o povo e lhe prepara laços onde se ocultam, para o futuro, calamidades
mais terríveis que a do presente. O melhor partido consiste ver as coisas
tais quais são, e, como dissemos, em procurar um remédio que possa aliviar
nossos males.
II. Necessidade da concórdia
O erro capital na questão presente é
crer que as duas classes são inimigas natas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os
rico e os pobres para se combaterem mutuamente num duelo obstinado. Isso é uma
aberração tal, que é necessário pôr a verdade numa doutrina contrariamente
aposta, porque, assim como no corpo
humano os membros, apesar da sua diversidade, se adaptam maravilhosamente uns
aos outros, de modo que formam um todo exatamente proporcionado e que se poderá
chamar simétrico, assim também, na sociedade, as duas classes estão destinadas
pela natureza a unirem-se harmoniosamente e a conservarem-se mutuamente em
perfeito equilíbrio. Elas têm imperiosa necessidade uma da outra: não pode
haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital. A concórdia traz consigo
a ordem e a beleza; ao contrário, de um conflito perpétuo só podem resultar
confusão e lutas selvagens. Ora, para dirimir esse conflito e cortar o mal na
raiz, as instituições possuem uma virtude, admirável e múltipla.
III. Relações entre as classes sociais
(a).Justiça
E,
primeiramente, toda a economia das verdades religiosas, de que a Igreja é
guarda e intérprete, é de natureza a aproximar e reconciliar os ricos e os
pobres, lembrando às duas classes os seus deveres mútuos e, primeiro que todos
os outros, os que derivam da justiça. Entre esses deveres, eis os que dizem
respeito ao pobre e ao operário: deve fornecer integral e fielmente todo o
trabalho a que se comprometeu por contato livre e conforme à equidade; não de
vê lesar o seu patrão, nem nos seus bens, nem na sua pessoa; as suas
reivindicações devem ser isentas de violências, e nunca revestir a forma de
sedições; deve fugir dos homens
perversos que, nos seus discursos artificiosos, lhe sugerem esperanças
exageradas e lhe fazem grandes promessas, as quais só conduzem a estéreis
pesares e à ruína das fortunas.
Quanto aos
ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas respeitar
nele a dignidade do homem, realçada ainda pela do cristão. O trabalho do corpo,
pelo testemunho comum da razão e da filosofia cristã, longe de ser um objeto de
vergonha, faz honra ao homem, porque lhe fornece um nobre meio de sustentar a
sua vida. O que é vergonhoso e desumano
é usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na
proporção do vigor de seus braços. O cristianismo. Além disso, prescreve que se
tenham em consideração os interesses espirituais do operário e o bem da alma.
Aos patrões compete velar para que a isso seja dada plena satisfação, que o
operário não siga entregue à sedução e às solicitações corruptoras, que nada
venha enfraquecer o espírito de família nem os hábitos de economia. Proíbe
também aos patrões que imponham aos seus subordinados um trabalho superior as
suas forças ou em desarmonia com a sua idade ou o seu sexo. Mas, entre os
deveres principais do patrão, é
necessário pôr em primeiro lugar o de dar a cada um o salário que convém.
Certamente, para fixar a justa medida do salário, há numerosos pontos de vista
a considerar. De maneira geral,
recordem-se o rico e o patrão de que explorar a pobreza e a miséria e especular
com a indigência são coisas igualmente reprovadas pelas leis divinas e humanas;
que cometeria crime de clamar vingança ao céu quem defraudasse a qualquer um o
preço de seus labores: “ Eis que o salário, que tendes extorquido por fraude
aos vossos operários, clama contra vós; e seu clamor subiu até os ouvidos do
Deus dos exércitos” (Tg 5,4). Enfim os ricos devem precaver-se religiosamente
de todo ato violento, toda fraude, toda manobra usurária que seja de natureza
que seja de natureza atentar contra a economia do pobre – mais ainda, porque
este é menos apto para defender-se, e porque os seus haveres, por serem de
mínima importância, revestem um caráter mais sagrado.
(b)Caridade
A obediência
a essas leis – perguntamos-nos – não bastaria só, de per si, para fazer cessar
todo antagonismo e suprimir-lhes as causas? Todavia a Igreja, instruída e
dirigida por Jesus Cristo, eleva as suas vistas ainda mais alto; propõe um
corpo de preceitos mais completo, porque ambiciona estreitar a união das duas
classes até as unir uma à outra por laços de verdadeira amizade.
Ninguém pode
ter verdadeira inteligência da vida mortal, nem estimá-la no seu justo valor, se não se eleva à consideração da outra
vida que é imortal. Suprimiu esta, e imediatamente toda forma e toda
verdadeira noção de honestidade desaparecerão; mais ainda: todo o universo se
tornará um impenetrável mistério. Só quando tivermos abandonado esta vida, começaremos
a viver – essa verdade, que a natureza nos ensina, é um dogma cristão sobre o
qual se assenta, como sobre o seu primeiro fundamento, toda a economia da
religião. Não, Deus não nos fez para
estas coisas frágeis e caducas, mas para coisas celestes e eternas; não nos deu
esta terra como morada fixa, mas como lugar de exílio. Que abundeis em
riquezas ou outros bens, chamados bens
de fortuna, ou que estejais privados deles, isso nada importa à eterna
beatitude. O uso que fizerdes deles é o que interessa. Pela sua superabundante
redenção, Jesus Cristo não suprimiu as aflições que formam quase toda a trama
da vida mortal; fez delas estímulos da virtude e fontes de mérito, de sorte que
não há homem que possa pretender as recompensas eternas, se não caminhar sobre
os traços sanguinolentos de Jesus Cristo: “ se sofrermos com ele, com ele
reinaremos” (2 Tm 2,12). Por outra parte, escolhendo ele mesmo a cruz e os
tormentos, minorou-lhes singularmente o peso e a amargura, e, a fim de nos
tornar ainda mais suportável o sofrimento, ao exemplo acrescentou a sua graça e
a promessa de uma recompensa sem fim: “ Porque o momento tão curto e tão
ligeiro das aflições, que sofremos nesta vida, produz em nós o peso eterno de
uma glória soberana incomparável” (2 Cor 4, 17).
C) A verdadeira utilidade das riquezas
Assim, os
afortunados deste mundo são advertidos de que as riquezas não o isentam da dor;
que elas não são de nenhuma utilidade para a vida eterna, mas antes um
obstáculo (Mt 19,23-24); que eles devem temer diante das ameaças severas que
Jesus Cristo profere contra os ricos (Lc 6,24-25; que, enfim, virá um dia em
que deverão prestar a Deus, seu juiz, rigorosamente contas do uso que hajam
feito de sua fortuna. Sobre o uso das riquezas, já a pura filosofia pode delinear
alguns ensinamentos de suma excelência e extrema importância; mas só a Igreja
no-los pode dar na sua perfeição, e fazê-los descer do conhecimento à prática.
O fundamento dessa doutrina está na distinção entre a justa posse das riquezas
e seu legítimo uso. A propriedade particular, já o dissemos mais acima, é
de direito natural para o homem; o
exercício desse direito é coisa não só permitida, sobretudo a quem vive em
sociedade, mas ainda absolutamente necessária. Agora, se se pergunta em que é
necessário fazer consistir o uso dos bens, a Igreja responderá sem hesitação: “
A
esse respeito o homem não deve ter as coisas exteriores por particulares, mas
por comuns, de tal sorte que facilmente dê parte delas aos outros nas suas
necessidades. É por isso que o Apóstolo
disse: ordena aos ricos do século... dar facilmente, comunicar as suas riquezas”.
Ninguém é certamente obrigado a aliviar o próximo privando-se do seu necessário
ou do de sua família; nem mesmo a nada suprimir do que as conveniências ou
decência impõem á sua pessoa: “ Ninguém com efeito deve viver contrariamente às
conveniências”. Mas, desde que haja suficientemente satisfeito à necessidade e
ao decoro, é um dever, por consequência lançar o supérfluo no seio dos pobres:
“ Do supérfluo dai esmolas” (Lc
11,41). É um dever, não de estrita justiça, exceto nos casos de extrema
necessidade, mas de caridade cristã, um dever, por consequência, cujo
cumprimento se não pode conseguir pelas vias da justiça humana. Mas, acima dos
juízos do homem e das leis, há a lei e o juízo de Jesus Cristo nosso Deus, que
nos persuade de todas as maneiras a dar
habitualmente esmola: “ É mais feliz”, diz ele, “aquele que dá do que aquele
que recebe” (At 20, 35), e o Senhor terá como dada ou recusada a si mesmo a
esmola que se haja dado ou recusado aos pobres: “ Todas as vezes que tenhais
dado esmola a um de meus irmãos é a mim que tereis dado” (Mt 25,40).
Eis, aliás,
em poucas palavras, o resumo desta doutrina: quem quer que tenha recebido da
divina bondade maior abundância, quer de bens externos e do corpo, quer de bens
da alma, recebeu-os com o fim de fazê-los servir ao seu próprio
aperfeiçoamento, e, ao mesmo tempo, como ministro da providência, ao alívio dos
outros: “É por isso que quem tiver o talento da palavra tome cuidado em não se
calar; quem possuir superabundância de bens, não deixe a misericórdia
intumescer-se no fundo do seu coração; quem tiver a arte de governar,
aplique-se com cuidado a partilhar com seu irmão o exercício dos frutos”.
Bem-aventurados os pobres (d)
Quanto aos
deserdados da fortuna, aprendam da Igreja que, segundo o juízo do próprio Deus,
a pobreza não é um opróbrio e que se não deve corar por ter de ganhar o pão com
o suor do seu rosto. É o que Jesus Cristo nosso Senhor confirmou com seu
exemplo. Ele, que “de muito rico que era, se fez indigente” (2 Cor 8,9) para a
salvação dos homens; que, Filho de Deus e Deus ele mesmo, quis passar aos olhos
do mundo por filho de um marceneiro; que chegou a consumir uma grande parte da
sua vida em trabalho fabril: “ Não é ele o carpinteiro, filho de Maria?” (Mc
6,3). Quem tiver em sua frente o modelo divino compreenderá mais facilmente o
que nós diremos: que a verdadeira dignidade do homem e a sua excelência reside
nos seus costumes, isto é, na sua virtude; que
a virtude é o patrimônio comum dos mortais, alcance de todos, dos pequenos
e dos grandes, dos pobres e dos ricos; só a virtude e os méritos, seja qual for
a pessoa em quem se encontrem, obterão a recompensa da eterna felicidade. Mais
ainda: é para as classes desafortunadas que o coração de Deus parece
inclinar-se mais. Jesus Cristo chama aos pobres bem-aventurados (Mt 5,3);
convida com amor a virem a ele, a fim de consolar a todos que sofrem e que
choram (Mt 11,18); abraça com caridade mais terna os pequenos e os oprimidos.
Essas doutrinas foram, sem dúvida alguma, feitas para humilhar a alma ativa do
rico e torná-lo mais condescendente, para reanimar a coragem daqueles que
sofrem e inspirar indulgência de uns e modéstia dos outros. Com elas se acharia
diminuído um abismo procurado pelo orgulho, e se obteria sem dificuldade que as
duas classes se dessem as mãos e as vontades se unissem na mesma amizade.
(d)Fraternidade cristã
Mas é ainda
demasiado pouco a simples amizade: se se obedecer aos preceitos do
cristianismo, será no amor fraterno que a união se operará. De uma parte e de
outra, se saberá e compreenderá que os homens são todos absolutamente nascido
de Deus, seu Pai comum; que Deus é o ser único e comum fim, que ele só é capaz
de comunicar aos anjos e aos homens uma felicidade perfeita e absoluta; que
todos eles foram igualmente resgatado por Jesus Cristo e restabelecidos por ele
na sua dignidade de filhos de Deus, e que assim um verdadeiro laço de
fraternidade os une, quer entre si, quer a Cristo, seu Senhor, que é o
“primogênito de muitos irmãos” (Rm 8,29). Eles saberão, enfim, que todos os
bens da natureza, todos os tesouros da graça pertencem em comum e
indistintamente a todo gênero humano e que só vós sois filhos, sois também
herdeiros dos bens celestes: “ Se vós sois filhos, sois também herdeiros,
herdeiros de Deus, coerdeiros de Jesus Cristo” (Rm 8,17).
Tal é a
economia dos direitos e dos deveres que a filosofia cristã ensina. Não se veria
em breve prazo estabelecer-se a pacificação, se esses ensinamentos pudessem vir
a prevalecer nas sociedades?
4. Meios positivos
(a)A difusão da doutrina cristã
Entretanto, a
Igreja não se contenta com indicar o caminho que leva a salvação; ela conduz a
esta e aplica por sua própria mão ao mal o conveniente remédio. Ela dedica-se
toda a instituir e a educar os homens segundo os seus princípios e a sua
doutrina, cujas águas vivificantes ela tem o cuidado de espalhar, tão longe e
tão largamente quanto lhe é possível, pelo ministério dos bispos e do clero.
Depois, esforça-se por penetrar nas almas e por obter das vontades que se
deixem conduzir e governar pela regra dos preceitos divinos. Esse ponto é
capital e de grandíssima importância, porque encerra como que o resumo de todos
os interesses que estão em litígio, e aqui a ação da Igreja é soberana. Os
instrumentos de que ela dispõe para tocar as almas, recebeu-os, para este fim,
de Jesus Cristo, e trazem em si a eficácia de uma virtude divina. São os únicos
aptos para penetrar até as profundezas do coração humano, que são capazes de
levar o homem a obedecer às imposições do dever, a dominar as suas paixões, a
amar a Deus e ao seu próximo com sua caridade sem limites, a esmagar
corajosamente todos os obstáculos que dificultam o seu caminho na estrada da
virtude.
(b)A renovação da sociedade
Neste ponto,
basta passar ligeiramente em revista aos exemplos da antiguidade. As coisas e
fatos que vamos lembrar estão isentos de controvérsia. Assim, não se pode
duvidar de que a sociedade civil tenha sido essencialmente renovada pelas
instituições cristãs, que essa renovação tenha tido por efeito elevar o nível
do gênero humano, ou, para melhor dizer, chamá-lo da morte à vida, e guiná-lo a
um alto grau de perfeição, como não se viu semelhante nem antes nem depois, e
não se verá jamais em todo o decurso dos séculos. Que, enfim, desses benefícios
foi Jesus Cristo o princípio e deve ser o seu fim; assim, como tudo partiu
dele, assim também tudo lhe deve ser referido. Quando, pois, o Evangelho raiou
no mundo, quando os povos tiveram conhecimento do grande mistério da encarnação
do Verbo e da redenção dos homens, a vida de Jesus Cristo, Deus e homem,
invadiu as sociedades e impregnou-as inteiramente com sua fé, com a suas
máximas e com as suas leis. É por isso que, se a sociedade humana deve ser
curada, não o será senão pelo regresso à
vida e às instituições do cristianismo. A quem quer regenerar uma sociedade
qualquer em decadência prescreve-se com razão que a reconduza às suas origens.
Porque a perfeição de toda sociedade consiste em prosseguir e atingir o fim
para o qual foi fundada, de modo que todos os movimentos e todos os atos da
vida social nasçam do mesmo princípio de onde nasceu a sociedade. Por isso, afastar-se do fim é caminhar para morte e
voltar para ele é readquirir a vida. E o que nós dizemos de todo o corpo
social aplica-se igualmente a essa classe de cidadãos que vivem do seu trabalho
e que formam a grandíssima maioria.
(c)A beneficência da Igreja
Nem se pense
que a Igreja se deixa absorver de tal modo pelo cuidado das almas, que põe de
lado o que se relaciona com a vida terrestre e mortal.
Pelo que em
particular diz respeito à classe dos trabalhadores, ela faz todos os esforços
para os arrancar à miséria e procurar-lhes uma sorte melhor. E certamente, não
é um fraco apoio que ela que ela dá a esta obra só pelo fato de trabalhar, por
palavras e atos, para reconduzir os homens à virtude. Os costumes cristãos, desde que entram em ação, exercem naturalmente
sobre a prosperidade temporal a sua parte de benéfica influência; porque eles
atraem o favor de Deus, princípio e fonte de todo bem; cumprem o desejo
excessivo das riquezas e a sede dos prazeres, esses dois flagelos que
frequentes vezes lançam a amargura e o desgosto no seio mesmo da opulência (1Tm
6,10); contentam-se enfim com uma vida e alimentação frugal, e suprem pela
economia a modicidade do rendimento, longe desses vícios que consomem não só as
pequenas, mas as grandes fortunas, e dissipam os maiores patrimônios. A Igreja,
além disso, provê também diretamente à felicidade das classes deserdadas, pela
fundação e sustentação de instituições que ela julga próprias para
aliviar a sua miséria; e, mesmo desse gênero de benefícios, ela tem sobressaído
de tal modo, que os seus próprios inimigos a elogiaram. Assim, entre os
primeiros cristãos, era tal a virtude da caridade mútua, que não raro se viam
os mais ricos despojarem-se de seu patrimônio em favor dos pobres. Por isso, a
indigência não era conhecida entre eles (At 4,34); fora especialmente
instituída para esse fim a distribuição cotidiana das esmolas, e o próprio São
Paulo, apesar de absorvido por uma solicitude que abraçava todas as Igrejas,
não hesitava em empreender penosas viagens para ir em pessoa levar socorro aos
cristãos indigentes. Socorros do mesmo gênero eram espontaneamente oferecidos
pelos fiéis em cada uma das suas assembleias – o que Tertuliano chama os
“depósitos da piedade”, porque eram empregados em “sustentar e inumar as
pessoas indigentes, os órfãos pobres de ambos os sexos, os domésticos idosos,
as vítimas de naufrágios”.
Eis como
pouco a pouco se formou esse patrimônio, que a Igreja sempre guardou com
religioso cuidado como um bem próprio da família dos pobres. Ela chegou até a
assegurar socorro aos infelizes, poupando-lhes a humilhação de estender a mão;
porque esta mãe comum dos ricos e dos pobres, aproveitando maravilhosamente
restos de caridade que ela havia provocado por toda parte, fundou sociedades
religiosas e uma multidão de outras instituições úteis, que, pouco tempo
depois, não deviam deixar sem alívio nenhum gênero de miséria. Há hoje, sem
dúvida, um certo número de homens que, fiéis ecos dos pagãos de outrora, chegam
a fazer, mesmo dessa caridade tão maravilhosa, uma arma para atacar a Igreja; e
viu-se uma beneficência estabelecida pelas leis civis substituir-se à caridade
cristã;mas essa caridade, que se dedica toda e sem pensamento reservado à
utilidade do próximo, não pode ser suprimida por nenhuma invenção humana. Só a Igreja possui essa virtude, porque não
se pode haurir senão no Sagrado Coração de Jesus Cristo, e é errar longe de
Jesus Cristo estar afastado da sua Igreja.
A OBRA DO ESTADO
Todavia não
há dúvida de que, para obter o resultado desejado, não é demais recorrer aos
meios humanos. Assim, todos aqueles a quem a questão diz respeito devem visar
ao mesmo fim e trabalhar em harmonia, cada um na sua esfera. Nisso há como
imagem da providência governando o mundo; porque nós vemos de ordinário que os
fatos e os acontecimentos que dependem de causas diversas são a resultante da
sua ação comum.
1.O direito de intervenção do estado
Ora, que
parte de ação de remédio temos nós o direito de esperar do Estado? Diremos,
primeiro, que por Estado entendemos aqui, não tal governo estabelecido entre
tal povo em particular, mas todo governo
que corresponde aos preceitos da razão natural e dos ensinamentos divinos,
ensinamentos que nós mesmo expusemos, especialmente na nossa carta encíclica Sobre a constituição cristã das sociedades.O que se pede aos governantes é um
concurso de ordem geral, que consiste em toda economia das leis e das
instituições; queremos dizer que devem fazer de modo das instituições; queremos
dizer que devem fazer de modo que da mesma organização e do governo da
sociedade brote espontaneamente e sem esforço a prosperidade, tanto pública
como particular. Tal é, com efeito, o ofício da prudência civil e o dever
próprio de todos aqueles que governam. Ora
o que torna uma nação próspera são os costumes puros, as famílias fundadas
sobre bases de ordem e de moralidade, a prática da religião e o respeito à
justiça, uma imposição moderada e uma repartição equitativa dos encargos
públicos, o progresso da indústria e do comércio, uma agricultura florescente e
outros elementos, se os há, do mesmo gênero – todas as coisas que não se
podem aperfeiçoar, sem fazer subir tanto
a vida e a felicidade dos cidadãos.
Assim como,
pois, por todos esses meios, o Estado pode tornar-se útil às outras classes,
assim também pode melhorar muitíssimo a sorte da classe operária, e isso em
todo o rigor do seu direito, e sem ter a temer a censura de ingerência; porque,
em virtude mesmo do seu ofício, o Estado deve servir o interesse comum. E é
evidente que, quanto mais se multipliquem as vantagens resultantes dessa ação
de ordem geral, tanto menos necessidade haverá de recorrer a outros expedientes
pra remediar a condição dos trabalhadores.
(a)Para o bem comum
Mas há outra
consideração que mais profundamente ainda diz respeito a nosso assunto. A razão
formal de toda a sociedade é uma e comum a todos os seus membros, grandes e
pequenos. Os pobres, com o mesmo título que os ricos, são, por direito natural,
cidadãos; isto é, do número das partes vivas de que se compõe, por intermédio
das famílias, o corpo inteiro da nação, para não dizer que em todas as cidades
são grande número. Como, pois, seria desrazoável prover a uma classe de
cidadãos e negligenciar outra, torna-se evidente que a autoridade pública deve
também tomar as medidas necessárias para salvaguardar a salvação e os interesses
da classe operária. Se ela faltar a isso, viola a estrita justiça que quer que
a cada um seja dado o que lhe é devido. A esse respeito santo Tomás diz muito
sabiamente: “ Assim como a parte e o todo são em certo modo uma mesma coisa,
assim o que pertence ao todo pertence de alguma sorte a cada parte”. É por isso
que, entre os graves e numerosos deveres dos governantes que querem prover,
como convém, ao bem público, o principal dever, que domina todos os outros,
consiste em cuidar igualmente de todas as classes de cidadãos, observando
rigorosamente as leis da justiça, chamada distributiva.
(b)Para o bem dos operários
Mas, ainda
que todos os cidadãos, sem exceção, devam contribuir para a massa dos bens
comuns, os quais, aliás, por um giro natural, se repartem de novo entre os
indivíduos, todavia as constituições respectivas não podem ser nem as mesmas,
nem de igual medida. Quaisquer sejam as vicissitudes pelas quais as formas do
governo são chamadas a passar, haverá sempre entre os cidadãos essas desigualdades
de condições, sem as quais uma sociedade não pode existir nem conceber-se. Sem
dúvida são necessários homens que governem, que façam leis, que administrem
justiça, que, enfim, por seus conselhos ou por via da autoridade, administrem
os negócios da paz e as coisas da guerra. Que esses homens devem ter a
proeminência em toda a sociedade e ocupar nela o primeiro lugar, ninguém o pode
duvidar, pois eles trabalham diretamente para o bem comum e de maneira tão
excelente. Os homens que, pelo contrário, se aplicam às coisas da indústria,
não podem concorrer para esse bem comum nem na mesma medida, nem pelas mesmas
vias; entretanto, também eles, ainda que de maneira menos direta, servem
muitíssimo aos interesses da sociedade. Sem dúvida alguma, o bem comum, cuja aquisição
deve ter por efeito aperfeiçoar os homens, é principalmente um bem moral. Mas
numa sociedade regularmente constituída deve encontrar-se ainda uma certa
abundância de bens exteriores, “cujo uso é reclamado para exercício da
virtude”. Ora, a fonte fecunda e necessária de todos esses bens é
principalmente o trabalho do operário, o trabalho dos campos ou da oficina.
Mais ainda: nessa ordem de coisas, o trabalho tem uma tal fecundidade e tal
eficácia, que se pode afirmar, sem receio de engano, que ele é a fonte única de
onde procede a riqueza das nações. A equidade manda, pois, que o Estado se
preocupe com os trabalhadores, e proceda de modo que, de todos os bens que eles
proporcionam à sociedade, lhe seja dada uma parte razoável, como habitação e
vestuário, e que possam viver à custa de menos trabalho e privações. De onde
resulta que o Estado deve favorecer tudo o que, de perto ou de longe, pareça de
natureza a melhorar-lhes a sorte. Essa solicitude, longe de prejudicar alguém,
tornar-se-á, ao contrário, de proveito de todos, porque importa soberanamente à
nação que os homens, que são para ela o princípio de bens tão indispensáveis,
não se encontrem continuamente a braços com os horrores da miséria.
2.Normas e limites do direito de
intervenção
Dissemos que
não é justo que o indivíduo ou a família sejam absorvidos pelo Estado, mas é
justo, pelo contrário, que aquela e este tenham a faculdade de proceder com
liberdade, contanto que não atentem contra o bem geral e não prejudiquem
ninguém. Entretanto, aos governantes pertence proteger a comunidade e as suas
partes: a comunidade, porque a natureza confiou a sua conservação ao poder
soberano, de modo que a salvação pública não é somente aqui a lei suprema, mas
a causa mesma e a razão de ser do principado; as partes, porque, de direito
natural, o governo não deve visar só aos interesses daqueles que têm o poder
nas mãos, mas o bem dos que lhe estão submetidos. Tal é o ensino da filosofia,
não menos que da fé cristã. Por outra parte, a autoridade vem de Deus e é uma participação da sua autoridade suprema;
desde então, os que são os depositários dela devem exercê-las à imitação de
Deus, cuja paternal solicitude não se estende menos a cada uma das criaturas em
particular do que a todo o seu conjunto. Se, pois, os interesses gerais, ou o
interesse de uma classe em particular, encontram-se lesados ou simplesmente
ameaçados, e não for possível remediar ou obviar isso de outro modo, é toda a necessidade
recorrer à autoridade pública.
Ora, importa
à salvação comum e particular que a ordem e a paz reinem por toda parte; que
toda a economia da vida doméstica seja regulada segundo os mandamentos de Deus
e os princípios da lei natural; que a religião seja honrada e observada; que se
vejam florescer os costumes públicos e particulares; que a justiça seja
religiosamente graduada, e que nunca uma
classe possa oprimir impunemente a outra; que cresçam robustas gerações,
capazes de ser o sustentáculo, e, se necessário for, o baluarte da pátria. É por isso que os operários, abandonando o
trabalho ou suspendendo-os por greves, ameaçam a tranquilidade pública; que
os laços naturais da família afrouxam entre os trabalhadores; que se calca aos
pés a religião dos operários, não lhes facilitando o cumprimento dos seus
deveres para com Deus; que a promiscuidade dos sexos e outras excitações aos
vícios constituem nas oficinas um perigo para a moralidade; que os patrões
esmagam os trabalhadores sob o peso de um ônus iníquo, ou desonram neles a
pessoa humana por condições indignas e degradantes; que atenta, contra a sua
saúde por um trabalho excessivo e desproporcionado com a sua idade e sexo: em
todos estes casos é absolutamente necessário aplicar em certos limites a força
e autoridade das leis. Esses limites serão determinados pelo mesmo fim que
reclama o socorro das leis, isto é, que elas não devem avançar nem empreender
nada além do que for necessário para reprimir os abusos e afastar os perigos.
Os direitos,
em que eles se encontram, devem ser religiosamente respeitados e o Estado deve
assegura-los a todos os cidadãos, prevenindo ou vingando a sua violação.
Todavia, na proteção dos direitos particulares, deve-se preocupar, de maneira
especial, com os fracos e indigentes. A classe rica faz suas das suas riquezas
uma espécie de baluarte e tem menos necessidade da tutela pública. A classe
indigente, ao contrário, sem riquezas que a ponham a coberto das injustiças,
contra principalmente com a proteção do Estado. Que o Estado se faça, pois, sob
um particularíssimo título, a providência dos trabalhadores, que em geral
pertencem à classe pobre.
3. Casos particulares de intervenção
(a) A garantia da propriedade
particular
Mas é
conveniente descer expressamente a algumas particularidades. É um dever
absoluto dos governos assegurar a propriedade particular por meio das leis
sábias. Hoje especialmente, no meio de tamanho ardor de cobiças desenfreadas, é
preciso que o povo se conserve no seu dever; porque, se a justiça lhe concede o
direito de empregar os meios de melhorar a sua sorte, nem o bem público consentem que danifiquem alguém na sua fazenda nem
que se invadam os direitos alheios sob pretextos de não sei que igualdade.
Por certo, a máxima parte dos operários quereriam melhorar de condição por
meios honestos sem prejudicar a ninguém; todavia, não poucos há que, embebidos de máximas falsas e desejosos de
novidade, procuram a todo custo excitar e impelir os outros a violências. Intervenha,
portanto a autoridade do Estado, e, reprimindo os agitadores, preserve os bons
operários do perigo da sedução e os legítimos patrões de serem despojados do
que é seu.
(b) Garantia do trabalho
(1) Contra a greve
O trabalho
muito prolongado e pesado e uma retribuição mesquinha dão, não poucas vezes,
aos operários ocasião de greves. É preciso que o Estado ponha cobro a esta
desordem grave e frequente, porque estas
greves causam dano não só aos patrões, mas também ao comércio e aos interesses
comuns; e em razão das violências e tumultos, a que de ordinário dão ocasião,
põem muitas vezes em risco a tranquilidade pública. O remédio, portanto,
nesta parte, mais eficaz e salutar é prevenir o mal com a autoridade das leis e
impedir a explosão, removendo a tempo as causas de que se prevê que hão de
nascer os conflitos entre os operários e patrões.
(2) Condições de trabalho
Muitas outras
coisas deve igualmente o Estado proteger ao operário, e em primeiro lugar os
bens da alma. A vida temporal, posto que
boa e desejável, não é o fim para que fomos criados; mas é a via e o meio
para aperfeiçoar, com o conhecimento da verdade e com a prática do bem, a vida
do espírito. O espírito é o que tem em
si impressa a semelhança divina, e o qual reside aquele principado em
virtude do qual foi dado ao homem o direito de dominar as criaturas inferiores
e de fazer servir à sua utilidade toda a terra e todo o mar: “ Enchei a terra e
a sujeitei, dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu e sobre todos
os animais que se movem sobre a terra” (Gn 1,28). Nisto todos os homens são
iguais, e não há diferença alguma entre ricos e pobres, patrões e criados,
monarcas e súditos, “ porque é o mesmo Senhor de todos” (Rm 10,12). A ninguém é lícito violar impunemente a dignidade do
homem, do qual Deus mesmo dispõe com
grande reverência, pôr-lhe impedimentos, para que ele siga o caminho
daquele aperfeiçoamento que é ordenado para o alcance da vida eterna; pois, nem
ainda por eleição livre, o homem pode renunciar a ser tratado segundo a sua
natureza e aceitar a escravidão do espírito; porque não se trata de direitos
cujo exercício seja livre, mas de deveres para co Deus que são absolutamente
invioláveis.
Daqui vem,
como consequência, a necessidade do repouso festivo. Isso, porém, não quer
dizer que se deve estar em ócio por mais largo espaço de tempo, e muito menos
significa uma inação total, como muitos desejam, e que é fonte de vícios e ocasião de dissipação; mas um repouso
consagrado à religião. Unido à religião, o
repouso tira o homem dos trabalhos e das ocupações da vida ordinária para o
chamar ao pensamento dos bens celestes e ao culto devido à Majestade divina.
Eis aqui a principal natureza e fim do repouso festivo que Deus, com lei
especial, prescreveu ao homem no Antigo Testamento, dizendo-lhe: “Recorda-te de
santificar o sábado” (Ex 20,8); e que ensinou
com o seu exemplo, quando no sétimo dia, depois de ter criado o homem,
repousou: “Repousou no sétimo dia de todas as suas obras que tinha feito” (Gn
2,2).
No que diz
respeito aos bens naturais e exteriores, primeiro que tudo é um dever da autoridade pública subtrair o pobre operário à desumanidade
de ávidos especuladores, que abusam, sem nenhuma discrição, das pessoas
como das coisas. Não é justo nem humano exigir do homem tanto trabalho a ponto
de fazer pelo excesso da fadiga embrutecer o espírito e enfraquecer o corpo. A
atividade do homem, restrita como a sua natureza, tem limites que não se podem
ultrapassar. O exercício e o uso a aperfeiçoam, mas é preciso que de quando em
quando se suspenda para dar lugar ao
repouso. Não deve, portanto, o trabalho prolongar-se por mais tempos do que as forças
permitem. Assim o número de horas de trabalho diário não deve exceder a força
dos trabalhadores, e a quantidade do repouso deve ser proporcionada à qualidade
do trabalho, às circunstâncias do tempo e do lugar, à compleição e saúde dos
operários. O trabalho, por exemplo, de extrair pedras, ferro, chumbo e outros materiais
escondidos debaixo da terra, sendo mais pesado e nocivo à saúde, deve ser
compensado com uma duração mais curta. Deve-se também atender às estações,
porque não poucas vezes um trabalho que facilmente se suportaria uma estação,
em outra é de fato insuportável ou somente se vence com dificuldade.
Enfim, o que
o homem válido e na força da idade pode fazer, não será equitativo exigi-lo de
uma mulher ou de uma criança. Especialmente a infância – e isto deve ser
restritamente observado – não deve entrar na oficina senão quando a sua idade
tenha suficientemente desenvolvido nela as forças físicas, intelectuais e
morais; do contrário, como uma planta ainda tenra, ver-se-á murchar com um
trabalho demasiado precoce, dar-se-á cabo de sua educação. Trabalhos há também
que se não adaptam tanto à mulher, a
qual a natureza destina de preferência aos arranjos domésticos, que, por
outro lado, salvaguardam admiravelmente a honestidade do sexo, e compreendem
melhor, pela sua natureza, ao que pede a boa educação dos filhos e a
prosperidade da família. Em geral, a duração do descanso deve medir-se pelo
dispêndio das forças que ele deve restituir. O direito ao descanso de cada dia,
assim como à cessação do trabalho no dia
do Senhor, deve ser a condição
expressa ou tácita de todo contrato feito entre patrões e operários. Onde
essa condição não entrar, o contrato não será probo, pois ninguém pode exigir
ou prometer a violação dos deveres do homem para com Deus e para consigo mesmo.
(3) A questão do salário
Passemos
agora a outro ponto da questão e de não menor importância, que, para evitar os
extremos, demanda uma definição precisa. Referimo-nos à fixação do salário. Uma
vez livremente aceito o salário por outra parte, assim raciocina, o patrão
cumpre todos os seus compromissos desde que o pague e não é obrigado a mais nada.Em
tal hipótese, a justiça só seria lesada se ele se recusasse a saldar a dívida
ou o operário a concluir todo o seu trabalho, e a satisfazer as suas condições;
e neste único caso, com exclusão de qualquer outro, é o poder público teria de
intervir para fazer valer o direito de qualquer deles.
Semelhante
raciocínio não encontrará um juiz equitativo que consinta em abraçá-lo sem
reserva, pois não abrange todos de questão e omite um deveras importante.
Trabalhar é exercer a atividade com o fim de procurar o que requerem as
diversas necessidades do homem, mas principalmente a sustentação da própria
vida. “ Comerás o teu pão com suor do teu rosto” (Gn 3,19). Eis a razão por que
o trabalho recebeu da natureza um duplo cunho: é pessoal, porque a força ativa é inerente à pessoa, e porque é
propriedade daquele que a exerce e a recebeu para sua utilidade; e é necessário, porque o homem precisa de
sua existência, e porque a deve conservar para obedecer às ordens irrefragáveis
da natureza. Ora, se não se encarar o trabalho senão pelo seu lado pessoal, não
há dúvida de que o operário pode a seu talante restringir a taxa do salário. A
mesma vontade que dá o trabalho pode contentar-se com uma pequena remuneração
ou mesmo não exigir nenhuma. Mas já é outra coisa, se ao caráter de personalidade se juntar o de necessidade, que o pensamento pode
abstrair, mas que em realidade não se pode separar: efetivamente, conservar a
existência é um dever imposto a todos os
homens e ao qual não se pode subtrair sem crime. Desse dever nasce
necessariamente o direito de procurar as coisas necessárias à subsistência, e
que o pobre as não procure senão mediante o salário do seu trabalho. Façam,
pois, o patrão e o operário todas as convenções que lhes aprouver, cheguem
inclusive a acordar na cifra do salário: acima
da sua livre vontade está uma lei de justiça natural, mais elevada e mais
antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a
subsistência do operário sóbrio e honrado. Mas se, constrangido pela
necessidade ou forçado pelo receio de um mal maior, aceita a condições duras
que por outro lado não lhe seria permitido recusar porque lhe são impostas pelo
patrão ou por quem faz oferta do trabalho, é claro que sofre uma violência
contra a qual a justiça protesta.
Mas, sendo de
temer que nesses casos e em outros análogos, como no que diz respeito às horas
diárias de trabalho e à saúde dos operários, a intervenção dos poderes públicos
seja importuna, sobretudo por causa da variedade das circunstâncias, dos tempos
e dos lugares, será preferível que a solução seja confiada às corporações ou
sindicatos de que falaremos mais adiante, ou que se recorra a outros meios de
defender os interesses dos operários, mesmo com o auxílio e apoio do Estado, se
a questão o reclamar.
(c) Educação para a poupança
O operário
que receber um salário suficiente para prover com desafogo às suas necessidades
e às da sua família, se for avisado, seguirá o conselho que parece dar-lhe a
própria natureza: aplicar-se-á a ser
parcimonioso e agirá de forma que, com prudentes economias, vá juntando
um pequeno pecúlio, que lhe permita chegar um dia a adquirir um modesto
patrimônio. Já vimos que a presente questão não podia receber solução
verdadeiramente eficaz, se não se começasse por estabelecer como princípio fundamental a inviolabilidade da
propriedade particular. Importa, pois, que as leis favoreçam o espírito de
propriedade, o reanimem e desenvolvam, tanto quanto possível, entre as massas
populares. Uma vez que obtidos esse resultado, seria ele a fonte dos mais
preciosos benefícios, e em primeiro lugar de uma repartição dos bens certamente
mais equitativa. A violência das
revoluções políticas dividiu o corpo social em duas classes e cavou entre elas
um imenso abismo. De um lado a onipotência na opulência: uma facção que,
senhora absoluta da indústria e do comércio, torce o curso das riquezas e faz
correr para os seus lados todos os mananciais; facção que aliás tem na sua mão
mais de um motor da administração pública. Do outro, a fraqueza na indigência:
uma multidão com a alma dilacerada, sempre pronta para a desordem. Ah,
estimule-se a industriosa atividade do povo com a perspectiva da sua
participação na propriedade do solo, e ver-se-á nivelar pouco a pouco o abismo
que separa a opulência da miséria, e operar-se a aproximação das duas classes.
Além disso, a
terra produzirá tudo em maior abundância, pois o homem é assim feito: o
pensamento de que trabalha em terreno que é seu redobra o seu ardor e a sua
aplicação. Chega a pôr todo o seu amor numa terra que ele mesmo cultivou, que
lhe promete a si e aos seus não só o estritamente necessário, mas ainda uma
certa abastança.
Não há não
descubra sem esforço os efeitos dessa duplicação da atividade sobre a
fecundidade da terra e sobre a riqueza das nações.
A terceira
utilidade será a suspensão do movimento de emigração: ninguém, com efeito,
quereria trocar por uma região estrangeira a sua pátria e a sua terra natal, se
nesta encontrasse os meios de levar uma vida mais tolerável. Mas uma condição
indispensável para que todas essas vantagens se convertam em realidade é que a propriedade particular não seja
esgotada por um excesso de encargos e de impostos. Não é das leis humanas,
mas da natureza, que emana o direito da propriedade individual; a autoridade
pública não os pode abolir; o que ela pode é regular-lhe o uso e conciliá-lo
com o bem comum. É por isso que ela opera contra a justiça e contra a
humanidade quando, sob o nome de impostos, sobrecarrega desmedidamente os bens
dos particulares.
C. A TAREFA DAS ASSOCIAÇÕES
1. Necessidade da colocação de todos
Em último
lugar, diremos que os próprios patrões e operários podem singularmente auxiliar
a solução, por meio de todas as próprias a avaliar eficazmente a indigência e a
operar uma aproximação entre as duas classes. Desse número são as associações
de socorros mútuos; as diversas instituições, devidas à iniciativa particular,
que têm por fim socorrer os operários, bem como as suas viúvas e órfãos, em
caso de morte, de acidentes ou de enfermidades; os patronatos que exercem uma
proteção benéfica para com as crianças dos dois sexos, os adolescentes ou de
enfermidade e dos homens feitos. Mas o primeiro pertence às corporações
operárias, que abrangem quase todas as outras. Os nossos antepassados
experimentaram por muito tempo a benéfica influência dessas associações. Ao
mesmo tempo que os artistas encontravam nelas Inapreciáveis vantagens, as artes
receberam delas novo lustro e nova vida, como o proclama grande quantidade de
monumentos. Sendo hoje mais cultas as gerações, mais polidos os costumes, mais
numerosas as exigências da vida cotidiana, é fora de dúvida que não se podia
deixar de adaptar as associações a essas novas condições. Assim, com prazer nós
vemos irem-se formando por toda a parte sociedades desse gênero, quer compostas
só de operários e patrões: é para desejar que aumentem a sua ação. Conquanto
nos tenhamos ocupado delas mais de uma vez, queremos aqui a sua oportunidade e
o seu direito de existência e indicar como devem organizar-se e qual deve ser o
seu programa de ação.
2. O direito à associação é natural
A experiência
que o homem adquiri todos os dias da exiguidade das suas forças obriga-o e
impele-o a agregar-se a uma cooperação estranha. É na Sagrada Escritura que se
lê esta máxima: “Mais valem dois juntos que um só, pois tiram vantagem da sua
associação. Se um cai, o outro sustenta-o. Desgraçado o homem só, pois, quando
cair, não terá ninguém que o levante” (Ecl 4, 9-12). E esta: “O irmão que é
ajudado por seu irmão é uma cidade forte” (Pr 18,19). Dessa propensão natural,
como de um único germe, nasce, primeiro, a sociedade civil; depois, no próprio
seio dessa, outras sociedades que, por serem restritas e imperfeitas, não
deixam de ser sociedades verdadeiras. Entre as pequenas sociedades e a grande,
há profundas diferenças, que resultam do seu fim próximo. O fim da sociedade
civil abrange universalmente todos os cidadãos, pois esse fim está no bem
comum, isto é, num bem do qual todos e cada um têm direito de participar em
medida proporcional. Por isso se chama público, porque “reúne os homens para
formarem uma nação”. Ao contrário, as sociedades que se constituem no seu seio
são frágeis porque são particulares, e o são com efeito, pois a sua razão de
ser imediata é a utilidade particular e exclusiva dos seus membros: “A
sociedade particular é aquela que se forma com um fim particular, como quando
dois ou três indivíduos se associam para exercerem em comum o comércio”. Ora,
pelo fato de as sociedades particulares não terem existência senão no seio da
sociedade civil, da qual são como outras tantas partes, não segue, falando em
geral e considerando apenas a sua
natureza, que o Estado possa negar-lhes a existência. O direito de
existência foi-lhes outorgados pela própria natureza; e a sociedade civil foi instituída para proteger o direito natural, não
para o aniquilar. Por essa razão, uma sociedade civil que proibisse as
sociedades públicas e particulares, atacar-se-ia a si mesma, pois todas as
sociedades públicas e particulares tiram a sua origem de um mesmo princípio; a
natural sociabilidade do homem. Certamente se dão conjunturas que autorizam as
leis a opor-se à fundação de uma sociedade desse gênero. Se uma sociedade, em
virtude mesmo dos seus estatutos orgânicos, trabalhasse para um fim em oposição
flagrante com a probidade, com a justiça, com a segurança do Estado, os poderes
públicos teriam o direito de lhe impedir a formação, ou o de dissolvê-la, se já
estivesse formada. Mas deviam em tudo isso proceder com grande circunspecção
para evitar usurpação dos direitos dos cidadãos, e para não estatuir, sob a cor
de utilidade pública, coisa alguma que a razão houvesse de desaprovar. Pois uma lei não merece obediência, senão
enquanto é conforme com a reta razão e a lei eterna de Deus.
Aqui,
apresentam-se ao nosso espírito as confrarias, as congregações e as ordens
religiosas de todo o gênero, nascidas da autoridade da Igreja e da piedade dos
fiéis: quais tenham sido os seus frutos de salvação para o gênero humano até
nossos dias, a história o diz suficientemente.
Considerando
simplesmente o ponto de vista da razão, estas sociedades aparecem como fundadas
com um fim honesto, e, consequentemente, sob os auspícios do direito natural:
no que elas têm de relativo à religião, não dependem senão da Igreja. Os poderes
públicos não podem, pois, legitimamente, arrogar-se nenhum direito sobre elas,
atribuir-se a sua administração; a sua obrigação é antes respeitá-las,
protegê-las e, em caso de necessidade, defendê-las. Justamente o contrário é
que nós temos sido condenados a crer, principalmente nesses últimos tempos. Em
não poucos países, o Estado tem posto mão nessas sociedades, e tem acumulado a
esse respeito injustiça: sujeição às leis civis, privações do direito legítimo
de personalidade, espoliação dos bens. Sobre esses bens, a Igreja tinha os seus
direitos – e cada um dos membros também tinha os seus: os doadores, que lhe
haviam dado uma aplicação, e aqueles, enfim, que delas auferiam socorros e
alívio, tinham os seus. Assim não podemos deixar de deplorar amargamente
espoliações tão iníquas e tão funestas; tantos mais que se ferem de proscrições
as sociedades católicas na mesma ocasião em que se afirma a legalidade das
sociedades particulares, e que, aquilo que se recusa a homens pacíficos e que
não têm em vista senão a utilidade pública, se concede, e por certo muito
amplamente, a homens que meditam planos funestos para a religião e também para
o Estado.
Certamente em
nenhuma outra época se viu tão grande multiplicidade de associações de todo o
gênero, principalmente de associações operárias. Não é, porém, aqui o lugar
para investigar qual é a origem de muitas delas, qual o seu fim e quais os
meios com que tendem para esse fim. Mas é uma opinião, confirmada por numerosos
indícios, que elas são ordinariamente
governadas por chefes ocultos, e que obedecem a uma palavra de ordem
igualmente hostil ao nome cristão e à segurança das nações; que, depois de
terem açambarcado todas as empresas, se há operários que se recusam a entrar em
seu seio, elas fazem-lhes expiar a sua recusa pela miséria.
Nesse estado
de coisas, os operários cristãos não têm remédio senão escolher entre estes
dois partidos: ou darem os seus nomes a sociedades de que a religião tem tudo a
temer, ou organizarem-se eles próprios e unirem as suas forças para poderem
sacudir denodadamente um jugo tão injusto e tão intolerável. Haverá homens,
verdadeiramente empenhados em arrancar o supremo bem da humanidade a um perigo
iminente, que possam ter a menor dúvida de que é necessário optar por este
último partido?
3. Favorecer os congressos católicos
É altamente
louvável o zelo de grande número dos nossos, que, conhecendo perfeitamente as
necessidades da hora presente, sondam cuidadosamente o terreno, para aí
descobrirem uma vereda honesta que conduza à reabilitação da classe operária.
Constituindo-se protetores das pessoas dedicadas ao trabalho, esforçam-se por
aumentar a sua prosperidade, tanto doméstica como individual, e regular com
equidade as relações recíprocas dos patrões e dos operários; por manter e enraizar
em uns e outros a lembrança dos seus deveres e a observância dos prefeitos que,
conduzindo o homem à moderação e condenando todos os excessos, mantêm nas
nações, e entre elementos tão diversos de pessoas e de coisas, a concórdia e a
harmonia mais perfeita. Sob a inspiração dos mesmos pensamentos, homens de
grande mérito se reúnem frequentemente em congresso, para comunicarem
mutuamente as ideias, unirem as suas forças, ordenarem programas de ação.
Outros ocupam-se em fundar corporações adequadas às diversas profissões e em
fazer entrar nelas os artistas; coadjuvam estes com os seus conselhos e a sua
fortuna, e providenciam para que não lhes falte nunca um trabalho honrado e
proveitoso. Os bispos, por seu lado, animam esses esforços e os colocam sob a sua
proteção: por sua autoridade e sob os seus auspícios, membros do clero tanto
secular como regular se dedicam, em grande número, aos interesses espirituais
das corporações. Finalmente, não faltam católicos que, possuidores de
abundantes riquezas, convertidos de alguma sorte em companheiros voluntários
dos trabalhadores, não olham a despesas para fundar e propagar sociedades, onde
estes possam encontrar, a par o atendimento às necessidades presentes, a
promessa de honroso descanso para o futuro. Tanto zelo, tantos e tão engenhosos
esforços já têm feito entre os povos em bem considerável, e muito conhecido
para que seja necessário falar deles mais detidamente. É a nossos olhos feliz
prognósticos para o futuro, e esperamos dessas corporações os mais benéficos frutos,
contanto que continuem a desenvolver-se e que a prudência presida à sua
organização. Proteja o Estado essas sociedades fundadas segundo o direito; mas
não se intrometa no seu governo interior e não toque nas molas íntimas que lhes
dão vida; pois o movimento vital procede essencialmente de um princípio
interno, e extingue-se facilmente sob a ação de uma causa externa.
4. Autonomia e disciplina das
associações
Precisam
evidentemente essas corporações, para que nelas haja unidade de ação e acordo
de vontades, de uma sábia e prudente disciplina. Se, pois, como é certo, os
cidadãos são livres para se associarem, devem sê-lo igualmente para se dotarem
com os estatutos e regulamentos? Não cremos que se possam dar regras certas e
precisas para lhes determinar os pormenores; tudo depende do gênio de cada
nação, das tentativas feitas e da experiência adquirida, do gênero de trabalho,
da expansão do comércio, e de outras circunstâncias de coisas e de tempos que
se devem pesar com ponderação. Tudo quanto se pode dizer em geral é que se deve
tomar como regra universal e constante o organizar e governar por tal forma as
corporações que proporcionem a cada um dos seus membros os meios aptos para
lhes fazerem atingir, pelo caminho mais cômodo e mais curto, o fim que eles se
pressupõem, e que consiste no maior aumento possível dos bens do corpo, do
espírito e da fortuna. Mas é evidente que se deve visar antes de tudo ao objeto
principal, que é o aperfeiçoamento moral e religioso. É principalmente esse fim
que deve regular toda a economia dessas sociedades; de outro modo, elas
degenerariam bem depressa e cairiam, por pouco que fosse, na linha das
sociedades em que não tem lugar a religião. Ora, de que serviria ao operário
ter encontrado no seio da corporação a abundância material se falta de
alimentos espirituais pusesse em perigo a salvação da sua alma? “Que vale o
homem possuir o universo inteiro, se vier a perder a sua alma?” (Mt 16,26). Eis
o caráter com que nosso Senhor Jesus Cristo quis que se distinguisse o cristão
do pagão: “ Os pagãos procuram todas essas coisas... procurai primeiro o reino
de Deus, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mt 6, 32-33).
Assim, pois, tomando a Deus por ponto de partida, dê-se amplo lugar à instrução
religiosa a fim de que todos conheçam os
os seus deveres para com ele; o que é necessário crer, o que é
necessário esperar, o que é necessário fazer para obter a salvação eterna, tudo
isso lhe deve ser cuidadosamente recomendado; premunam-se com particular
solicitude contra a sopiniões errôneas e contra todas as variedades do vício.
Guie-se o operário ao culto de Deus, incite-se nele o espírito de piedade,
faça-se principalmente fiel à observância dos domingos e dias festivos. Aprenda
ele a amar e a respeitar a Igreja, mãe comum de todos os cristãos, a aquiescer
aos seus preceitos, a frequentar os seus sacramentos, que são fontes divinas
onde a alma se purifica das suas manchas e bebe a santidade.
5. Direitos e deveres dos associados
Constituída
assim a religião em fundamento de todas as leis sociais, não é difícil
determinar as relações mútuas a estabelecer entre os membros para obter a paz e
a prosperidade da sociedade. As diversas funções devem ser distribuídas da
maneira mais proveitosa aos interesses comuns, e de tal modo, que a
desigualdade não prejudique a concórdia. Importa grandemente que os encargos
sejam distribuídos com inteligência, e claramente definidos, a fim de que
ninguém sofra injustiça. Que a massa comum seja administrada com integridade, e
que se determine previamente pelo grau de indigência de cada um dos membros, a
quantidade de socorro que deve ser concedida; que os direitos e os deveres dos
patrões sejam perfeitamente conciliados com direitos e deveres dos operários. A
fim de atender às reclamações eventuais que se levantam em uma ou em outra
classe a respeito dos direitos lesados, seria muito para desejar que os
próprios estatutos encarregassem homens prudentes e íntegros, tirados do seu
seio, para regularem o litígio na qualidade de árbitros. É necessário ainda
prover de modo especial a que em nenhum tempo falte trabalho ao operário; e que
haja um fundo de reserva destinado a fazer face, não somente aos acidentes
súbitos e fortuitos inseparáveis do trabalho industrial, mas ainda à doença, à
velhice e aos reverses da fortuna.
Essas leis,
contanto que sejam aceitas de boa vontade, bastam para assegurar aos fracos a
subsistência e certo bem-estar; mas as corporações católicas são chamadas ainda
a prestar os seus bons serviços à prosperidade geral. Pelo passado podemos sem
temeridade prever o futuro. Uma época cede lugar a outra; mas o curso das
coisas apresenta maravilhosas semelhanças, preparadas por essa Providência que
tudo dirige e faz convergir para o fim que Deus se propôs ao criar a
humanidade.
Sabemos que
nos primeiros tempos da Igreja lhe imputavam como crime a indigência dos seus
membros, condenados a viver de esmolas ou do trabalho. Mas, despidos como
estavam de riquezas e de poder, souberam conciliar o favor dos ricos e a
proteção dos poderosos. Viam-nos diligentes, laboriosos, modelos de justiça e
principalmente de caridade. Com o espetáculo de uma vida tão perfeita e de
costumes tão puros, todos os prejuízos se dissiparam, o sarcasmo caiu e as
ficções de uma superstição inveterada desvaneceram-se pouco a pouco ante a
verdade cristã.
6. As questões operárias resolvidas
pelas próprias associações
A sorte da
classe operária, tal é a questão de que hoje se trata, será resolvida pela
razão ou sem ela e não pode ser indiferente às nações quer o seja de um modo,
quer de outro. Os operários cristãos resolvê-lo-ão facilmente pela razão, se,
unidos em sociedade e obedecendo a uma direção prudente, entrarem no caminho em
que os seus antepassados encontraram o seu bem e o dos povos. Qualquer seja nos
homens a força dos preconceitos e das paixões, se uma vontade pervertida não
afogou ainda inteiramente o sentido do justo e do honesto, será indispensável
que, cedo ou tarde, a benevolência pública se volte para esses operários, que
se hajam visto ativos e modestos, pondo a equidade acima da ganância, e
preferindo a tudo a religião do dever. Daqui, resultará esta outra vantagem:
que a esperança de salvação e grandes facilidades para atingir serão oferecidas
a esses operários que vivem no desprezo da fé cristã, ou nos hábitos que ela
reprova. Compreendem, geralmente, esses operários que tem sido joguete de
esperanças enganosas e de aparências mentirosas. Pois sentem, pelo tratamento
desumano que recebem dos seus patrões, que quase não são avaliados senão pelo
peso do ouro produzido pelo seu trabalho; quanto às sociedades que os
aliciaram, bem veem eles que, em lugar da caridade e do amor, não encontram
nelas senão discórdias intestinas, companheiras inseparáveis da pobreza
insolente e incrédula. A alma embotada, o corpo extenuado, quanto não
desejariam sacudir um jugo tão humilhante. Mas, ou por causa dos respeitos
humanos ou pelo recio da indigência, não ousam fazê-lo. Ah, para todos esses
operários podem as sociedades católicas ser de maravilhosa utilidade, se convidarem
os hesitantes a vir procurar no seu seio um remédio para todos os males, e
acolherem pressurosas os arrependidos e lhes assegurarem defesa e proteção.
CONCLUSÃO
A CARIDADE, RAINHA DAS
VIRTUDES SOCIAIS
Vede, Veneráveis Irmãos, por quem e por que
meios essa questão tão difícil demanda ser tratada e resolvida. Tome cada um a
tarefa que lhe pertence, e isso sem demora, para que não suceda que,
diferindo-se o remédio, se torne incurável o mal, já de si tão grave. Façam os
governantes uso da autoridade protetora das leis e das instituições; lembrem-se
os ricos e os patrões dos seus deveres; tratem os operários, cuja sorte está em
jogo, dos seus interesses pelas vias legítimas; e, visto que só a religião,
como dissemos em princípio, é capaz de arrancar o mal pela raiz, lembrem-se
todos de que a primeira coisa a fazer é a restauração dos costumes cristãos,
sem os quais os meios mais eficazes sugeridos pela prudência humana serão pouco
aptos para produzir salutares resultados.
Quanto à
Igreja, sua ação jamais faltará por qualquer modo, e será tanto mais fecunda,
quanto mais livremente se possa desenvolver. Nós desejamos que compreendam isso
sobretudo aqueles cuja missão é velar
pelo bem público. Empreguem nesse ponto os ministros do santuário toda a
energia da sua alma e generosidade do seu zelo, e guiados pela vossa autoridade
e pelo vosso exemplo, veneráveis irmãos, não se cansem de inculcar a todas as
classes da sociedade as máximas do Evangelho; façamos tudo quanto estiver ao
nosso alcance para a salvação dos povos, e, sobretudo, alimentem em si e
acendam nos outros, nos grandes e nos pequenos, a caridade, senhora de todas as
virtudes. Portanto, a salvação desejada deve ser principalmente o fruto de uma
grande efusão de caridade, queremos dizer, da caridade que compreendia em si
todo o Evangelho, e que, sempre pronta a sacrificar-se pelo próximo, é o
antídoto mais seguro contra o orgulho e o egoísmo do século. Dessa virtude,
descreveu S. Paulo as feições características com as seguintes palavras: “A
caridade é paciente, é benigna, não cuida do seu interesse; tudo sofre; tudo
suporta” (1Cor 13,4-7).
Como o sinal
dos favores celestes e penhor de nossa benevolência, a cada um de vós,
veneráveis irmãos, ao vosso clero e ao vosso povo, com grande afeto no Senhor,
concedemos a bênção apostólica.
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