Colunista
Convidado: Martinho Lutero 500 Anos mais Tarde: Profeta ou Revolucionário?
Pontos chave sobre um pensamento surpreendentemente atual.
Neste dia
se cumprem os 500 anos do protesto de Martinho Lutero em Wittenberg, com suas
95 teses. É frequente retroceder até aquele 31 de outubro de 1517 –dia em que
supostamente Lutero pregou essas 95 teses na porta da Catedral – como o começo
da Reforma Protestante, se bem não todos os historiadores compartem esta visão.
De fato, o verdadeiro ponto de inflexão luterano não o haveremos de encontrar no
protesto de Lutero contra as indulgências, mas em sua “Experiência da Torre” (ou
“do banheiro”, como o expressou Lutero, cf. Conversas à mesa, 3232c), a qual
representa o Durchbruch, o ‘fragmento convincente’
da Reforma que se tornou ‘oficial’ no ano 1520, quando Lutero compôs sua De captivitate babilonica Ecclesiae, oferecendo sua nova
doutrina sobre os sacramentos em relação à graça.
O evento
para este aniversário foi recebido no mundo católico com uma emoção e um
entusiasmo inesperados. Por exemplo, o cardeal Kasper, em um recente livro
sobre Lutero considerado desde seu potencial ecumênico, nos convida a mirar ao antigo
monge agostiniano como um novo São Francisco de Assis, quem simplesmente queria
viver o Evangelho com seus irmãos; Lutero deveria ser enumerado “na longa tradição
dos reformadores católicos que o precederam”. Recentemente, Monsenhor
Galantino, secretário da Conferência Episcopal Italiana, disse que “a Reforma
[Luterana] foi inspirada pelo Espírito Santo”.
Por sua
vez, Lutero é aclamado por escritores e expertos como ‘católico dissidente’. Este
é o título do livro de Peter Stanford, no que converte Lutero em profeta do
Vaticano II, entre outros logros, ao predizer a igualdade do povo de Deus
enraizada em um ‘sacerdócio compartilhado’ entre todos os católicos. “Isto é
puro Lutero”, diz Stanford, mas talvez não recorde que o sacerdócio comum de todos
os fiéis não é um que se ‘compartilha’ horizontalmente falando, como Lutero, mas
que deriva da consagração de todo o povo a Cristo no batismo. Sobretudo, o sacerdócio
comum se diferença ontologicamente do sacramento da ordem sagrada e está hierarquicamente
subordinado a ele para poder cumprir com sua natureza: é exatamente o que negou
Lutero em sua nova visão teológica de uma Igreja sem hierarquia (basicamente sem
o Papa) e sem a ordem sagrada, considerado fonte de poder para os romanistas. Lutero
queria uma Igreja sem o magistério papal para poder interpretar as sagradas
escrituras sem mediadores. Ele afirmava sua própria autoridade segundo sua compreensão
pessoal da Bíblia. Mas a única maneira de derrubar esse obstáculo romano era
abolindo o sacramento da ordem sagrada e afirmando que todos somos sacerdotes,
bispos e inclusive Papas. O ‘sacerdócio compartilhado’ de Lutero é o resultado
de sua visão pessoal, unindo os sacramentos com a busca de uma ‘zona livre de magistério’
chamando à nobreza da nação alemã.
Sem
embargo, poderíamos perguntar por que vincular Lutero com o Vaticano II? Um
erudito norte-americano, R.R. Gaillardetz, nos oferece uma resposta: “O Concílio
Vaticano Segundo foi um evento de significado sem igual na história do catolicismo
moderno. Devemos retroceder até a reforma protestante para encontrar um evento
que se equipare com o impacto do Vaticano II sobre o catolicismo romano”. Talvez
se trate só do impacto, mas não é nada honesto adaptar os ensinamentos católicos
à visão revolucionária de Lutero. Desejo apresentar algumas chaves desta revolução,
lugar de profecia, em concordância com a visão de Richard Rex: que a de Lutero
era uma nova religião. Em um artigo recente em “The Tablet” (14 de outubro de
2017) ele escreveu: “Delegado papal e teólogo, o cardeal Caetano, identificou
intuitivamente as sementes de uma nova religião quando se reuniu com Lutero em Hamburgo
em outubro de 1518. […] A realidade é que o cardeal Caetano tinha razão. Era uma
nova religião” (ver seu livro publicado recentemente, The making of Martin Luther).
Algumas
pistas sobre o tormento interior de Lutero
Vale a
pena considerar um dado sobre a vida de Lutero antes de encarar sua visão. Segundo
Heinz Shilling – historiador alemão cuja biografia de Lutero é considerada uma
das mais precisas – Lutero rezava o terço, meditava, e cantava salmos até ficar
exausto. Não obstante, estes exercícios extenuantes de piedade o conduziram ao
desespero porque cria que não era capaz de oferecê-los como devia, convertendo-se
em objeto da ira de Deus e sem o Seu perdão. Não se tratava de mulieres, um problema de castidade, mas de um
verdadeiro profundo sofrimento moral, como um nó, que alguém pode interpretar
distanciado de Deus. A “Experiência da Torre” não só foi luz para sua mente como
também libertação de uma carga. Sua oração para encontrar um Deus
misericordioso foi finalmente escutada. Na torre, teve uma compreensão
instantânea de Romanos 1:17: “O justo vive pela fé”
e logo pode contar, em uma de suas Conversas à mesa: “Quando compreendi que a justiça
de Deus é a misericórdia, e que nos justifica por meio dela, foi um remédio para
minha aflição” (n. 4007).
Esta nova
compreensão da relação entre justiça e misericórdia – de uma justiça vista agora
desde a misericórdia e só como algo passivo que renuncia ao castigo – é a nova
pedra angular do edifício cristão de Lutero. Esta experiência foi refrescante e
convincente pelo fato de que finalmente se podia oferecer a
misericórdia como justiça através da fé. Para além desta posição
teológica discutível, que converte a justiça em misericórdia ao ponto de perder
sua identidade, aqui observamos o ponto de ruptura: Lutero tornou de seu pedido
subjetivo de um Deus misericordioso o princípio arquitetônico de sua teologia. Isto
marcará uma revolução em teologia e na história do pensamento, ao tempo em que
será o verdadeiro começo do modernismo: a primazia do sujeito, e logo da consciência,
sobre o objeto, sobre o bem e Deus mesmo. Aqui encontrará sua primeira raiz a primazia
do sujeito e da consciência por sobre a verdade e o bem. Nesta perspectiva, a declaração
de Lutero em Worms ante o imperador Carlos V de Hamburgo (1521) é
verdadeiramente interessante:
“Se não sou
convencido mediante testemunhos da Escritura e claros argumentos da razão
(porque não creio nem no Papa nem nos concílios já que está demostrado que amiúde
têm errado, contradizendo-se a si mesmos), pelos textos da Sagrada Escritura
que citei, estou submetido à minha consciência e ligado à palavra de Deus. Por isso
não posso nem quero retratar-me de nada, porque fazer algo contra a consciência
não é seguro nem saudável”. (Obras de Lutero,
vol. 32: Carrera del Reformador II, Fortress Press 1958, p.
112).
O cardeal
Kasper não estará contente com a designação de Lutero como pai do modernismo,
pelo fato de que enquanto o modernismo é um chamado à liberdade ‘autônoma’, a liberdade
de Lutero era em busca de Deus. Por isso não seria o precursor do moderno, mas o
último herdeiro do pensamento medieval sobre a unidade religiosa da societas christiana. Minha pergunta é simplesmente esta:
há muita diferença entre uma liberdade autônoma com primazia
sobre a verdade, e uma teônoma cativa da Palavra de
Deus? Só há uma diferença, segundo o nível diferente sobre o que jazem: a primeira
sobre um nível natural e a segunda sobre um sobrenatural, mas ambas se associam
quanto à primazia do sujeito sobre o objeto, sem a mediação de uma razão
metafísica tão apreciada pela população medieval. Uma liberdade cativa da Palavra
de Deus também se utilizará para justificar qualquer tipo de liberdade, seja já
para contradizer o magistério imutável da Igreja ou para cobrir aparentemente
pecados ou debilidades em busca de um Cristo para além da Igreja e dos
sacramentos.
Nominalismo
ou arbítrio de Deus
Lutero
seguia a corrente filosófica do Nominalismo que conheceu através do occamismo
de Gabriel Biel (1410-1495), ainda que de toda forma terminasse convertendo-se
em seu inimigo com a doutrina da justificação. Lutero revelou que seu “querido mestre”
era Guillerme de Occam (fins do século XIII – 1349/50), um filósofo e teólogo
franciscano que no ano 1319 foi professor em Oxford. Para Occam, a realidade é inexpressável
em sua universalidade. Tudo o que existe é individual. Portanto não há natureza
ou essência, as coisas que existem são somente entidades singulares, criadas
imediatamente por vontade de Deus. Dado que qualquer ser vivo existente está
vinculado diretamente à vontade de Deus sem nenhuma ‘razão’ em si mesmo, esta vontade
divina não pode ser mais que absoluta, isto é, sem nenhuma outra razão mais que
o fato de manifestar-se como é, necessariamente e sem razão compreensível. O
processo de raciocínio é em última instância inútil porque tudo o que podemos
saber é a realidade como pluralidade de indivíduos, mas nunca podemos saber a razão
detrás desta pluralidade; nossos conceitos para identificar entidades
existentes são simples sons convencionais com um fim pragmático, só um flatus vocis. Portanto, as palavras que pronunciamos não
teriam sentido porque não há um vínculo com a realidade além do de apontar a
algo. Não é esta suposição todo um programa hoje em dia?
Lutero fará
sua esta visão nominalista: só Deus é necessário e o que Ele faça é necessário
e absoluto, sem razão compreensível. Ninguém pode discutir o que Deus planejou
ou o que faz porque não há outra razão que Sua vontade. Não olvidemos, a razão
como tal não tem valor para Lutero: o levaria de volta a considerar a Deus para
além da simples aceitação (cega) de sua misericórdia sanadora. Esta visão será
crucial no problema da liberdade.
O
problema do livre arbítrio ou de um Deus contraditório
De fato,
para Lutero, “o livre arbítrio é uma grande mentira”. Em De servo arbitrio (1525) que Lutero escreveu opondo-se
a Erasmo de Rotterdam, quem anteriormente havia escrito De libero arbitrio contra Lutero, o Revolucionário
alemão reconhece que Erasmo tinha razão ao assinalar a essência de todos os
problemas, a questão verdadeira: o problema do livre arbítrio. O livre arbítrio
não existe e é só um desafio do orgulho do homem para com Deus. Lutero explica
que se alguém tivesse livre arbítrio, poderia compreender a inescrutabilidade de
Deus. Mas dado que Deus é insondável, o homem não é livre e tudo o que faça é
porque está ‘obrigado’ a fazê-lo. Ao final, a obrigação procede da necessidade
de Deus. Em outras palavras, o livre arbítrio não existe, mas a necessidade, e
a única maneira possível de abraçar esta necessidade é com a fé. A fé faz que aceitemos
incluso as contradições, levando-nos a confiar no poder salvador de Cristo.
Em
realidade, é a contradição em si mesma a que justifica a fé e faz que o homem
descubra sua condição de criatura e suas debilidades ante a majestade de Deus.
Para Lutero, Deus se mostra pelo que realmente é precisamente em contraposição
(ou contradição), ou seja, sub contraria specie.
Lutero inaugura um processo dialético, uma polarização do ocultamento e
descobrimento de um mistério. O poder de Deus só pode ser compreendido em Sua
debilidade e Seu abandono total na cruz, assim como a graça de seu amor se descobre
na rejeição do mesmo pelo pecado e as ofensas da humanidade. A teologia da cruz
é essencialmente um processo de ‘revelação e ocultamento’ de Deus, sempre
mediante o contrário. O amor precisa do ódio para revelar-se a uma alma
plenamente, assim como a fé precisa de sua negação e inclusive do cativeiro
pelas dúvidas e pecados dos homens. Quanto mais se obscurece a fé mais
convincente é. Pode parecer estranho, mas Deus só pode ser apreciado como Deus
quando se afirma sua negação. A negação de Deus é pecado.
Cristo só
pode ser amado como um amável Salvador se luta permanentemente contra o demônio.
Estritamente falando, ninguém pode ter uma ideia clara de Cristo sem o demônio.
Ninguém pode ser salvo do inferno por Cristo se o mesmo Cristo não é condenado
por meu pecado ao inferno. Aqui, a contradição tem sua justificação final em um
Deus contraditório, que para salvar-me a mim tem que colocar-se contra si mesmo:
a batalha do pecado e a graça! Isto abre o caminho à compreensão da vida do spirit (der Geist) de Hegel,
como processo dialético onde a afirmação é superada por uma negação para
encontrar sua síntese em um bem maior e melhor (a suma dialética do bem e o
mal).
Sem
embargo, a formulação teológica de uma contradição elevada a princípio de conhecimento
representa o destronar da ‘teologia negativa’ por parte da teologia de um Deus contraditório:
a graça e o pecado podem coexistir porque em última instância estão baseados na
oposição do intelecto contra a vontade de Deus. Portanto, os humanos não são livres
de eleger não pecar, enquanto que Deus não está obrigado por nenhuma disposição
racional a atuar mais além de Sua vontade divina (arbitrária), infalível e imutável.
Isto leva a que não possamos fazer mais que o que Deus estabeleceu desde a eternidade.
Aqui está a raiz da teoria da predestinação de Calvino.
A
graça que cobre o pecado: o problema da justificação
A ausência
de liberdade é a exaltação da fé. Mas surge uma pergunta: pode a fé ser satisfeita
por não captar-se nada do mistério de Deus, aceitando cegamente o mistério de uma
disposição divina eterna? Onde está a liberdade da fé para dar um passo adiante
e proclamar “eu creio”? De ser assim a fé não é um ato humano livre mas imposto
por necessidade. Por suposto que isto facilitará o caminho da secularização, ou
seja, a renúncia da fé em nome da liberdade e do laicismo do Estado. Não
obstante, a função da fé (sem conhecimento) no sistema religioso de Lutero é interessantemente
de grande valor. De que se trata isto? É importante referir-se primeiro ao pecado
original, que para Lutero é ademais e sobretudo um “pecado radical”,
identificado como rebelião da carne.
Considerando que o homem pecou contra Deus
e sua disposição ao pecado – a concupiscência da carne é tão forte que o homem
vive sempre em pecado. Tudo o que faça é pecaminoso. “Toda boa obra é pecado” escreveu
Lutero contra Latomus (um dos teólogos da universidade de Lovaina), e “enquanto
vivamos, o pecado é essencialmente inerente às boas obras, assim como a habilidade
de rir é inerente ao homem” (Obras de Lutero,
vol. 32, Contra Latomus, cit., pp. 168-169.186-187). Pelo pecado
original, o homem é cativo do pecado como tal. Nada pode ajudá-lo a sanar mais
que crer firmemente que foi salvo por Cristo. A fé é uma “confiança cordial”, é
confiar-lhe o coração a Deus através de Cristo.
É mais, a
fé só é considerada como um esforço pessoal, o ato de crer em Deus, mais que
uma maneira de aceitar verdades para ser salvo. A fé é o caminho para crer
cordialmente que meus pecados foram perdoados e graças a isso a justiça é oferecida
como um amor que perdoa. A justiça não estará presente em mim como herança – só
o pecado pode aderir-se à natureza humana – mas me será outorgada sempre e quando
creia firmemente. A justiça corresponde precisamente a Cristo e me é dada como empréstimo
temporário cuja duração depende da intensidade da fé. Em certo sentido, é uma
fé que produz graça em lugar de uma graça que produza fé. Mas o que existe da primeira
infusão da fé no batismo por meio da graça? Se a fé é necessária como
alternativa à liberdade, Lutero tem que concluir que a graça é tão necessária como
a fé. É o mesmo que dizer que a graça já não é um dom mas um direito! Mas como
direito, deixa de ser graça, dado que graça significa
gratuidade.
A visão
da natureza humana de Lutero é profundamente pessimista: pela ausência de livre
arbítrio um homem é condenado a cometer pecados que infectam sua alma
permanentemente. Nenhuma medicina, nenhum hospital, é capaz de sanar o pecador,
portanto pode voltar finalmente à casa e ser uma pessoa feliz. O homem de
Lutero está condenado permanentemente a um hospital de campanha, onde só recebe
breves tratamentos de primeiros socorros: não há exames completos nem terapia
intensiva porque simplesmente não terão efeito no enfermo. Simplesmente, não têm
sentido.
É esta teologia,
com seu forte transfundo filosófico, uma reforma da doutrina católica ou antes o
começo de uma nova crença? Coincido definitivamente com Richard Rex: se trata
de uma religião nova.
Pe.
Serafino M. Lanzetta
(Tradução de Airton Vieira de http://adelantelafe.com/lutero-profeta-revolucionario-puntos-clave-pensamiento-sorprendentemente-actual/)
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