domingo, 8 de junho de 2014

RERUM NOVARUM


Sobre a condição dos operários (contra o socialismo/comunismo)




PAPA LEÃO XVIII

INTRODUÇÃO
 
MOTIVO DA ENCÍCLICA: A QUESTÃO OPERÁRIA
 
A sede de inovações, que há muito tempo se apoderou das sociedades e as tem numa agitação febril, devia, tarde ou cedo, passar das regiões da política para a esfera vizinha da economia social.
Efetivamente, os progressos incessantes da indústria, os novos caminhos em que entraram as artes, a alteração das relações entre os operários e os patrões, a afluência da riqueza nas mãos de um pequeno número, ao lado da indigência da multidão, a opinião enfim mais avantajada que os operários formam de si mesmos e a sua união mais compacta, tudo isso, sem falar da corrupção dos costumes, deu em resultado final um temível conflito. Por toda parte, os espíritos estão apreensivos e numa ansiedade expectante, o que por si só basta para mostrar quantos e quão graves interesses estão em jogo. Essa situação preocupa e põe ao mesmo tempo em exercício o gênio dos doutos, a prudência dos sábios, as deliberações das reuniões populares, a perspicácia dos legisladores e os conselhos dos governantes, e não há, presentemente, outra causa que impressione com tanta veemência o espírito humano.
É por isso que, veneráveis irmãos, o que em outras ocasiões fizemos, para bem da Igreja e da salvação comum dos homens, em nossas encíclicas sobre a soberania política, a liberdade humana, a constituição cristã dos Estados e outros assuntos análogos, refutando, segundo nos pareceu oportuno, as opiniões errôneas e falazes, o julgamos dever repetir hoje e pelos mesmos motivos, falando-vos da condição dos operários.
Já tocamos essa matéria muitas vezes, quando se nos tem proporcionado ensejo; mas a consciência do nosso cargo apostólico impõe-nos como um dever tratá-la nesta encíclica mais explicitamente e com maior desenvolvimento, a fim de pôr em evidência os princípios de uma solução, conforme à justiça e à equidade. O problema nem é fácil de resolver, nem isento de perigos. É difícil, efetivamente, precisar com exatidão os direitos e os deveres que devem ao mesmo tempo reger a riqueza e o proletariado, o capital e o trabalho. Por outro lado, o problema não é sem perigos, porque não poucas vezes homens turbulentos e astuciosos procuram desvirtuar-lhe o sentido e aproveitam-no para excitar as multidões e fomentar desordens. Em todo caso, nós estamos persuadidos, e todos concordam nisso, de que é necessário, com medidas prontas e eficazes, vir em auxílio dos homens de classes inferiores, atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida. O século passado (século XVIII) destruiu, sem as substituir por coisa alguma, as corporações antigas, que eram para eles uma proteção; os princípios e o sentimento religioso desapareceram das leis e das instituições públicas, e assim, pouco a pouco, os trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça de uma concorrência desenfreada.
A usura voraz veio agravar ainda mais o mal. Condenada muitas vezes pelo julgamento da Igreja, não deixou de ser praticada sob outra forma por homens ávidos de ganância, e de insaciável ambição. A tudo isso deve-se acrescentar o monopólio do trabalho, e dos papéis de crédito, que se tornaram o quinhão de um pequeno número de ricos e de opulentos, que impõem assim um julgo quase servil à imensa multidão de proletários.
 

PARTE I
O SOCIALISMO: FALSO REMÉDIO
A solução socialista inaceitável pelos operários
 
Os socialistas, para curar esse mal, instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem, e pretendem que toda propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que os bens de um indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua administração deve voltar para os municípios ou para o Estado. Mediante essa transladação das propriedades e essa igual repartição das riquezas e das comodidades que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz aos males presentes. Mas semelhante teoria, longe de ser capaz de pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário se fosse posta em prática. Outrossim, é sumamente injusta, por violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender à subversão completa do edifício social.
De fato, como é fácil compreender, a razão intrínseca do trabalho empreendido por quem exerce uma arte lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador, é conquistar um bem que possuirá como próprio e como pertencendo-lhe; porque, se põe à disposição de outrem suas forças e sua indústria, não é, evidentemente, por outro motivo senão para conseguir com que possa prover à sua sustentação e às necessidades da vida, e espera do seu trabalho, não só  direito ao salário, mas ainda um direito estrito e rigoroso para usar dele como entender. Portanto, se, reduzindo as suas despesas, chegou a fazer algumas economias, e se, para assegurar a sua conservação, as emprega, por exemplo, num campo, torna-se evidente  que esse campo não é outra coisa senão o salário transformado – o terreno assim adquirido será propriedade do trabalhador com o mesmo título que a remuneração do seu trabalho. Mas quem não vê que é precisamente nisso que consiste o direito da propriedade mobiliária e imobiliária? Assim, essa conversão da propriedade particular em propriedade coletiva, tão preconizada pelos socialistas, não teria outro efeito senão tornar a situação dos operários mais precária, retirando-lhes a livre disposição do seu salário e roubando-lhes, por isso mesmo, toda esperança e toda possibilidade de engrandecerem o seu patrimônio e melhorarem a sua situação.
Mas, e isso parece ainda mais grave, o remédio proposto está em oposição flagrante com a justiça, porque a propriedade particular e pessoal é, para o homem, de direito natural.
Há, efetivamente, desse ponto de vista, uma grandíssima diferença entre o homem e os animais destituídos de razão. Estes não se governam a si mesmos; são dirigidos e governados pela natureza, mediante duplo instinto, que, por um lado, conserva a sua atividade sempre viva e lhes desenvolve as forças, por outro, provoca e circunscreve ao mesmo tempo cada um dos seus movimentos. O primeiro instinto leva-os à conservação e à defesa de sua própria vida; o segundo, à propagação da espécie; e esse duplo resultado obtêm-no facilmente pelo uso das coisas presentes e postas ao seu alcance. Por outro lado, seriam incapazes de transpor esses limites, porque apenas são movidos pelos sentidos e por cada objeto particular que os sentidos percebem.
Muito diferente é a natureza humana. Primeiramente, no homem reside, em sua perfeição, toda a virtude da natureza sensitiva, e desde logo lhe pertence, não menos que esta, gozar dos objetos físicos e corpóreos. Mas a vida sensitiva ainda só não abraça toda a natureza humana, mas é-lhe muito inferior e própria para lhe obedecer e ser-lhe sujeita. O que em nós se avantaja, o que nos faz homens e nos distingue essencialmente no animal, é a razão ou a inteligência, e em virtude dessa prerrogativa deve reconhecer-se ao homem não só a faculdade geral de usar das coisas exteriores, mas ainda o direito estável e perpétuo de as possuir, tanto as que se consomem pelo uso, como as que permanecem depois de nos terem servido.
 
A propriedade particular é de direito natural
Uma consideração mais profunda da natureza humana fará sobressair melhor ainda essa verdade. O homem abrange pela sua inteligência uma infinidade de objetos, e às coisas presentes acrescenta e prende as coisas futuras; além disso, é senhor das suas ações também sob a direção da lei eterna e sob o governo universal da providência divina, ele é, de algum modo, para si a  sua lei e a sua providência. É por isso que tem o direito de escolher as coisas que julgar mais aptas , não só para prover ao presente, mas ainda ao futuro. De onde segue que deve ter sob o seu domínio não só os produtos da terra, mas ainda a própria terra, que, pela sua fecundidade, ele vê estar destinada a ser sua fornecedora do futuro. As necessidades do homem repetem-se perpetuamente: satisfeitas hoje, renascem amanhã, com sempre novas exigências. Foi preciso, portanto, para que ele pudesse realizar o seu direito em todo o tempo, que a natureza pusesse à sua disposição um elemento estável e permanente, capaz de lhe fornecer perpetuamente os meios. Ora, esse elemento só podia ser a terra, com os seus recursos sempre fecundos.
E não se apele para a providência do Estado, porque o Estado é posterior ao homem, e antes que ele pudesse formar-se, já o homem tinha recebido da natureza o direito de viver e proteger sua existência.
Não se oponha também à legitimidade da propriedade particular o fato de que Deus concedeu a terra a todo o gênero humano para a desfrutar, porque Deus não concedeu aos homens para que a dominassem confusamente todos juntos. Tal não é o sentido dessa verdade. Ela significa, unicamente, que Deus não assinou uma parte a nenhum homem em particular, mas quis deixar a limitação das propriedades à indústria humana e às instituições dos povos.
Aliás, posto que dividida em propriedades particulares, a terra não deixa de servir à utilidade comum de todos, não havendo ninguém entre os mortais que não se alimente do produto dos campos. Quem não tem bens próprios, supre-se pelo trabalho, de maneira que se pode afirmar, com toda a verdade, que o trabalho é o meio universal de prover às necessidades da vida, quer ele exerça num terreno próprio, quer em alguma arte lucrativa cuja remuneração, apenas, sai dos produtos múltiplos da terra, com os quais ele se comuta.
De tudo resulta, mais uma vez, que a propriedade particular é plenamente conforme a natureza. A terra, sem dúvida, fornece ao homem com abundância as coisas necessárias as coisas necessárias para a conservação de sua vida e ainda para o seu aperfeiçoamento, mas não poderia fornecê-las sem a cultura e sem os cuidados do homem. Ora, que faz o homem, consumindo os recursos do seu espírito e as forças do seu corpo em procurar esses bens da natureza? Aplica, para assim dizer, a si mesmo a porção da natureza corpórea que cultiva e deixa nela como que um certo cunho da sua pessoa, a ponto de que, com toda justiça, esse bem será possuído de futuro como seu, e não será lícito a ninguém violar o seu direito de qualquer forma que seja.
 
O direito de propriedade é fruto do trabalho humano
A força desses raciocínios é de uma evidência tal, que chegamos a admirar como certos partidários de velhas opiniões podem ainda contradizê-los, concedendo sem dúvida ao homem particular o uso do solo e os frutos dos campos, mas recusando-lhe o direito de possuir, na qualidade de proprietário, esse solo em que edificou, a porção da terra que cultivou. Não veem, pois, que despojam assim esse homem do fruto do seu trabalho; porque, afinal, esse campo amanhado com arte pela mão do cultivador mudou completamente de natureza: era selvagem, ei-lo arroteado; de infecundo, tornou-se fértil; o que tornou melhor está inerente ao solo e confunde-se de tal forma com ele, que em grande parte seria impossível separá-lo. Suportaria a justiça que um estranho viesse então atribuir-se esta terra banhada pelo suor de quem cultivou? Da mesma forma que o efeito segue a causa, assim é justo que o fruto do trabalho pertença ao trabalhador. É, pois, com razão, que a universalidade do gênero humano, sem se deixar mover pelas opiniões contrárias de um pequeno grupo, reconhece, considerando atentamente a natureza, que nas suas leis reside o primeiro fundamento da repartição dos bens e das propriedades particulares; foi com razão que o costume de todos os séculos sancionou uma situação tão conforme à natureza do homem e à vida tranquila e pacífica das sociedades.
Por seu lado, as leis civis, que tiram o seu valor, quando são justas, da lei natural, confirmam esse mesmo direito e protegem-no pela força.
Finalmente, a autoridade das leis divinas vem pôr-lhes o seu selo, proibindo, sob pena gravíssima, até mesmo o desejo do que pertence aos outros: “ Não desejarás a mulher do teu próximo, nem a sua casa, nem o seu campo, nem o seu boi, nem a sua serva, nem o seu jumento, nem coisa alguma que lhe pertença ” (Dt 5,21).
 
A liberdade do homem
Entretanto, esses direitos, que são inatos a cada homem considerando isoladamente, apresentam-se mais rigorosos ainda, quando se consideram nas suas relações e na sua conexão com os deveres da vida doméstica.
Ninguém põe em dúvida que, na escolha de um gênero de vida, seja lícito a cada um seguir o conselho de Jesus Cristo sobre a virgindade, ou contrair um laço conjugal. Nenhuma lei humana poderia apagar um laço conjugal poderia apagar de qualquer  forma o direito natural e primordial de todo homem ao casamento, nem circunscrever o fim principal para que ele foi estabelecido desde a origem:  “ Crescei e multiplicai-vos”(Gn 1, 28). Eis, pois, a família, isto é, a sociedade doméstica, sociedade muito pequena certamente, mas real e anterior a toda sociedade civil, à qual, desde logo, será forçosamente necessário atribuir certos direitos e certos deveres absolutamente independente do Estado. Assim, este direito de propriedade que nós, em nome da natureza, reivindicamos para o indivíduo, é preciso agora transferi-lo para o homem constituído chefe de família. Mas isso não basta: passando para a sociedade doméstica, esse direito adquire aí tanto maior força quanto mais extensão lá recebe a pessoa humana. A natureza não impõe somente ao pai de família o dever sagrado de alimentar e sustentar seus filhos; vai mais longe. Como os filhos refletem a fisionomia de seu pai e são uma espécie de prolongamento de sua pessoa, a natureza inspira-lhe o cuidado do seu futuro e a criação de um patrimônio que os ajude a defender-se, na perigosa jornada da vida, contra todas as surpresas da má fortuna. Mas esse patrimônio poderá ele criá-lo sem a aquisição e a posse de bens permanentes e produtivos que possa transmitir-lhes por via de herança?
 
Família e Estado
Assim como a sociedade civil, a família, conforme atrás dissemos, é uma sociedade propriamente dita, com a sua autoridade e o seu governo paterno, é por isso que sempre indubitavelmente na esfera que lhe determina o seu fim imediato, ela goza, para a escolha e uso de tudo o que exigem a sua conservação e o exercício de uma justa independência, de direitos pelo menos iguais aos da sociedade civil. Pelo menos iguais, dizemos nós, porque a sociedade doméstica tem sobre a sociedade civil uma prioridade lógica e uma prioridade real, de que participam necessariamente os seus direitos e os seus deveres. E os indivíduos e as famílias, entrando na sociedade, nela achassem, em vez de apoio, um obstáculo, em vez de proteção, uma diminuição de seus direitos, dentro em pouco a sociedade seria mais para evitar do que para procurar.
 
O Estado e sua intervenção na família
Querer, pois, que o poder civil invada arbitrariamente o santuário da família é um erro grave e funesto.
Certamente, se existe em algum lugar uma família que se encontre numa situação desesperada e que faça esforços vãos para sair dela, é justo que, em tais extremos, o poder público venha em seu auxílio, porque a família é um membro da sociedade. Da mesma forma, se existe um lar doméstico que seja palco de graves violações dos direitos mútuos, que o poder público intervenha para restituir a cada um os seus direitos. Isso não é usurpar as atribuições dos cidadãos, mas fortalecer os seus direitos, protegê-los e defendê-los como convém. Todavia, a ação daqueles que presidem ao governo público não devem ir mais além; a natureza proíbe-lhes ultrapassarem esses limites. A autoridade paterna não podia ser abolida, nem absorvida pelo Estado, porque ela tem uma origem comum na vida humana. “ Os filhos são alguma coisa de seu pai ”; são de certa forma uma extensão da sua pessoa, e, para falar com justiça, não é imediatamente por si que eles se agregam e se incorporam na sociedade civil, mas por intermédio da sociedade doméstica em que nasceram. Porque os “ os filhos são naturalmente alguma coisa do seu pai ... devem ficar sob a tutela dos pais até que tenham adquirido o “livre-arbítrio”. Assim, substituindo a providência paterna pela providência do Estado, os socialistas vão contra a justiça natural e quebram os laços da família.
 
As desastrosas consequências da solução socialista
Mas, além da injustiça do seu sistema, veem-se bem todas as suas funestas consequências, a perturbação em todas as classes da sociedade, uma odiosa e insuportável servidão para todos os cidadãos, porta aberta a todas as invejas, a todos os descontentamentos, a todas as discórdias; o talento e a habilidade privado dos seus estímulos, e, como consequência necessária, as riquezas estancadas na sua fonte; enfim, em lugar dessa igualdade tão sonhada, a igualdade na indigência e na miséria.
Por tudo o que nós acabamos de dizer, se compreende que a teoria socialista de propriedade coletiva deve absolutamente repudiar-se como prejudicial àqueles mesmo que se quer socorrer, contrária aos direitos naturais dos indivíduos, como desnaturando a função do Estado e perturbando a tranquilidade pública. Fique, pois, assente que o primeiro fundamento a estabelecer para todos aqueles que querem sinceramente o bem do povo é a inviolabilidade da propriedade particular. Expliquemos agora onde convém procurar o remédio desejado.
 
Parte II
O VERDADEIRO REMÉDIO:
A UNIÃO DAS ASSOCIAÇÕES
 
  1. A OBRA DA IGREJA
É com toda confiança que nós abordamos este assunto, e em toda a plenitude do nosso direito; porque a questão de que se trata é de tal natureza, que, a não se apelar para religião e para a Igreja, é impossível encontrar-lhe uma solução eficaz. Ora, como é principalmente a nós que está confiada a salvaguarda da religião e a dispensação do que é domínio da Igreja, calarmo-nos seria aos olhos de todos trair o nosso dever.
Certamente uma questão dessa gravidade demanda ainda de outros a sua parte de atividade e de esforços – isto é, dos governantes, dos senhores e dos ricos, e dos próprios operários, de cuja sorte se trata. Mas o que nós afirmamos sem hesitação é a inanidade de sua ação fora da Igreja. É a Igreja, efetivamente, que haure no Evangelho doutrinas capazes de pôr termo ao conflito ou ao menos de o suavizar, expurgando-o de tudo de que ele tenha de severo e áspero; a Igreja, que não se contenta em esclarecer o espírito dos seus ensinos, mas também se esforça em regular, de harmonia com eles, a vida e os costumes de cada um; a Igreja, que, por uma multidão de instituições eminentemente benéficas, tende a melhorar a sorte da classes dos pobres; a Igreja, que quer e deseja ardentemente que todas as classes empreguem em comum as suas luzes e as suas forças para dar à questão operária a melhor solução possível; a Igreja, enfim, que julga que as leis e a autoridade pública devem levar a esta solução, sem dúvida com  medida e com prudência, a sua parte do concurso.
 
I-Necessidade das desigualdades sociais e do trabalho cansativo
O primeiro princípio a pôr em evidência é o que o homem deve aceitar com paciência a sua condição: é impossível que na sociedade civil todos estejam elevados ao mesmo nível. É, sem dúvida, isto o que desejam os socialistas; mas contra a natureza todos os esforços são vãos. Foi ela, realmente, que estabeleceu entre os homens diferenças tão multíplices como profundas; diferenças de inteligência, de talento, de habilidade, de saúde, de força; diferenças necessárias, de onde nasce espontaneamente a desigualdade das condições. Essa desigualdade, por outro lado, reverte em pontos de todos, tanto da sociedade como dos indivíduos; porque a vida social requer um organismo muito variado e funções muito diversas, e o que leva precisamente os homens a partilharem essas funções é, principalmente, a diferença de suas respectivas condições.
No que diz respeito ao trabalho em particular, o homem, mesmo no estado de inocência, não era destinado a viver na ociosidade, mas, ao que a vontade teria abraçado livremente como exercício agradável, a necessidade lhe pôs como uma expiação: “A terra será maldita por tua causa; é pelo trabalho que tirarás com que alimentar-te todos os dias da vida” (Gn 3,17).
O mesmo se dá com todas as outras calamidades que caírem sobre o homem; neste mundo essas calamidades não terão fim nem tréguas, porque os funestos frutos do pecado são amargos, acres, acerbos, e acompanham necessariamente o homem até o derradeiro suspiro. Sim, a dor e o sofrimento são o apanágio da humanidade, e os homens poderão ensaiar tudo, tudo tentar para os banir; mas não o conseguirão nunca, por mais recursos que empreguem e por maiores forças que para isso desenvolvam. Se há quem, atribuindo-se o poder fazê-lo, prometa ao pobre uma vida isenta de sofrimentos e de trabalhos, toda de repouso e de perpétuo gozos, certamente engana o povo e lhe prepara laços onde se ocultam, para o futuro, calamidades mais terríveis que a do presente. O melhor partido consiste ver as coisas tais quais são, e, como dissemos, em procurar um remédio que possa aliviar nossos males.
 
II. Necessidade da concórdia
O erro capital na questão presente é crer que as duas classes são inimigas natas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os rico e os pobres para se combaterem mutuamente num duelo obstinado. Isso é uma aberração tal, que é necessário pôr a verdade numa doutrina contrariamente aposta, porque, assim como no corpo humano os membros, apesar da sua diversidade, se adaptam maravilhosamente uns aos outros, de modo que formam um todo exatamente proporcionado e que se poderá chamar simétrico, assim também, na sociedade, as duas classes estão destinadas pela natureza a unirem-se harmoniosamente e a conservarem-se mutuamente em perfeito equilíbrio. Elas têm imperiosa necessidade uma da outra: não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital. A concórdia traz consigo a ordem e a beleza; ao contrário, de um conflito perpétuo só podem resultar confusão e lutas selvagens. Ora, para dirimir esse conflito e cortar o mal na raiz, as instituições possuem uma virtude, admirável e múltipla.
 
III. Relações entre as classes sociais
(a).Justiça
 E, primeiramente, toda a economia das verdades religiosas, de que a Igreja é guarda e intérprete, é de natureza a aproximar e reconciliar os ricos e os pobres, lembrando às duas classes os seus deveres mútuos e, primeiro que todos os outros, os que derivam da justiça. Entre esses deveres, eis os que dizem respeito ao pobre e ao operário: deve fornecer integral e fielmente todo o trabalho a que se comprometeu por contato livre e conforme à equidade; não de vê lesar o seu patrão, nem nos seus bens, nem na sua pessoa; as suas reivindicações devem ser isentas de violências, e nunca revestir a forma de sedições; deve fugir dos homens perversos que, nos seus discursos artificiosos, lhe sugerem esperanças exageradas e lhe fazem grandes promessas, as quais só conduzem a estéreis pesares e à ruína das fortunas.
Quanto aos ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem, realçada ainda pela do cristão. O trabalho do corpo, pelo testemunho comum da razão e da filosofia cristã, longe de ser um objeto de vergonha, faz honra ao homem, porque lhe fornece um nobre meio de sustentar a sua vida. O que é vergonhoso  e desumano é usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor de seus braços. O cristianismo. Além disso, prescreve que se tenham em consideração os interesses espirituais do operário e o bem da alma. Aos patrões compete velar para que a isso seja dada plena satisfação, que o operário não siga entregue à sedução e às solicitações corruptoras, que nada venha enfraquecer o espírito de família nem os hábitos de economia. Proíbe também aos patrões que imponham aos seus subordinados um trabalho superior as suas forças ou em desarmonia com a sua idade ou o seu sexo. Mas, entre os deveres principais do patrão, é necessário pôr em primeiro lugar o de dar a cada um o salário que convém. Certamente, para fixar a justa medida do salário, há numerosos pontos de vista a considerar. De maneira geral, recordem-se o rico e o patrão de que explorar a pobreza e a miséria e especular com a indigência são coisas igualmente reprovadas pelas leis divinas e humanas; que cometeria crime de clamar vingança ao céu quem defraudasse a qualquer um o preço de seus labores: “ Eis que o salário, que tendes extorquido por fraude aos vossos operários, clama contra vós; e seu clamor subiu até os ouvidos do Deus dos exércitos” (Tg 5,4). Enfim os ricos devem precaver-se religiosamente de todo ato violento, toda fraude, toda manobra usurária que seja de natureza que seja de natureza atentar contra a economia do pobre – mais ainda, porque este é menos apto para defender-se, e porque os seus haveres, por serem de mínima importância, revestem um caráter mais sagrado.
(b)Caridade  
A obediência a essas leis – perguntamos-nos – não bastaria só, de per si, para fazer cessar todo antagonismo e suprimir-lhes as causas? Todavia a Igreja, instruída e dirigida por Jesus Cristo, eleva as suas vistas ainda mais alto; propõe um corpo de preceitos mais completo, porque ambiciona estreitar a união das duas classes até as unir uma à outra por laços de verdadeira amizade.
Ninguém pode ter verdadeira inteligência da vida mortal, nem estimá-la no seu justo valor, se não se eleva à consideração da outra vida que é imortal. Suprimiu esta, e imediatamente toda forma e toda verdadeira noção de honestidade desaparecerão; mais ainda: todo o universo se tornará um impenetrável mistério. Só quando tivermos abandonado esta vida, começaremos a viver – essa verdade, que a natureza nos ensina, é um dogma cristão sobre o qual se assenta, como sobre o seu primeiro fundamento, toda a economia da religião. Não, Deus não nos fez para estas coisas frágeis e caducas, mas para coisas celestes e eternas; não nos deu esta terra como morada fixa, mas como lugar de exílio. Que abundeis em riquezas ou outros bens,  chamados bens de fortuna, ou que estejais privados deles, isso nada importa à eterna beatitude. O uso que fizerdes deles é o que interessa. Pela sua superabundante redenção, Jesus Cristo não suprimiu as aflições que formam quase toda a trama da vida mortal; fez delas estímulos da virtude e fontes de mérito, de sorte que não há homem que possa pretender as recompensas eternas, se não caminhar sobre os traços sanguinolentos de Jesus Cristo: “ se sofrermos com ele, com ele reinaremos” (2 Tm 2,12). Por outra parte, escolhendo ele mesmo a cruz e os tormentos, minorou-lhes singularmente o peso e a amargura, e, a fim de nos tornar ainda mais suportável o sofrimento, ao exemplo acrescentou a sua graça e a promessa de uma recompensa sem fim: “ Porque o momento tão curto e tão ligeiro das aflições, que sofremos nesta vida, produz em nós o peso eterno de uma glória soberana incomparável” (2 Cor 4, 17).
C) A verdadeira utilidade das riquezas
Assim, os afortunados deste mundo são advertidos de que as riquezas não o isentam da dor; que elas não são de nenhuma utilidade para a vida eterna, mas antes um obstáculo (Mt 19,23-24); que eles devem temer diante das ameaças severas que Jesus Cristo profere contra os ricos (Lc 6,24-25; que, enfim, virá um dia em que deverão prestar a Deus, seu juiz, rigorosamente contas do uso que hajam feito de sua fortuna. Sobre o uso das riquezas, já a pura filosofia pode delinear alguns ensinamentos de suma excelência e extrema importância; mas só a Igreja no-los pode dar na sua perfeição, e fazê-los descer do conhecimento à prática. O fundamento dessa doutrina está na distinção entre a justa posse das riquezas e seu legítimo uso. A propriedade particular, já o dissemos mais acima, é de  direito natural para o homem; o exercício desse direito é coisa não só permitida, sobretudo a quem vive em sociedade, mas ainda absolutamente necessária. Agora, se se pergunta em que é necessário fazer consistir o uso dos bens, a Igreja responderá sem hesitação: “ A esse respeito o homem não deve ter as coisas exteriores por particulares, mas por comuns, de tal sorte que facilmente dê parte delas aos outros nas suas necessidades. É por isso que o Apóstolo disse: ordena aos ricos do século... dar facilmente, comunicar as suas riquezas”. Ninguém é certamente obrigado a aliviar o próximo privando-se do seu necessário ou do de sua família; nem mesmo a nada suprimir do que as conveniências ou decência impõem á sua pessoa: “ Ninguém com efeito deve viver contrariamente às conveniências”. Mas, desde que haja suficientemente satisfeito à necessidade e ao decoro, é um dever, por consequência lançar o supérfluo no seio dos pobres: “ Do supérfluo dai esmolas” (Lc 11,41). É um dever, não de estrita justiça, exceto nos casos de extrema necessidade, mas de caridade cristã, um dever, por consequência, cujo cumprimento se não pode conseguir pelas vias da justiça humana. Mas, acima dos juízos do homem e das leis, há a lei e o juízo de Jesus Cristo nosso Deus, que nos persuade de todas as maneiras a  dar habitualmente esmola: “ É mais feliz”, diz ele, “aquele que dá do que aquele que recebe” (At 20, 35), e o Senhor terá como dada ou recusada a si mesmo a esmola que se haja dado ou recusado aos pobres: “ Todas as vezes que tenhais dado esmola a um de meus irmãos é a mim que tereis dado” (Mt 25,40).
Eis, aliás, em poucas palavras, o resumo desta doutrina: quem quer que tenha recebido da divina bondade maior abundância, quer de bens externos e do corpo, quer de bens da alma, recebeu-os com o fim de fazê-los servir ao seu próprio aperfeiçoamento, e, ao mesmo tempo, como ministro da providência, ao alívio dos outros: “É por isso que quem tiver o talento da palavra tome cuidado em não se calar; quem possuir superabundância de bens, não deixe a misericórdia intumescer-se no fundo do seu coração; quem tiver a arte de governar, aplique-se com cuidado a partilhar com seu irmão o exercício dos frutos”.
 
Bem-aventurados os pobres (d)
Quanto aos deserdados da fortuna, aprendam da Igreja que, segundo o juízo do próprio Deus, a pobreza não é um opróbrio e que se não deve corar por ter de ganhar o pão com o suor do seu rosto. É o que Jesus Cristo nosso Senhor confirmou com seu exemplo. Ele, que “de muito rico que era, se fez indigente” (2 Cor 8,9) para a salvação dos homens; que, Filho de Deus e Deus ele mesmo, quis passar aos olhos do mundo por filho de um marceneiro; que chegou a consumir uma grande parte da sua vida em trabalho fabril: “ Não é ele o carpinteiro, filho de Maria?” (Mc 6,3). Quem tiver em sua frente o modelo divino compreenderá mais facilmente o que nós diremos: que a verdadeira dignidade do homem e a sua excelência reside nos seus costumes, isto é, na sua virtude; que a virtude é o patrimônio comum dos mortais, alcance de todos, dos pequenos e dos grandes, dos pobres e dos ricos; só a virtude e os méritos, seja qual for a pessoa em quem se encontrem, obterão a recompensa da eterna felicidade. Mais ainda: é para as classes desafortunadas que o coração de Deus parece inclinar-se mais. Jesus Cristo chama aos pobres bem-aventurados (Mt 5,3); convida com amor a virem a ele, a fim de consolar a todos que sofrem e que choram (Mt 11,18); abraça com caridade mais terna os pequenos e os oprimidos. Essas doutrinas foram, sem dúvida alguma, feitas para humilhar a alma ativa do rico e torná-lo mais condescendente, para reanimar a coragem daqueles que sofrem e inspirar indulgência de uns e modéstia dos outros. Com elas se acharia diminuído um abismo procurado pelo orgulho, e se obteria sem dificuldade que as duas classes se dessem as mãos e as vontades se unissem na mesma amizade.
 
(d)Fraternidade cristã
Mas é ainda demasiado pouco a simples amizade: se se obedecer aos preceitos do cristianismo, será no amor fraterno que a união se operará. De uma parte e de outra, se saberá e compreenderá que os homens são todos absolutamente nascido de Deus, seu Pai comum; que Deus é o ser único e comum fim, que ele só é capaz de comunicar aos anjos e aos homens uma felicidade perfeita e absoluta; que todos eles foram igualmente resgatado por Jesus Cristo e restabelecidos por ele na sua dignidade de filhos de Deus, e que assim um verdadeiro laço de fraternidade os une, quer entre si, quer a Cristo, seu Senhor, que é o “primogênito de muitos irmãos” (Rm 8,29). Eles saberão, enfim, que todos os bens da natureza, todos os tesouros da graça pertencem em comum e indistintamente a todo gênero humano e que só vós sois filhos, sois também herdeiros dos bens celestes: “ Se vós sois filhos, sois também herdeiros, herdeiros de Deus, coerdeiros de Jesus Cristo” (Rm 8,17).
Tal é a economia dos direitos e dos deveres que a filosofia cristã ensina. Não se veria em breve prazo estabelecer-se a pacificação, se esses ensinamentos pudessem vir a prevalecer nas sociedades?
 
4. Meios positivos
(a)A difusão da doutrina cristã
Entretanto, a Igreja não se contenta com indicar o caminho que leva a salvação; ela conduz a esta e aplica por sua própria mão ao mal o conveniente remédio. Ela dedica-se toda a instituir e a educar os homens segundo os seus princípios e a sua doutrina, cujas águas vivificantes ela tem o cuidado de espalhar, tão longe e tão largamente quanto lhe é possível, pelo ministério dos bispos e do clero. Depois, esforça-se por penetrar nas almas e por obter das vontades que se deixem conduzir e governar pela regra dos preceitos divinos. Esse ponto é capital e de grandíssima importância, porque encerra como que o resumo de todos os interesses que estão em litígio, e aqui a ação da Igreja é soberana. Os instrumentos de que ela dispõe para tocar as almas, recebeu-os, para este fim, de Jesus Cristo, e trazem em si a eficácia de uma virtude divina. São os únicos aptos para penetrar até as profundezas do coração humano, que são capazes de levar o homem a obedecer às imposições do dever, a dominar as suas paixões, a amar a Deus e ao seu próximo com sua caridade sem limites, a esmagar corajosamente todos os obstáculos que dificultam o seu caminho na estrada da virtude.
(b)A renovação da sociedade
Neste ponto, basta passar ligeiramente em revista aos exemplos da antiguidade. As coisas e fatos que vamos lembrar estão isentos de controvérsia. Assim, não se pode duvidar de que a sociedade civil tenha sido essencialmente renovada pelas instituições cristãs, que essa renovação tenha tido por efeito elevar o nível do gênero humano, ou, para melhor dizer, chamá-lo da morte à vida, e guiná-lo a um alto grau de perfeição, como não se viu semelhante nem antes nem depois, e não se verá jamais em todo o decurso dos séculos. Que, enfim, desses benefícios foi Jesus Cristo o princípio e deve ser o seu fim; assim, como tudo partiu dele, assim também tudo lhe deve ser referido. Quando, pois, o Evangelho raiou no mundo, quando os povos tiveram conhecimento do grande mistério da encarnação do Verbo e da redenção dos homens, a vida de Jesus Cristo, Deus e homem, invadiu as sociedades e impregnou-as inteiramente com sua fé, com a suas máximas e com as suas leis. É por isso que, se a sociedade humana deve ser curada, não o será senão pelo regresso à vida e às instituições do cristianismo. A quem quer regenerar uma sociedade qualquer em decadência prescreve-se com razão que a reconduza às suas origens. Porque a perfeição de toda sociedade consiste em prosseguir e atingir o fim para o qual foi fundada, de modo que todos os movimentos e todos os atos da vida social nasçam do mesmo princípio de onde nasceu a sociedade. Por isso, afastar-se do fim é caminhar para morte e voltar para ele é readquirir a vida. E o que nós dizemos de todo o corpo social aplica-se igualmente a essa classe de cidadãos que vivem do seu trabalho e que formam a grandíssima maioria.
 
(c)A beneficência da Igreja  
Nem se pense que a Igreja se deixa absorver de tal modo pelo cuidado das almas, que põe de lado o que se relaciona com a vida terrestre e mortal.
Pelo que em particular diz respeito à classe dos trabalhadores, ela faz todos os esforços para os arrancar à miséria e procurar-lhes uma sorte melhor. E certamente, não é um fraco apoio que ela que ela dá a esta obra só pelo fato de trabalhar, por palavras e atos, para reconduzir os homens à virtude. Os costumes cristãos, desde que entram em ação, exercem naturalmente sobre a prosperidade temporal a sua parte de benéfica influência; porque eles atraem o favor de Deus, princípio e fonte de todo bem; cumprem o desejo excessivo das riquezas e a sede dos prazeres, esses dois flagelos que frequentes vezes lançam a amargura e o desgosto no seio mesmo da opulência (1Tm 6,10); contentam-se enfim com uma vida e alimentação frugal, e suprem pela economia a modicidade do rendimento, longe desses vícios que consomem não só as pequenas, mas as grandes fortunas, e dissipam os maiores patrimônios. A Igreja, além disso, provê também diretamente à felicidade das classes deserdadas, pela fundação  e sustentação  de instituições que ela julga próprias para aliviar a sua miséria; e, mesmo desse gênero de benefícios, ela tem sobressaído de tal modo, que os seus próprios inimigos a elogiaram. Assim, entre os primeiros cristãos, era tal a virtude da caridade mútua, que não raro se viam os mais ricos despojarem-se de seu patrimônio em favor dos pobres. Por isso, a indigência não era conhecida entre eles (At 4,34); fora especialmente instituída para esse fim a distribuição cotidiana das esmolas, e o próprio São Paulo, apesar de absorvido por uma solicitude que abraçava todas as Igrejas, não hesitava em empreender penosas viagens para ir em pessoa levar socorro aos cristãos indigentes. Socorros do mesmo gênero eram espontaneamente oferecidos pelos fiéis em cada uma das suas assembleias – o que Tertuliano chama os “depósitos da piedade”, porque eram empregados em “sustentar e inumar as pessoas indigentes, os órfãos pobres de ambos os sexos, os domésticos idosos, as vítimas de naufrágios”.
Eis como pouco a pouco se formou esse patrimônio, que a Igreja sempre guardou com religioso cuidado como um bem próprio da família dos pobres. Ela chegou até a assegurar socorro aos infelizes, poupando-lhes a humilhação de estender a mão; porque esta mãe comum dos ricos e dos pobres, aproveitando maravilhosamente restos de caridade que ela havia provocado por toda parte, fundou sociedades religiosas e uma multidão de outras instituições úteis, que, pouco tempo depois, não deviam deixar sem alívio nenhum gênero de miséria. Há hoje, sem dúvida, um certo número de homens que, fiéis ecos dos pagãos de outrora, chegam a fazer, mesmo dessa caridade tão maravilhosa, uma arma para atacar a Igreja; e viu-se uma beneficência estabelecida pelas leis civis substituir-se à caridade cristã;mas essa caridade, que se dedica toda e sem pensamento reservado à utilidade do próximo, não pode ser suprimida por nenhuma invenção humana. Só a Igreja possui essa virtude, porque não se pode haurir senão no Sagrado Coração de Jesus Cristo, e é errar longe de Jesus Cristo estar afastado da sua Igreja.
 
A OBRA DO ESTADO
Todavia não há dúvida de que, para obter o resultado desejado, não é demais recorrer aos meios humanos. Assim, todos aqueles a quem a questão diz respeito devem visar ao mesmo fim e trabalhar em harmonia, cada um na sua esfera. Nisso há como imagem da providência governando o mundo; porque nós vemos de ordinário que os fatos e os acontecimentos que dependem de causas diversas são a resultante da sua ação comum.
 
1.O direito de intervenção do estado
Ora, que parte de ação de remédio temos nós o direito de esperar do Estado? Diremos, primeiro, que por Estado entendemos aqui, não tal governo estabelecido entre tal povo em particular, mas todo governo que corresponde aos preceitos da razão natural e dos ensinamentos divinos, ensinamentos que nós mesmo expusemos, especialmente na nossa carta encíclica Sobre a constituição cristã das sociedades.O que se pede aos governantes é um concurso de ordem geral, que consiste em toda economia das leis e das instituições; queremos dizer que devem fazer de modo das instituições; queremos dizer que devem fazer de modo que da mesma organização e do governo da sociedade brote espontaneamente e sem esforço a prosperidade, tanto pública como particular. Tal é, com efeito, o ofício da prudência civil e o dever próprio de todos aqueles que governam. Ora o que torna uma nação próspera são os costumes puros, as famílias fundadas sobre bases de ordem e de moralidade, a prática da religião e o respeito à justiça, uma imposição moderada e uma repartição equitativa dos encargos públicos, o progresso da indústria e do comércio, uma agricultura florescente e outros elementos, se os há, do mesmo gênero – todas as coisas que não se podem  aperfeiçoar, sem fazer subir tanto a vida e a felicidade dos cidadãos.
Assim como, pois, por todos esses meios, o Estado pode tornar-se útil às outras classes, assim também pode melhorar muitíssimo a sorte da classe operária, e isso em todo o rigor do seu direito, e sem ter a temer a censura de ingerência; porque, em virtude mesmo do seu ofício, o Estado deve servir o interesse comum. E é evidente que, quanto mais se multipliquem as vantagens resultantes dessa ação de ordem geral, tanto menos necessidade haverá de recorrer a outros expedientes pra remediar a condição dos trabalhadores.
 
(a)Para o bem comum
Mas há outra consideração que mais profundamente ainda diz respeito a nosso assunto. A razão formal de toda a sociedade é uma e comum a todos os seus membros, grandes e pequenos. Os pobres, com o mesmo título que os ricos, são, por direito natural, cidadãos; isto é, do número das partes vivas de que se compõe, por intermédio das famílias, o corpo inteiro da nação, para não dizer que em todas as cidades são grande número. Como, pois, seria desrazoável prover a uma classe de cidadãos e negligenciar outra, torna-se evidente que a autoridade pública deve também tomar as medidas necessárias para salvaguardar a salvação e os interesses da classe operária. Se ela faltar a isso, viola a estrita justiça que quer que a cada um seja dado o que lhe é devido. A esse respeito santo Tomás diz muito sabiamente: “ Assim como a parte e o todo são em certo modo uma mesma coisa, assim o que pertence ao todo pertence de alguma sorte a cada parte”. É por isso que, entre os graves e numerosos deveres dos governantes que querem prover, como convém, ao bem público, o principal dever, que domina todos os outros, consiste em cuidar igualmente de todas as classes de cidadãos, observando rigorosamente as leis da justiça, chamada distributiva.
 
(b)Para o bem dos operários
Mas, ainda que todos os cidadãos, sem exceção, devam contribuir para a massa dos bens comuns, os quais, aliás, por um giro natural, se repartem de novo entre os indivíduos, todavia as constituições respectivas não podem ser nem as mesmas, nem de igual medida. Quaisquer sejam as vicissitudes pelas quais as formas do governo são chamadas a passar, haverá sempre entre os cidadãos essas desigualdades de condições, sem as quais uma sociedade não pode existir nem conceber-se. Sem dúvida são necessários homens que governem, que façam leis, que administrem justiça, que, enfim, por seus conselhos ou por via da autoridade, administrem os negócios da paz e as coisas da guerra. Que esses homens devem ter a proeminência em toda a sociedade e ocupar nela o primeiro lugar, ninguém o pode duvidar, pois eles trabalham diretamente para o bem comum e de maneira tão excelente. Os homens que, pelo contrário, se aplicam às coisas da indústria, não podem concorrer para esse bem comum nem na mesma medida, nem pelas mesmas vias; entretanto, também eles, ainda que de maneira menos direta, servem muitíssimo aos interesses da sociedade. Sem dúvida alguma, o bem comum, cuja aquisição deve ter por efeito aperfeiçoar os homens, é principalmente um bem moral. Mas numa sociedade regularmente constituída deve encontrar-se ainda uma certa abundância de bens exteriores, “cujo uso é reclamado para exercício da virtude”. Ora, a fonte fecunda e necessária de todos esses bens é principalmente o trabalho do operário, o trabalho dos campos ou da oficina. Mais ainda: nessa ordem de coisas, o trabalho tem uma tal fecundidade e tal eficácia, que se pode afirmar, sem receio de engano, que ele é a fonte única de onde procede a riqueza das nações. A equidade manda, pois, que o Estado se preocupe com os trabalhadores, e proceda de modo que, de todos os bens que eles proporcionam à sociedade, lhe seja dada uma parte razoável, como habitação e vestuário, e que possam viver à custa de menos trabalho e privações. De onde resulta que o Estado deve favorecer tudo o que, de perto ou de longe, pareça de natureza a melhorar-lhes a sorte. Essa solicitude, longe de prejudicar alguém, tornar-se-á, ao contrário, de proveito de todos, porque importa soberanamente à nação que os homens, que são para ela o princípio de bens tão indispensáveis, não se encontrem continuamente a braços com os horrores da miséria.
 
2.Normas e limites do direito de intervenção
Dissemos que não é justo que o indivíduo ou a família sejam absorvidos pelo Estado, mas é justo, pelo contrário, que aquela e este tenham a faculdade de proceder com liberdade, contanto que não atentem contra o bem geral e não prejudiquem ninguém. Entretanto, aos governantes pertence proteger a comunidade e as suas partes: a comunidade, porque a natureza confiou a sua conservação ao poder soberano, de modo que a salvação pública não é somente aqui a lei suprema, mas a causa mesma e a razão de ser do principado; as partes, porque, de direito natural, o governo não deve visar só aos interesses daqueles que têm o poder nas mãos, mas o bem dos que lhe estão submetidos. Tal é o ensino da filosofia, não menos que da fé cristã. Por outra parte, a autoridade vem de Deus e é uma participação da sua autoridade suprema; desde então, os que são os depositários dela devem exercê-las à imitação de Deus, cuja paternal solicitude não se estende menos a cada uma das criaturas em particular do que a todo o seu conjunto. Se, pois, os interesses gerais, ou o interesse de uma classe em particular, encontram-se lesados ou simplesmente ameaçados, e não for possível remediar ou obviar  isso de outro modo, é toda a necessidade recorrer à autoridade pública.
Ora, importa à salvação comum e particular que a ordem e a paz reinem por toda parte; que toda a economia da vida doméstica seja regulada segundo os mandamentos de Deus e os princípios da lei natural; que a religião seja honrada e observada; que se vejam florescer os costumes públicos e particulares; que a justiça seja religiosamente graduada, e que nunca uma classe possa oprimir impunemente a outra; que cresçam robustas gerações, capazes de ser o sustentáculo, e, se necessário for, o baluarte da pátria. É por isso que os operários, abandonando o trabalho ou suspendendo-os por greves, ameaçam a tranquilidade pública; que os laços naturais da família afrouxam entre os trabalhadores; que se calca aos pés a religião dos operários, não lhes facilitando o cumprimento dos seus deveres para com Deus; que a promiscuidade dos sexos e outras excitações aos vícios constituem nas oficinas um perigo para a moralidade; que os patrões esmagam os trabalhadores sob o peso de um ônus iníquo, ou desonram neles a pessoa humana por condições indignas e degradantes; que atenta, contra a sua saúde por um trabalho excessivo e desproporcionado com a sua idade e sexo: em todos estes casos é absolutamente necessário aplicar em certos limites a força e autoridade das leis. Esses limites serão determinados pelo mesmo fim que reclama o socorro das leis, isto é, que elas não devem avançar nem empreender nada além do que for necessário para reprimir os abusos e afastar os perigos.
Os direitos, em que eles se encontram, devem ser religiosamente respeitados e o Estado deve assegura-los a todos os cidadãos, prevenindo ou vingando a sua violação. Todavia, na proteção dos direitos particulares, deve-se preocupar, de maneira especial, com os fracos e indigentes. A classe rica faz suas das suas riquezas uma espécie de baluarte e tem menos necessidade da tutela pública. A classe indigente, ao contrário, sem riquezas que a ponham a coberto das injustiças, contra principalmente com a proteção do Estado. Que o Estado se faça, pois, sob um particularíssimo título, a providência dos trabalhadores, que em geral pertencem à classe pobre.
 
3. Casos particulares de intervenção
(a) A garantia da propriedade particular
Mas é conveniente descer expressamente a algumas particularidades. É um dever absoluto dos governos assegurar a propriedade particular por meio das leis sábias. Hoje especialmente, no meio de tamanho ardor de cobiças desenfreadas, é preciso que o povo se conserve no seu dever; porque, se a justiça lhe concede o direito de empregar os meios de melhorar a sua sorte, nem o bem público consentem que danifiquem alguém na sua fazenda nem que se invadam os direitos alheios sob pretextos de não sei que igualdade. Por certo, a máxima parte dos operários quereriam melhorar de condição por meios honestos sem prejudicar a ninguém; todavia, não poucos há que, embebidos de máximas falsas e desejosos de novidade, procuram a todo custo excitar e impelir os outros a violências. Intervenha, portanto a autoridade do Estado, e, reprimindo os agitadores, preserve os bons operários do perigo da sedução e os legítimos patrões de serem despojados do que é seu.
(b) Garantia do trabalho
(1) Contra a greve
O trabalho muito prolongado e pesado e uma retribuição mesquinha dão, não poucas vezes, aos operários ocasião de greves. É preciso que o Estado ponha cobro a esta desordem grave e frequente, porque estas greves causam dano não só aos patrões, mas também ao comércio e aos interesses comuns; e em razão das violências e tumultos, a que de ordinário dão ocasião, põem muitas vezes em risco a tranquilidade pública. O remédio, portanto, nesta parte, mais eficaz e salutar é prevenir o mal com a autoridade das leis e impedir a explosão, removendo a tempo as causas de que se prevê que hão de nascer os conflitos entre os operários e patrões.
 
(2) Condições de trabalho
Muitas outras coisas deve igualmente o Estado proteger ao operário, e em primeiro lugar os bens da alma. A vida temporal, posto que boa e desejável, não é o fim para que fomos criados; mas é a via e o meio para aperfeiçoar, com o conhecimento da verdade e com a prática do bem, a vida do espírito. O espírito é o que tem em si impressa a semelhança divina, e o qual reside aquele principado em virtude do qual foi dado ao homem o direito de dominar as criaturas inferiores e de fazer servir à sua utilidade toda a terra e todo o mar: “ Enchei a terra e a sujeitei, dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem sobre a terra” (Gn 1,28). Nisto todos os homens são iguais, e não há diferença alguma entre ricos e pobres, patrões e criados, monarcas e súditos, “ porque é o mesmo Senhor de todos” (Rm 10,12). A ninguém  é lícito violar impunemente a dignidade do homem, do qual Deus mesmo dispõe com grande reverência, pôr-lhe impedimentos, para que ele siga o caminho daquele aperfeiçoamento que é ordenado para o alcance da vida eterna; pois, nem ainda por eleição livre, o homem pode renunciar a ser tratado segundo a sua natureza e aceitar a escravidão do espírito; porque não se trata de direitos cujo exercício seja livre, mas de deveres para co Deus que são absolutamente invioláveis.
Daqui vem, como consequência, a necessidade do repouso festivo. Isso, porém, não quer dizer que se deve estar em ócio por mais largo espaço de tempo, e muito menos significa uma inação total, como muitos desejam, e que é fonte de vícios e ocasião de dissipação; mas um repouso consagrado à religião. Unido à religião, o repouso tira o homem dos trabalhos e das ocupações da vida ordinária para o chamar ao pensamento dos bens celestes e ao culto devido à Majestade divina. Eis aqui a principal natureza e fim do repouso festivo que Deus, com lei especial, prescreveu ao homem no Antigo Testamento, dizendo-lhe: “Recorda-te de santificar o sábado” (Ex 20,8); e que ensinou com o seu exemplo, quando no sétimo dia, depois de ter criado o homem, repousou: “Repousou no sétimo dia de todas as suas obras que tinha feito” (Gn 2,2).
No que diz respeito aos bens naturais e exteriores, primeiro que tudo é um dever da autoridade pública subtrair o pobre operário à desumanidade de ávidos especuladores, que abusam, sem nenhuma discrição, das pessoas como das coisas. Não é justo nem humano exigir do homem tanto trabalho a ponto de fazer pelo excesso da fadiga embrutecer o espírito e enfraquecer o corpo. A atividade do homem, restrita como a sua natureza, tem limites que não se podem ultrapassar. O exercício e o uso a aperfeiçoam, mas é preciso que de quando em quando se suspenda para  dar lugar ao repouso. Não deve, portanto, o trabalho prolongar-se por mais tempos do que as forças permitem. Assim o número de horas de trabalho diário não deve exceder a força dos trabalhadores, e a quantidade do repouso deve ser proporcionada à qualidade do trabalho, às circunstâncias do tempo e do lugar, à compleição e saúde dos operários. O trabalho, por exemplo, de extrair pedras, ferro, chumbo e outros materiais escondidos debaixo da terra, sendo mais pesado e nocivo à saúde, deve ser compensado com uma duração mais curta. Deve-se também atender às estações, porque não poucas vezes um trabalho que facilmente se suportaria uma estação, em outra é de fato insuportável ou somente se vence com dificuldade.
Enfim, o que o homem válido e na força da idade pode fazer, não será equitativo exigi-lo de uma mulher ou de uma criança. Especialmente a infância – e isto deve ser restritamente observado – não deve entrar na oficina senão quando a sua idade tenha suficientemente desenvolvido nela as forças físicas, intelectuais e morais; do contrário, como uma planta ainda tenra, ver-se-á murchar com um trabalho demasiado precoce, dar-se-á cabo de sua educação. Trabalhos há também que se não adaptam tanto à mulher, a qual a natureza destina de preferência aos arranjos domésticos, que, por outro lado, salvaguardam admiravelmente a honestidade do sexo, e compreendem melhor, pela sua natureza, ao que pede a boa educação dos filhos e a prosperidade da família. Em geral, a duração do descanso deve medir-se pelo dispêndio das forças que ele deve restituir. O direito ao descanso de cada dia, assim como à cessação do trabalho no dia do Senhor, deve ser a condição expressa ou tácita de todo contrato feito entre patrões e operários. Onde essa condição não entrar, o contrato não será probo, pois ninguém pode exigir ou prometer a violação dos deveres do homem para com Deus e para consigo mesmo.
 
(3) A questão do salário
Passemos agora a outro ponto da questão e de não menor importância, que, para evitar os extremos, demanda uma definição precisa. Referimo-nos à fixação do salário. Uma vez livremente aceito o salário por outra parte, assim raciocina, o patrão cumpre todos os seus compromissos desde que o pague e não é obrigado a mais nada.Em tal hipótese, a justiça só seria lesada se ele se recusasse a saldar a dívida ou o operário a concluir todo o seu trabalho, e a satisfazer as suas condições; e neste único caso, com exclusão de qualquer outro, é o poder público teria de intervir para fazer valer o direito de qualquer deles.
Semelhante raciocínio não encontrará um juiz equitativo que consinta em abraçá-lo sem reserva, pois não abrange todos de questão e omite um deveras importante. Trabalhar é exercer a atividade com o fim de procurar o que requerem as diversas necessidades do homem, mas principalmente a sustentação da própria vida. “ Comerás o teu pão com suor do teu rosto” (Gn 3,19). Eis a razão por que o trabalho recebeu da natureza um duplo cunho: é pessoal, porque a força ativa é inerente à pessoa, e porque é propriedade daquele que a exerce e a recebeu para sua utilidade; e é necessário, porque o homem precisa de sua existência, e porque a deve conservar para obedecer às ordens irrefragáveis da natureza. Ora, se não se encarar o trabalho senão pelo seu lado pessoal, não há dúvida de que o operário pode a seu talante restringir a taxa do salário. A mesma vontade que dá o trabalho pode contentar-se com uma pequena remuneração ou mesmo não exigir nenhuma. Mas já é outra coisa, se ao caráter de personalidade se juntar o de necessidade, que o pensamento pode abstrair, mas que em realidade não se pode separar: efetivamente, conservar a existência é um dever imposto a todos os homens e ao qual não se pode subtrair sem crime. Desse dever nasce necessariamente o direito de procurar as coisas necessárias à subsistência, e que o pobre as não procure senão mediante o salário do seu trabalho. Façam, pois, o patrão e o operário todas as convenções que lhes aprouver, cheguem inclusive a acordar na cifra do salário: acima da sua livre vontade está uma lei de justiça natural, mais elevada e mais antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado. Mas se, constrangido pela necessidade ou forçado pelo receio de um mal maior, aceita a condições duras que por outro lado não lhe seria permitido recusar porque lhe são impostas pelo patrão ou por quem faz oferta do trabalho, é claro que sofre uma violência contra a qual a justiça protesta.
Mas, sendo de temer que nesses casos e em outros análogos, como no que diz respeito às horas diárias de trabalho e à saúde dos operários, a intervenção dos poderes públicos seja importuna, sobretudo por causa da variedade das circunstâncias, dos tempos e dos lugares, será preferível que a solução seja confiada às corporações ou sindicatos de que falaremos mais adiante, ou que se recorra a outros meios de defender os interesses dos operários, mesmo com o auxílio e apoio do Estado, se a questão o reclamar.
(c) Educação para a poupança
O operário que receber um salário suficiente para prover com desafogo às suas necessidades e às da sua família, se for avisado, seguirá o conselho que parece dar-lhe a própria natureza: aplicar-se-á a ser  parcimonioso e agirá de forma que, com prudentes economias, vá juntando um pequeno pecúlio, que lhe permita chegar um dia a adquirir um modesto patrimônio. Já vimos que a presente questão não podia receber solução verdadeiramente eficaz, se não se começasse por estabelecer como princípio fundamental a inviolabilidade da propriedade particular. Importa, pois, que as leis favoreçam o espírito de propriedade, o reanimem e desenvolvam, tanto quanto possível, entre as massas populares. Uma vez que obtidos esse resultado, seria ele a fonte dos mais preciosos benefícios, e em primeiro lugar de uma repartição dos bens certamente mais equitativa. A violência das revoluções políticas dividiu o corpo social em duas classes e cavou entre elas um imenso abismo. De um lado a onipotência na opulência: uma facção que, senhora absoluta da indústria e do comércio, torce o curso das riquezas e faz correr para os seus lados todos os mananciais; facção que aliás tem na sua mão mais de um motor da administração pública. Do outro, a fraqueza na indigência: uma multidão com a alma dilacerada, sempre pronta para a desordem. Ah, estimule-se a industriosa atividade do povo com a perspectiva da sua participação na propriedade do solo, e ver-se-á nivelar pouco a pouco o abismo que separa a opulência da miséria, e operar-se a aproximação das duas classes.
Além disso, a terra produzirá tudo em maior abundância, pois o homem é assim feito: o pensamento de que trabalha em terreno que é seu redobra o seu ardor e a sua aplicação. Chega a pôr todo o seu amor numa terra que ele mesmo cultivou, que lhe promete a si e aos seus não só o estritamente necessário, mas ainda uma certa abastança.
Não há não descubra sem esforço os efeitos dessa duplicação da atividade sobre a fecundidade da terra e sobre a riqueza das nações.
A terceira utilidade será a suspensão do movimento de emigração: ninguém, com efeito, quereria trocar por uma região estrangeira a sua pátria e a sua terra natal, se nesta encontrasse os meios de levar uma vida mais tolerável. Mas uma condição indispensável para que todas essas vantagens se convertam em realidade é que a propriedade particular não seja esgotada por um excesso de encargos e de impostos. Não é das leis humanas, mas da natureza, que emana o direito da propriedade individual; a autoridade pública não os pode abolir; o que ela pode é regular-lhe o uso e conciliá-lo com o bem comum. É por isso que ela opera contra a justiça e contra a humanidade quando, sob o nome de impostos, sobrecarrega desmedidamente os bens dos particulares.
 
C. A TAREFA DAS ASSOCIAÇÕES
1. Necessidade da colocação de todos
Em último lugar, diremos que os próprios patrões e operários podem singularmente auxiliar a solução, por meio de todas as próprias a avaliar eficazmente a indigência e a operar uma aproximação entre as duas classes. Desse número são as associações de socorros mútuos; as diversas instituições, devidas à iniciativa particular, que têm por fim socorrer os operários, bem como as suas viúvas e órfãos, em caso de morte, de acidentes ou de enfermidades; os patronatos que exercem uma proteção benéfica para com as crianças dos dois sexos, os adolescentes ou de enfermidade e dos homens feitos. Mas o primeiro pertence às corporações operárias, que abrangem quase todas as outras. Os nossos antepassados experimentaram por muito tempo a benéfica influência dessas associações. Ao mesmo tempo que os artistas encontravam nelas Inapreciáveis vantagens, as artes receberam delas novo lustro e nova vida, como o proclama grande quantidade de monumentos. Sendo hoje mais cultas as gerações, mais polidos os costumes, mais numerosas as exigências da vida cotidiana, é fora de dúvida que não se podia deixar de adaptar as associações a essas novas condições. Assim, com prazer nós vemos irem-se formando por toda a parte sociedades desse gênero, quer compostas só de operários e patrões: é para desejar que aumentem a sua ação. Conquanto nos tenhamos ocupado delas mais de uma vez, queremos aqui a sua oportunidade e o seu direito de existência e indicar como devem organizar-se e qual deve ser o seu programa de ação.
 
2. O direito à associação é natural
A experiência que o homem adquiri todos os dias da exiguidade das suas forças obriga-o e impele-o a agregar-se a uma cooperação estranha. É na Sagrada Escritura que se lê esta máxima: “Mais valem dois juntos que um só, pois tiram vantagem da sua associação. Se um cai, o outro sustenta-o. Desgraçado o homem só, pois, quando cair, não terá ninguém que o levante” (Ecl 4, 9-12). E esta: “O irmão que é ajudado por seu irmão é uma cidade forte” (Pr 18,19). Dessa propensão natural, como de um único germe, nasce, primeiro, a sociedade civil; depois, no próprio seio dessa, outras sociedades que, por serem restritas e imperfeitas, não deixam de ser sociedades verdadeiras. Entre as pequenas sociedades e a grande, há profundas diferenças, que resultam do seu fim próximo. O fim da sociedade civil abrange universalmente todos os cidadãos, pois esse fim está no bem comum, isto é, num bem do qual todos e cada um têm direito de participar em medida proporcional. Por isso se chama público, porque “reúne os homens para formarem uma nação”. Ao contrário, as sociedades que se constituem no seu seio são frágeis porque são particulares, e o são com efeito, pois a sua razão de ser imediata é a utilidade particular e exclusiva dos seus membros: “A sociedade particular é aquela que se forma com um fim particular, como quando dois ou três indivíduos se associam para exercerem em comum o comércio”. Ora, pelo fato de as sociedades particulares não terem existência senão no seio da sociedade civil, da qual são como outras tantas partes, não segue, falando em geral e considerando apenas a sua  natureza, que o Estado possa negar-lhes a existência. O direito de existência foi-lhes outorgados pela própria natureza; e a sociedade civil foi instituída para proteger o direito natural, não para o aniquilar. Por essa razão, uma sociedade civil que proibisse as sociedades públicas e particulares, atacar-se-ia a si mesma, pois todas as sociedades públicas e particulares tiram a sua origem de um mesmo princípio; a natural sociabilidade do homem. Certamente se dão conjunturas que autorizam as leis a opor-se à fundação de uma sociedade desse gênero. Se uma sociedade, em virtude mesmo dos seus estatutos orgânicos, trabalhasse para um fim em oposição flagrante com a probidade, com a justiça, com a segurança do Estado, os poderes públicos teriam o direito de lhe impedir a formação, ou o de dissolvê-la, se já estivesse formada. Mas deviam em tudo isso proceder com grande circunspecção para evitar usurpação dos direitos dos cidadãos, e para não estatuir, sob a cor de utilidade pública, coisa alguma que a razão houvesse de desaprovar. Pois uma lei não merece obediência, senão enquanto é conforme com a reta razão e a lei eterna de Deus.
Aqui, apresentam-se ao nosso espírito as confrarias, as congregações e as ordens religiosas de todo o gênero, nascidas da autoridade da Igreja e da piedade dos fiéis: quais tenham sido os seus frutos de salvação para o gênero humano até nossos dias, a história o diz suficientemente.
Considerando simplesmente o ponto de vista da razão, estas sociedades aparecem como fundadas com um fim honesto, e, consequentemente, sob os auspícios do direito natural: no que elas têm de relativo à religião, não dependem senão da Igreja. Os poderes públicos não podem, pois, legitimamente, arrogar-se nenhum direito sobre elas, atribuir-se a sua administração; a sua obrigação é antes respeitá-las, protegê-las e, em caso de necessidade, defendê-las. Justamente o contrário é que nós temos sido condenados a crer, principalmente nesses últimos tempos. Em não poucos países, o Estado tem posto mão nessas sociedades, e tem acumulado a esse respeito injustiça: sujeição às leis civis, privações do direito legítimo de personalidade, espoliação dos bens. Sobre esses bens, a Igreja tinha os seus direitos – e cada um dos membros também tinha os seus: os doadores, que lhe haviam dado uma aplicação, e aqueles, enfim, que delas auferiam socorros e alívio, tinham os seus. Assim não podemos deixar de deplorar amargamente espoliações tão iníquas e tão funestas; tantos mais que se ferem de proscrições as sociedades católicas na mesma ocasião em que se afirma a legalidade das sociedades particulares, e que, aquilo que se recusa a homens pacíficos e que não têm em vista senão a utilidade pública, se concede, e por certo muito amplamente, a homens que meditam planos funestos para a religião e também para o Estado.
Certamente em nenhuma outra época se viu tão grande multiplicidade de associações de todo o gênero, principalmente de associações operárias. Não é, porém, aqui o lugar para investigar qual é a origem de muitas delas, qual o seu fim e quais os meios com que tendem para esse fim. Mas é uma opinião, confirmada por numerosos indícios, que elas são ordinariamente governadas por chefes ocultos, e que obedecem a uma palavra de ordem igualmente hostil ao nome cristão e à segurança das nações; que, depois de terem açambarcado todas as empresas, se há operários que se recusam a entrar em seu seio, elas fazem-lhes expiar a sua recusa pela miséria.
Nesse estado de coisas, os operários cristãos não têm remédio senão escolher entre estes dois partidos: ou darem os seus nomes a sociedades de que a religião tem tudo a temer, ou organizarem-se eles próprios e unirem as suas forças para poderem sacudir denodadamente um jugo tão injusto e tão intolerável. Haverá homens, verdadeiramente empenhados em arrancar o supremo bem da humanidade a um perigo iminente, que possam ter a menor dúvida de que é necessário optar por este último partido?
 
3. Favorecer os congressos católicos
É altamente louvável o zelo de grande número dos nossos, que, conhecendo perfeitamente as necessidades da hora presente, sondam cuidadosamente o terreno, para aí descobrirem uma vereda honesta que conduza à reabilitação da classe operária. Constituindo-se protetores das pessoas dedicadas ao trabalho, esforçam-se por aumentar a sua prosperidade, tanto doméstica como individual, e regular com equidade as relações recíprocas dos patrões e dos operários; por manter e enraizar em uns e outros a lembrança dos seus deveres e a observância dos prefeitos que, conduzindo o homem à moderação e condenando todos os excessos, mantêm nas nações, e entre elementos tão diversos de pessoas e de coisas, a concórdia e a harmonia mais perfeita. Sob a inspiração dos mesmos pensamentos, homens de grande mérito se reúnem frequentemente em congresso, para comunicarem mutuamente as ideias, unirem as suas forças, ordenarem programas de ação. Outros ocupam-se em fundar corporações adequadas às diversas profissões e em fazer entrar nelas os artistas; coadjuvam estes com os seus conselhos e a sua fortuna, e providenciam para que não lhes falte nunca um trabalho honrado e proveitoso. Os bispos, por seu lado, animam esses esforços e os colocam sob a sua proteção: por sua autoridade e sob os seus auspícios, membros do clero tanto secular como regular se dedicam, em grande número, aos interesses espirituais das corporações. Finalmente, não faltam católicos que, possuidores de abundantes riquezas, convertidos de alguma sorte em companheiros voluntários dos trabalhadores, não olham a despesas para fundar e propagar sociedades, onde estes possam encontrar, a par o atendimento às necessidades presentes, a promessa de honroso descanso para o futuro. Tanto zelo, tantos e tão engenhosos esforços já têm feito entre os povos em bem considerável, e muito conhecido para que seja necessário falar deles mais detidamente. É a nossos olhos feliz prognósticos para o futuro, e esperamos dessas corporações os mais benéficos frutos, contanto que continuem a desenvolver-se e que a prudência presida à sua organização. Proteja o Estado essas sociedades fundadas segundo o direito; mas não se intrometa no seu governo interior e não toque nas molas íntimas que lhes dão vida; pois o movimento vital procede essencialmente de um princípio interno, e extingue-se facilmente sob a ação de uma causa externa.
 
4. Autonomia e disciplina das associações
Precisam evidentemente essas corporações, para que nelas haja unidade de ação e acordo de vontades, de uma sábia e prudente disciplina. Se, pois, como é certo, os cidadãos são livres para se associarem, devem sê-lo igualmente para se dotarem com os estatutos e regulamentos? Não cremos que se possam dar regras certas e precisas para lhes determinar os pormenores; tudo depende do gênio de cada nação, das tentativas feitas e da experiência adquirida, do gênero de trabalho, da expansão do comércio, e de outras circunstâncias de coisas e de tempos que se devem pesar com ponderação. Tudo quanto se pode dizer em geral é que se deve tomar como regra universal e constante o organizar e governar por tal forma as corporações que proporcionem a cada um dos seus membros os meios aptos para lhes fazerem atingir, pelo caminho mais cômodo e mais curto, o fim que eles se pressupõem, e que consiste no maior aumento possível dos bens do corpo, do espírito e da fortuna. Mas é evidente que se deve visar antes de tudo ao objeto principal, que é o aperfeiçoamento moral e religioso. É principalmente esse fim que deve regular toda a economia dessas sociedades; de outro modo, elas degenerariam bem depressa e cairiam, por pouco que fosse, na linha das sociedades em que não tem lugar a religião. Ora, de que serviria ao operário ter encontrado no seio da corporação a abundância material se falta de alimentos espirituais pusesse em perigo a salvação da sua alma? “Que vale o homem possuir o universo inteiro, se vier a perder a sua alma?” (Mt 16,26). Eis o caráter com que nosso Senhor Jesus Cristo quis que se distinguisse o cristão do pagão: “ Os pagãos procuram todas essas coisas... procurai primeiro o reino de Deus, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mt 6, 32-33). Assim, pois, tomando a Deus por ponto de partida, dê-se amplo lugar à instrução religiosa a fim de que todos conheçam os  os seus deveres para com ele; o que é necessário crer, o que é necessário esperar, o que é necessário fazer para obter a salvação eterna, tudo isso lhe deve ser cuidadosamente recomendado; premunam-se com particular solicitude contra a sopiniões errôneas e contra todas as variedades do vício. Guie-se o operário ao culto de Deus, incite-se nele o espírito de piedade, faça-se principalmente fiel à observância dos domingos e dias festivos. Aprenda ele a amar e a respeitar a Igreja, mãe comum de todos os cristãos, a aquiescer aos seus preceitos, a frequentar os seus sacramentos, que são fontes divinas onde a alma se purifica das suas manchas e bebe a santidade.
 
5. Direitos e deveres dos associados
Constituída assim a religião em fundamento de todas as leis sociais, não é difícil determinar as relações mútuas a estabelecer entre os membros para obter a paz e a prosperidade da sociedade. As diversas funções devem ser distribuídas da maneira mais proveitosa aos interesses comuns, e de tal modo, que a desigualdade não prejudique a concórdia. Importa grandemente que os encargos sejam distribuídos com inteligência, e claramente definidos, a fim de que ninguém sofra injustiça. Que a massa comum seja administrada com integridade, e que se determine previamente pelo grau de indigência de cada um dos membros, a quantidade de socorro que deve ser concedida; que os direitos e os deveres dos patrões sejam perfeitamente conciliados com direitos e deveres dos operários. A fim de atender às reclamações eventuais que se levantam em uma ou em outra classe a respeito dos direitos lesados, seria muito para desejar que os próprios estatutos encarregassem homens prudentes e íntegros, tirados do seu seio, para regularem o litígio na qualidade de árbitros. É necessário ainda prover de modo especial a que em nenhum tempo falte trabalho ao operário; e que haja um fundo de reserva destinado a fazer face, não somente aos acidentes súbitos e fortuitos inseparáveis do trabalho industrial, mas ainda à doença, à velhice e aos reverses da fortuna.
Essas leis, contanto que sejam aceitas de boa vontade, bastam para assegurar aos fracos a subsistência e certo bem-estar; mas as corporações católicas são chamadas ainda a prestar os seus bons serviços à prosperidade geral. Pelo passado podemos sem temeridade prever o futuro. Uma época cede lugar a outra; mas o curso das coisas apresenta maravilhosas semelhanças, preparadas por essa Providência que tudo dirige e faz convergir para o fim que Deus se propôs ao criar a humanidade.
Sabemos que nos primeiros tempos da Igreja lhe imputavam como crime a indigência dos seus membros, condenados a viver de esmolas ou do trabalho. Mas, despidos como estavam de riquezas e de poder, souberam conciliar o favor dos ricos e a proteção dos poderosos. Viam-nos diligentes, laboriosos, modelos de justiça e principalmente de caridade. Com o espetáculo de uma vida tão perfeita e de costumes tão puros, todos os prejuízos se dissiparam, o sarcasmo caiu e as ficções de uma superstição inveterada desvaneceram-se pouco a pouco ante a verdade cristã.
 
6. As questões operárias resolvidas pelas próprias associações
A sorte da classe operária, tal é a questão de que hoje se trata, será resolvida pela razão ou sem ela e não pode ser indiferente às nações quer o seja de um modo, quer de outro. Os operários cristãos resolvê-lo-ão facilmente pela razão, se, unidos em sociedade e obedecendo a uma direção prudente, entrarem no caminho em que os seus antepassados encontraram o seu bem e o dos povos. Qualquer seja nos homens a força dos preconceitos e das paixões, se uma vontade pervertida não afogou ainda inteiramente o sentido do justo e do honesto, será indispensável que, cedo ou tarde, a benevolência pública se volte para esses operários, que se hajam visto ativos e modestos, pondo a equidade acima da ganância, e preferindo a tudo a religião do dever. Daqui, resultará esta outra vantagem: que a esperança de salvação e grandes facilidades para atingir serão oferecidas a esses operários que vivem no desprezo da fé cristã, ou nos hábitos que ela reprova. Compreendem, geralmente, esses operários que tem sido joguete de esperanças enganosas e de aparências mentirosas. Pois sentem, pelo tratamento desumano que recebem dos seus patrões, que quase não são avaliados senão pelo peso do ouro produzido pelo seu trabalho; quanto às sociedades que os aliciaram, bem veem eles que, em lugar da caridade e do amor, não encontram nelas senão discórdias intestinas, companheiras inseparáveis da pobreza insolente e incrédula. A alma embotada, o corpo extenuado, quanto não desejariam sacudir um jugo tão humilhante. Mas, ou por causa dos respeitos humanos ou pelo recio da indigência, não ousam fazê-lo. Ah, para todos esses operários podem as sociedades católicas ser de maravilhosa utilidade, se convidarem os hesitantes a vir procurar no seu seio um remédio para todos os males, e acolherem pressurosas os arrependidos e lhes assegurarem defesa e proteção.
 
CONCLUSÃO
A CARIDADE, RAINHA DAS VIRTUDES SOCIAIS
 Vede, Veneráveis Irmãos, por quem e por que meios essa questão tão difícil demanda ser tratada e resolvida. Tome cada um a tarefa que lhe pertence, e isso sem demora, para que não suceda que, diferindo-se o remédio, se torne incurável o mal, já de si tão grave. Façam os governantes uso da autoridade protetora das leis e das instituições; lembrem-se os ricos e os patrões dos seus deveres; tratem os operários, cuja sorte está em jogo, dos seus interesses pelas vias legítimas; e, visto que só a religião, como dissemos em princípio, é capaz de arrancar o mal pela raiz, lembrem-se todos de que a primeira coisa a fazer é a restauração dos costumes cristãos, sem os quais os meios mais eficazes sugeridos pela prudência humana serão pouco aptos para produzir salutares resultados.
Quanto à Igreja, sua ação jamais faltará por qualquer modo, e será tanto mais fecunda, quanto mais livremente se possa desenvolver. Nós desejamos que compreendam isso sobretudo aqueles cuja missão  é velar pelo bem público. Empreguem nesse ponto os ministros do santuário toda a energia da sua alma e generosidade do seu zelo, e guiados pela vossa autoridade e pelo vosso exemplo, veneráveis irmãos, não se cansem de inculcar a todas as classes da sociedade as máximas do Evangelho; façamos tudo quanto estiver ao nosso alcance para a salvação dos povos, e, sobretudo, alimentem em si e acendam nos outros, nos grandes e nos pequenos, a caridade, senhora de todas as virtudes. Portanto, a salvação desejada deve ser principalmente o fruto de uma grande efusão de caridade, queremos dizer, da caridade que compreendia em si todo o Evangelho, e que, sempre pronta a sacrificar-se pelo próximo, é o antídoto mais seguro contra o orgulho e o egoísmo do século. Dessa virtude, descreveu S. Paulo as feições características com as seguintes palavras: “A caridade é paciente, é benigna, não cuida do seu interesse; tudo sofre; tudo suporta” (1Cor 13,4-7).
Como o sinal dos favores celestes e penhor de nossa benevolência, a cada um de vós, veneráveis irmãos, ao vosso clero e ao vosso povo, com grande afeto no Senhor, concedemos a bênção apostólica.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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