quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Ensinamentos que podemos extrair da História da Igreja: breve retrospectiva dos erros dos papas


Ensinamentos que podemos extrair da História da Igreja: breve retrospectiva dos erros dos papas   


22/08/18 16:16 por Peter Kwasniewski

Tradução de Airton Vieira

Nota da Redação: uma versão anterior deste artigo se publicou em OnePeterFive em outubro de 2015, com o pseudônimo de Benedict Constable. Em função de certa polêmica (cuja natureza não vem ao caso), o artigo se retirou do blog, não sem que antes chegasse a um bom número de leitores e fosse qualificado elogiosamente como uma das exposições mais úteis redigidas até a data sobre a crise atual da autoridade eclesiástica. O autor efetuou numerosas correções ao artigo antes de publicá-lo, graças aos comentários de alguns leitores, entre os que se contam historiadores da Igreja e expertos em teologia dogmática. Nesta ocasião aparece com o nome real do autor.

Há católicos que não suportam que se critique um papa pelo menor motivo, como se o edifício da fé católica fosse desmoronar caso se demostrasse que um sucessor de São Pedro fosse um sem vergonha, um assassino, um fornicador, um covarde, um transigente ou um promotor de ambiguidades, heresias ou indisciplina. Nada poderia estar mais longe da verdade que afirmar que a fé se viria abaixo; é demasiado forte e estável para isso, já que não depende de ninguém que exerça o cargo de pontífice. Ao contrário, é anterior a todos os que ocuparam o sólio pontifício; e de fato são julgados baseado em que tenham sido ou não bons vigários de Cristo. A fé é confiada aos papas, do mesmo modo que aos bispos, mas não está sujeita a seu arbítrio.
A fé católica a recebemos de Deus, de Nosso Senhor Jesus Cristo, Cabeça da Igreja, sua pedra angular imutável, garantia constante de verdade e santidade [1]. O conteúdo de dita fé não é determinado pelo Papa, mas por Cristo, e nos é transmitido pelas Sagradas Escrituras, a Sagrada Tradição e o Magistério. Por Magistério não se entende tudo o que proceda dos prelados e os papas, mas o ensinamento público, oficial, definitivo e universal acumulado nos cânones, decretos, anátemas, bulas, encíclicas e outros instrumentos dogmáticos de doutrina que estejam em harmonia com os anteriores.


Nos encontramos ante o grave problema da papolatria, que cega os católicos à realidade de que os pontífices são seres humanos pecadores e falíveis como todos nós, e que suas declarações só estão garantidas de estar isentas de erro em condições muito concretas e definidas [2]. Fora isso, o alcance da ignorância, erros, pecados e imprudências catastróficas em que pode incorrer um pontífice no exercício de sua autoridade pode alcançar proporções de longo alcance. Apesar disso, na história secular não há um elenco de grandes personagens comparável a quase uma centena de papas santos, assim como [não obstante há] numerosos exemplos de casos piores que os piores pontífices, o que muito revela sobre a condição do homem caído.
Com tantos católicos perplexos quanto ao fato de um papa poder equivocar-se e em que condições, nos parece que seria bom compilar alguns exemplos, divididos em três categorias: (1) pontífices que cometeram graves imoralidades em sua vida pessoal; (2) papas que fizeram vista grossa ante heresias ou guardaram um silêncio culpável ante elas ou mantiveram uma atitude ambígua; e (3), papas que ensinaram (ainda que não ex cathedra) algo de índole herética, próximo à heresia ou prejudicial para os fiéis.

Pode ser que nem todos os leitores estejam de acordo em que cada um dos exemplos que vamos citar seja um exemplo legítimo da categoria atribuída, mas isso é o de menos. O fato de que existam alguns casos problemáticos basta para demonstrar que os pontífices não são oráculos automáticos de Deus que não transmitem senão revelações salutares, boas, santas e merecedoras de elogio. Se esta afirmação soa a um chiste, não há mais que lançar um olhar aos católicos conservadores que se esforçam para encontrar algo de bom em todos os desatinos de Francisco negando rotundamente que Roma possa produzir frutos podres ou venenosos.
Papas que cometeram graves imoralidades em sua vida pessoal
Este número, infelizmente, não é difícil de completar, e não teríamos de dedicar-lhe demasiado tempo. Seria suficiente apontar seis exemplos extraídos dos casos expostos por E.R. Chamberlin em seu livro Os maus papas. [3]

João XII (955-964) presenteou terras a uma amante sua, ordenou vários assassinatos e morreu pelas mãos de um homem que o surpreendeu na cama com sua esposa.

Bento IX (1032-1044, 1045, 1047-1048) maquinou para ser eleito pontífice em três ocasiões, pois vendeu o cargo e o comprou novamente.
Urbano VI (1378-1389) se queixou de que não ouvia suficientes gritos enquanto torturavam os cardeais que haviam conspirado contra ele.
Alexandre VI (1492-1503) abriu caminho até o sólio pontifício na base de subornos e pôs todo seu empenho em promover seus filhos bastardos, como Lucrécia, à que em um dado momento nomeou regente dos Estados Pontifícios, ou César, a quem Maquiavel elogiou por sua grande crueldade. Durante seu reinado a libertinagem alcançou cotas nunca vistas: enquanto celebrava um banquete, Alexandre mandou trazer umas cinquentas prostitutas romanas para que participando em uma orgia pública deleitassem os convidados. Tão escandaloso foi seu pontificado que quando faleceu seus clérigos se negaram a dar-lhe sepultura na basílica de São Pedro.
Leão X (1513-1521) foi um Médici esbanjador que em uma só cerimônia dilapidou a sétima parte das reservas acumuladas por seus antecessores. Em sua defesa, há que dizer que promulgou a bula Exurge Domine (1520) contra os erros de Lutero, na que entre outras condenou a proposição de «que os hereges sejam queimados é contra a vontade do Espírito» (nº 33).

Clemente VII (1523-1534), também da família Médici; suas intrigas políticas com França, Espanha e Alemanha lhe acarretaram o Saque de Roma.
Poderíamos citar mais casos.
Estevão VII (896-897) detestava a tal ponto seu predecessor Formoso que mandou desenterrá-lo, submetê-lo a processo, lhe amputar o dedo que levara o anel pontifício e lançar seu cadáver ao Tibre, e declarou nulo (sem sê-lo) tudo o que mandara Formoso. Por ter mantido tão desacertada declaração, afetou a vida espiritual de muitos, pois os sacerdotes não consagraram a Eucaristia nem absolveram validamente os pecados.
Pio II (1458-1464) escreveu uma novela erótica antes de sua consagração como pontífice.
Inocêncio VIII (1484-1492) foi o primeiro papa que reconheceu oficialmente seus filhos bastardos, e os encheu de favores.
Paulo III (1534-1549) obteve o capelo cardinalício graças às influências de sua irmã, amante de Alexandre VI. Também foi pai de filhos ilegítimos, nomeou cardeais a dois netos seus, de 14 e 16 anos respectivamente, e promoveu uma guerra a fim de obter o Ducado de Parma para seus descendentes.
Urbano VIII (1623-1644) praticou em demasia o nepotismo, e favoreceu a castração de meninos para que pudessem cantar com voz aguda no coro pontifício. Sua conduta foi censurada por vários cardeais, entre eles Ludovisi, que chegou a ameaçá-lo de ser destituído por favorecer a heresia.
Ainda que exista polêmica quanto à medida em que estes pontífices fizeram o mal, ainda deixando-lhes ampla margem, há que reconhecer que existiram papas que se superaram no que se refere a condutas impróprias.
Papas que fizeram vista grossa ante a heresia, guardaram um silêncio culpável ou mantiveram uma atitude ambígua ante ela

São Pedro (†64): Por atrevido que pareça começar por São Pedro, fez uma concessão vergonhosa na aplicação de um artigo de fé: a igualdade dos cristãos judeus e gentios e a abolição das leis cerimoniais judaicas; por esta falta o repreendeu em face São Paulo (cf. Gal. 2, 11). Este episódio foi objeto de tantos comentários por parte dos Padres e Doutores da Igreja e por autores mais recentes que não vale a pena que lhe dediquemos mais espaço. É de notar que a Divina Providência permitiu que seu primeiro vigário falhasse em mais de uma ocasião para que não nos escandalizemos quando falhe um de seus sucessores. Por esta razão escolheu também Judas: para que as traições perpetradas por prelados não nos levassem a perder a fé em que Deus segue mantendo as rédeas da Igreja e da História.

Libério (352-366). Mesmo que a história seja complexa, podemos reuni-la em poucas palavras. Com a típica arrogância bizantina, o imperador ariano Constantino depôs Libério em 355 por não abraçar o arianismo. Ao cabo de dois anos de exílio, Libério chegou a um acordo com o Imperador, que continuava sendo ariano, e este lhe permitiu regressar a Roma. Se desconhece com exatidão que transação doutrinal assinou, ou inclusive se chegou a assiná-la (segundo São Hilário de Poitiers o fez), mas não deixa de ser muito significativo que Libério, papa número 36, é o único dos 54 que houve entre São Pedro e São Gelásio I que não é venerado como santo no Ocidente. Ao menos naquela época, não se canonizava os pontífices automaticamente, e menos quando tinham um desempenho desastroso ou não eram os pastores exemplares que deviam ser.

Virgílio (537-555). Contra Virgílio há quatro acusações. Em primeiro lugar, intrigou com a imperatriz Teodora, que lhe ofereceu a cadeira de São Pedro se reinstalasse no trono a Antimo, que havia sido deposto do trono em Constantinopla [4]. Segunda: usurpou o sólio pontifício. Terceira, mudou de postura com relação aos três Capítulos (escritos que haviam sido condenados pelos bispos orientais por exceder-se em sua orientação antimonofisita). Em princípio Virgílio se negou a aceitar a condenação, mas quando a confirmou o Segundo Concílio de Constantinopla, cedeu à pressão imperial e ratificou o decreto conciliar. Ao que parece Virgílio considerava problemática a condenação dos três Capítulos porque no Ocidente se entendia que socavava a doutrina do Concílio de Calcedônia, mas ainda assim se deixou persuadir. E por último, sua atitude vacilante nesta questão e sua decisão definitiva deram lugar a um cisma no Ocidente, já que alguns bispos da Itália se negaram a aceitar o decreto de Constantinopla. Este cisma entre Roma e o Oriente haveria de durar muitos anos [5].

Honório I (625-638). Em sua campanha para reconciliar os monofisitas do Egito e Ásia, os imperadores orientais abraçaram o monotelismo, doutrina que propunha que mesmo que Cristo possua duas naturezas possui uma só vontade. Quando os teólogos a rejeitaram por heresia, se propôs uma fórmula de conciliação que fazia concessões piores, ao afirmar que embora Cristo tivesse duas vontades, estas possuem não obstante uma só operação. Isto também era falso, mas o patriarca de Constantinopla se esforçou para promover a reconciliação silenciando o debate e proibindo discutir o assunto. Em 634 escreveu ao papa Honório em busca de apoio a sua postura, e o pontífice o concedeu, mandando que não se defendessem nem uma nem duas operações. Em sua resposta, Honório desautorizou os ortodoxos que haviam empregado a expressão «duas operações». E algo ainda mais grave: apoiou os que queriam turbar a claridade doutrinal a fim de reconciliar uma facção que estava em rebeldia contra a Igreja.

Quinze anos mais tarde, o imperador Constante II promulgou um documento chamado Typos no que ordenava precisamente a mesma normativa que havia prescrito Honório. Mas o novo pontífice, Martinho I, convocou um sínodo que condenou o Typos e manteve a doutrina das duas operações. Irado, Constante mandou levar Martinho a Constantinopla e, após um cruel encarceramento, o desterrou a Crimeia, onde morreu. Por esta razão é venerado como mártir, sendo o último pontífice mártir até a data. Em 680-681, após a morte de Constante, se celebrou o Terceiro Concílio de Constantinopla, que descartou o intento de harmonização com os monofisitas em favor da reconciliação com Roma. Alardeando de solidariedade com o perseguido Martinho, se fez célebre por desautorizar seu predecessor: «Resolvemos que Honório seja expulso da Santa Igreja de Deus». O pontífice reinante na ocasião, Leão II, em uma carta na que aceitava os decretos do Concílio condenou igualmente a Honório de forma categórica:  «Declaramos anátema a Honório, que não esforçou por depurar esta Igreja apostólica com a doutrina da Tradição dos apóstolos, e com profana perfídia consentiu que esta fé sem mancha se corrompesse». E em uma carta aos bispos da Espanha, Leão II condenaria novamente Honório como «o que não sufocou a chama da heresia enquanto brotou, como é próprio da autoridade apostólica, mas a avivou com sua negligência».

João Paulo II (1978-2005). O papa Wojtyła convocou o encontro mundial de religiões celebrado em 1986 em Assis de tal modo que a impressão que deu de indiferentismo e a comissão de atos sacrílegos e blasfemos não foi acidental, mas conforme ao programa previamente aprovado pelo Pontífice. Seu beijo no Corão se tornou célebre. Foi, pois, culpável de abandono de funções na defesa e proclamação da única fé verdadeira, a católica, causando um escândalo considerável para os fiéis [7].

Papas que ensinaram algo de índole herética, próximo à heresia ou prejudicial para os fiéis
Entramos agora em um terreno mais controverso, mas é indubitável que os casos abaixo enumerados apresentam graves dificuldades aos otimistas e ultramontanistas, no sentido que adquirido ultimamente esta palavra: se refere aos que concedem excessiva autoridade ao que diz e faz o pontífice reinante, como se se tratasse da única norma, ou da principal, para determinar o que constitui a fé católica.
Pascoal II (1099-1118). Motivado por seu desejo de obter a cooperação de Enrique V, este papa reverteu a norma de seus predecessores e concedeu ao Imperador o privilégio de investir os bispos com anel e báculo, símbolos da autoridade temporal e espiritual. Esta concessão desatou uma avalanche de protestos por toda a Cristandade. São Bruno de Segni (c. 1047-1123) qualificou em uma carta de herética a postura de Pascoal II, porque contradizia as decisões de muitos Concílios, e sustentava que quem defendesse a postura do Papa incorria igualmente em heresia. Em represália, o Pontífice destituiu São Bruno de seu cargo de abade de Monte Cassino, mas ao final se impôs o parecer de Bruno e o Papa revogou sua decisão anterior[8].

João XXII (1316-1334). Em suas pregações públicas entre 1º de novembro de 1331 e 5 de janeiro de 1332 negou a doutrina segundo a qual as almas dos justos acedem à visão beatífica, e sustentava que esta tardaria até a ressurreição da carne ao final dos tempos. Este erro havia sido refutado por Santo Tomás de Aquino e muitos outros teólogos, mas seu ressurgimento pela boca do mesmíssimo Papa provocou a ardorosa oposição de grande quantidade de prelados e teólogos, entre outros Durand de Saint Pourçain, bispo de Meaux; o dominicano inglês Thomas Waleis, cuja oposição pública lhe valeu um processo e uma condenação de cárcere; o franciscano Nicolau de Lira, e o cardeal Jacques Fournier. Quando o Papa tentou impor tão errônea doutrina na Faculdade de Teologia de Paris, o rei da França, Felipe IV de Valois, proibiu seu ensinamento e, segundo conta Jean Gerson, chanceler de Sorbonne, chegou ao extremo de ameaçar com a fogueira João XXII se não se retratasse. Um dia antes de morrer, João XXII se retratou de seu erro. Seu sucessor o cardeal Fournier, que adotou o nome de Bento XII, procedeu a definir ex cathedra a verdade católica a este respeito. São Roberto Belarmino admite que João XXII sustentou uma opinião materialmente herética com intenção de impô-la aos fiéis, mas Deus nunca o permitiu [9].

Paulo III (1534-1549). Em 1535, este pontífice aprovou e promulgou o radicalmente inovador e simplificado breviário do cardeal Quinones, o qual, ainda que fosse aprovado como optativo para a recitação privada do clero, terminou por ser utilizado publicamente em alguns casos. Alguns jesuítas o acolheram com os braços abertos, mas a maioria dos católicos –entre eles São Francisco Xavier– opuseram graves reparos e se opuseram, às vezes com veemência, ao ver nele um ataque injustificável à Tradição litúrgica da Igreja [10]. Sua simples inovação constituía um abuso da lex orandi e portanto da lex credendi. Era prejudicial para quem o utilizava porque os apartava da Tradição orgânica do culto; se tratava da invenção de um particular, e supunha uma ruptura com o legado herdado dos santos. Em 1551, o teólogo espanhol João de Arce dirigiu um enérgico protesto contra o mencionado breviário aos Padres do Concílio de Trento. Afortunadamente, Paulo IV repudiou o breviário por um rescriptum em 1558, 23 anos depois da aprovação pontifícia inicial, e São Pio V proibiu totalmente sua utilização em 1568. Assim pois, cinco pontífices e 33 anos depois da aprovação original por um papa, ficou sepultada esta mercadoria avariada[11].

Paulo VI (1963-1978). Por ser o papa que promulgou todos os documentos do Concílio Vaticano II, toda questão problemática que se encontra em ditos documentos –questões problemáticas [12] que não são insignificantes nem poucas, e têm sido identificadas por muitos– deve creditar-se à responsabilidade de dito pontífice. Se poderiam assinalar, por exemplo, afirmações materialmente errôneas de Gaudium et Spes (por exemplo, o nº 24, que diz: «O amor de Deus e do próximo é o primeiro e o maior mandamento» [13] ou o nº 63, que declara: «O homem é o autor, o centro e o fim de toda a vida econômico-social» [14]. Mas talvez será a declaração sobre a liberdade religiosa Dignitates humanae (7 de dezembro de 1965) a que passará à história como o mais baixo que pode cair a assembleia conciliar. Como uma espécie de carrossel desbocado, a polêmica hermenêutica em torno a este documento durará até que um papa ou um Concílio futuros o descartem definitivamente. Apesar dos hercúleos esforços, não isentos de verborreia, para conciliar Dignitatis humanae com o magistério anterior, em princípio se pode afiançar verossimilmente que a afirmação em dito documento de que é um direito natural sustentar e propagar o erro, ainda que seus partidários o entendam como certo, é contrário à razão natural e à fé católica [15].

Muito pior é a primeira edição da Instrução geral do Missal romano promulgada com a assinatura de Paulo VI em 3 abril de 1969, que continha afirmações formalmente heréticas sobre a natureza do Santo Sacrifício da Missa. Quando um grupo de teólogos encabeçados pelos cardeais Ottaviani e Bacci apontaram estes graves problemas, o Papa dispôs que o texto se submetesse a correções a fim de que pudesse apresentar-se uma segunda edição corrigida. Apesar de que as diferenças no texto são assombrosas, a primeira edição nunca se repudiou oficialmente nem se ordenou que fosse destruída; foi simplesmente substituída [16]. Não só isso; mesmo que explicá-lo excedesse os limites deste artigo, a promulgação do Novus Ordo Missae constituiu em si um abandono de funções por parte do Papa no que se refere a salvaguardar e promover a Tradição orgânica do Rito Latino e motivo de imenso dano para os fiéis.

João Paulo II afirmou em numerosas oportunidades o direito a mudar de religião, seja qual seja esta. Isto só é possível quando se professa uma religião falsa, porque a falsidade não obriga a ninguém, enquanto que todo o mundo tem a obrigação de aderir à única religião verdadeira. Se se é católico, é impossível ter direito, nem natural nem de parte do Deus que criou a natureza, a abandonar a Fé. Por conseguinte, uma declaração como esta: «A liberdade religiosa, portanto, é como o coração mesmo dos direitos humanos. É inviolável até o ponto de exigir que se reconheça à pessoa incluso a liberdade de mudar de religião, se assim o pede sua consciência» [17] é falsa se tomada ao pé da letra; e ademais perigosamente, se poderia acrescentar, dada sua base conceitual liberal, naturalista e indiferentista.

Francisco (1936-). Não se sabe nem por onde começar com este egrégio Doutor (não o digo no sentido elogioso de Doutor egregiuis). Em realidade, existe todo um portal de internet, Denzinger-Bergoglio, criado por teólogos e filósofos, que tomaram a enorme moléstia de enumerar com grande luxo de detalhes as afirmações deste pontífice que contradizem as Sagradas Escrituras e o Magistério da Igreja Católica. Contudo, podemos identificar vários ensinamentos falsos particularmente perigosos.
_____
1.- A aprovação de que se administre a Sagrada Comunhão a católicos divorciados e recasados que não têm intenção de viver como irmãos com seu cônjuge, expressada como possibilidade na exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia e ratificada como algo efetivo na carta aos bispos argentinos publicada em Acta Apostolicae Sedis [18].
2.- O intento de alterar a doutrina sobre a pena capital, exposto pela primeira vez em um discurso de outubro de 2017 e agora imposto à Igreja por meio de uma modificação no Catecismo, apesar de que a nova doutrina contravém abertamente uma Tradição unânime que têm suas raízes nas Escrituras [19]. O pior desta modificação, como muitos já têm assinalado, é que proclama a altas vozes algo muito grato aos progressistas, liberais e modernistas: que doutrinas transmitidas ao logo de séculos ou milênios e publicadas em todos os catecismos escolares que saíram das gráficas, são revisáveis, até o ponto de dizer o contrário quando o Papa baila ao som que marcam os tempos. Sabe Deus que evoluções de doutrina nos aguardam agora que somos tão modernos e ilustrados e temos mais perspicácia moral que os bárbaros que nos precederam. A ordenação de mulheres, a superação dos últimos vestígios do primitivo patriarcado? A legitimação do controle de natalidade e a sodomia, liberando-nos por fim do biologismo reducionista que foi o pesadelo da doutrina moral católica com o bicho papão dos atos intrinsecamente desordenados? e assim poderíamos seguir.
Um amigo beneditino costuma dizer: «O problema não é o problema». E um padre dominicano escreveu muito acertadamente: «Em realidade, a questão não é a pena de morte. O que querem é mudar a linguagem para que o Catecismo permita aos teólogos avaliar a doutrina e o dogma com critérios historicistas. Ou seja: Tal verdade já não vale porque os tempos mudaram. Os hegelianos saíram pela tangente.»[1]
3.- A reforma das anulações, que na prática equivale a reconhecer uma espécie de divórcio católico, em vista do inovador conceito de presunção de invalidez [20].
A retrospectiva que fizemos dos pontífices desde Pascoal II até Francisco nos permite captar algo essencial: se um papa pode sustentar e ensinar heresias, mesmo temporalmente ou para um grupo determinado, é possível com mais razão que atos disciplinares promulgados pelo Santo Padre, incluso se estão dirigidos à Igreja Universal, sejam ainda mais prejudiciais. Afinal de contas, a heresia é pior em si que uma disciplina laxa ou contraditória.
* * *
Melchor Cano, aquele eminente teólogo do Concílio de Trento, é conhecido por esta afirmação:
Quem defende cega e indiscriminadamente toda decisão do Sumo Pontífice são os que mais socavam a autoridade da Santa Sé: em vez de afiançar seus cimentos os destroem. Que se ganha discutindo com hereges que não defendem a autoridade pontifícia com são juízo mas baseados em sentimentos, nem debatem para pôr à luz a verdade mediante argumentos convincentes, senão para ganhar outros para suas ideias e sua vontade? Pedro não tem necessidade de nossas mentiras e adulações [21].
Voltemos ao ponto de partida. A fé católica foi revelada por Deus, e nenhum homem a pode alterar: «Jesus Cristo é o mesmo ontem e hoje, e pelos séculos» (Heb 13,8). O Papa e os bispos são os honrosos servidores de dita Revelação, e têm o dever de transmiti-la fielmente, sem alteração nem modificação, ao longo das gerações. São Vicente de Lérins o explicou maravilhosamente: pode haver desenvolvimento no modo de entendê-la e expô-la, mas nunca contradição nem evolução. As verdades da Fé, contidas nas Escrituras e a Tradição, foram definidas, interpretadas e defendidas com autoridade nas atas estreitamente definidas dos pontífices e os Concílios ao longo dos séculos. Neste sentido, seria bastante apropriado dizer: «Busca-o no Denzinger; aí está a doutrina da Fé».

O catolicismo é, sempre foi e sempre será estável, perene, objetivamente cognoscível, um firme rochedo de certidão em um mar de caos, apesar dos esforços de Satanás e seus sequazes para transtorná-lo. A crise que atravessamos é em grande medida fruto da amnésia coletiva de haver olvidado quem somos e em que cremos, junto com uma nervosa tendência ao culto à personalidade, a querer buscar por todas as partes o grande herói que nos salvará. Mas nosso Chefe supremo, nosso Rei de reis e Senhor de senhores, é Jesus Cristo. Seguimos e obedecemos ao Papa e aos bispos na medida em que nos transmitam a doutrina pura e saudável de Nosso Senhor e nos guiam para seguir a via de santidade que Ele nos assinalou, não quando nos oferecem água contaminada ou nos arrastam ao lodo.  Assim como Nosso Senhor foi em tudo um homem como nós menos no pecado, os seguimos a eles em tudo menos no pecado; seja pecado de heresia, cisma, imoralidade sexual ou sacrilégio. Os fiéis têm o dever de formar a mente e a consciência para que saibam a quem seguir e quando. Não somos autômatos nem marionetes.
Os papas tampouco; são homens de carne e osso, dotados de intelecto, livre arbítrio, memória, imaginação, opiniões, aspirações e ambições. Podem cooperar melhor ou pior com a graça e desempenhar melhor ou pior as obrigações de seu supremo cargo. É inquestionável que o Sumo Pontífice tem uma autoridade singular e exclusiva na Terra como Vigário de Cristo. Daí se desprende que tenha o dever moral de fazer uso virtuoso dela pelo bem comum da Igreja. E que pode, claro, pecar abusando de sua autoridade ou não exercendo-a quando deve ou como deve. A infalibilidade bem entendida é o dom que recebe do Espírito Santo. O exercício correto e responsável de seu cargo não está garantido nem muito menos pelo Espírito Santo. Neste sentido o Papa tem que rezar e trabalhar, trabalhar e rezar, como todos nós. Os pontífices podem da mesma forma tornar-se merecedores de canonização ou de abominação. Ao final de sua peregrinação na Terra todo sucessor de São Pedro ganhou a salvação ou a condenação eternas. E do mesmo modo, todos os cristãos se santificarão seguindo os ensinamentos autênticos da Igreja e repudiando todo erro e vício, ou se farão credores à condenação por haver seguido doutrinas falsas e abraçado o erro e o mal.
Já vejo alguns de meus leitores objetando: «Se o Papa pode descarrilhar-se e deixar de ensinar a fé ortodoxa, de que serve ter um papa? Acaso a razão de ser do Vigário de Cristo não é que possamos ter a certeza da verdade da Fé?»
A resposta a esta pergunta é que a fé católica é anterior aos papas, mesmo que estes ocupem um lugar importante no que se refere à defesa e formulação dela. Os fiéis podem conhecer a fé com certeza por inumeráveis meios, entre os quais poderíamos incluir também cinco séculos de catecismos tradicionais de todo o mundo cujos ensinamentos concordam. O Papa não pode dizer, parafraseando Luís XIV, «a fé sou eu».
Fixemo-nos por um momento nas cifras. O presente artigo enumera onze pontífices imorais e dez que, em maior ou menor medida, incorreram em heresia. No total houve 266 papas. Se fazemos as contas, temos 4,14% de sucessores de São Pedro que se tornaram dignos de opróbio por sua conduta moral e 3,76% que o merecem por haver brincado com o erro. Por outro lado, uns 90 pontífices pré-conciliares são venerados como santos ou beatos, o qual supõe 33,83%. Poderíamos debater sobre cifras (terei passado de tolerante ou de severo nas listas?), mas haveria de estar cego para não ver nestes números a mão palpável da Divina Providência. Uma monarquia constituída por 266 reis que durou 2000 anos e pode jactar-se de semelhantes proporções de logros e fracassos não é uma obra humana que se mantenha por seu próprio esforço.
Destas cifras se depreendem dois ensinamentos: em primeiro lugar, nos maravilhamos do evidente milagre que constitui o Papado e sentimos gratidão. Aprendemos que devemos confiar na Divina Providência, que guia a Santa Igreja de Deus nas tempestades dos séculos fazendo que dure mais que os relativamente poucos papas maus que tivemos que suportar, seja por provação, seja por castigo por nossos pecados. Em segundo lugar, aprendemos a discernir e ser realistas. Por uma parte, o Senhor conduziu a grande maioria de seus vigários pelo caminho da verdade para que possamos conhecer que nossa confiança está segura na nave de São Pedro, com ele ao timão. Mas o Senhor também permitiu que uma pequena quantidade de seus vigários vacile ou falhe para que compreendamos que não são justos de um modo automático, nem governam com uma sabedoria inata e sem esforço nem são porta-vozes diretos de Deus à hora de ensinar. Os pontífices devem decidir por vontade própria cooperar com a graça que recebem para exercer o cargo, e também podem descarrilar-se. Podem pastorear bem ou mal a grei, e de vez em quando até podem converter-se em lobos. É raro que suceda, mas sucede porque Deus o permite em sua vontade, precisamente para que não abdiquemos da razão, deixando a fé nas mãos de outros e avancemos sonâmbulos rumo ao desastre. A história dos papas é um testemunho notável de que um poder espiritual quase milagroso mantém na linha as forças das trevas para que não prevaleçam as portas do Inferno. Mas nessa história há os borrões precisamente para que sejamos cautos e estejamos alerta. O conselho de ser sóbrios e velar não só se aplica à relação com o mundo que nos rodeia, como também a nossa vida na Igreja, porque «nosso adversário o Diabo ronda como Leão raivoso buscando a quem devorar» (1 Pe 5,8), do último dos fiéis ao primeiro da hierarquia.
Nosso mestre, nosso modelo, nossa doutrina, nossa forma de vida… tudo isto nos é dado gloriosamente manifestado no Verbo Encarnado, escrito nas tábuas de pedra de nosso coração. Nós não esperamos isso do Papa, como se eles não existissem já em sua forma acabada. A missão do Papa é ajudar-nos a crer e a fazer o que o Senhor nos chama a cada um a crer e fazer. E se algum ser humano na Terra se interpõe –mesmo que seja o próprio Pontífice– devemos resistir-lhe e fazer o que sabemos que se deve [22]. O grande Prosper Guéranguer escreveu:
Quando o pastor se transforma em lobo, cabe ao rebanho logicamente defender-se. Por regra, a doutrina descende dos bispos ao povo fiel e os súditos não devem julgar a seus chefes na fé. Mas há no tesouro da revelação certos pontos essenciais dos que todo cristão, pelo fato mesmo de levar tal título, tem o conhecimento necessário e a obrigação de guardá-los. O princípio não muda, se trate de ciência ou de conduta, de moral ou de dogma (…) Os verdadeiros fiéis são aqueles homens que, em tais ocasiões, tiram unicamente de seu batismo a inspiração de uma linha de conduta; não os pusilânimes que sob pretexto enganoso de submissão aos poderes estabelecidos esperam para correr contra o inimigo ou opor-se a seus projetos um programa que não é necessário e não se deve dar a eles [23].
Notas:
[1] Sobre a imutabilidade da fé que se deriva da natureza e missão de Cristo, ver meu Discurso de Winnipeg e o artigo que publiquei em OnePeterFive com o título O culto à mudança frente à imutabilidade cristã.
[2] Para entender melhor este ponto, recomendo ler o que disse o Pe. Adrian Fortescue e as excelentes postagens do Pe. Hunwicke, como estaesta, e estaEsta explicação da infalibilidade também merece ser tida em conta.
Quando a fé se considera mais «aquilo que diz o papa reinante» (simplesmente falando) que «o que sempre ensinou a Igreja» (coletivamente) nos encontramos ante uma exaltação da pessoa e função do Papa. Como disse Ratzinger em tantas ocasiões, o Papa é servidor da Tradição, não dono dela; está sujeito a ela, não tem autoridade sobre ela. Por suposto, pode tomar e toma decisões doutrinais e disciplinares, mas serão relativamente poucas as coisas que diga que se ajustem formalmente à infalibilidade. Tudo o que ensine como papa (quando se veja que se propõe ensinar desse modo) deve ser acolhido com respeito e submissão, a menos que contenha algo contrário ao que sempre foi transmitido. Os exemplos que coloquei demonstram que em certos casos (há que reconhecer que excepcionais) os bons católicos tiveram que resistir. Segundo entendo, isso é também o que dizem o cardeal Burke e o bispo Schneider: que se, por exemplo, os sínodos sobre o matrimônio ou a família ou seus subprodutos papais tratam de impor à Igreja uma doutrina ou disciplina contrária à Fé, não podemos aceitá-la e é preciso resistir.
[3] E.R. Chamberlin, Los malos papas, Círculo de Lectores, Barcelona 1976.
[4] Segue (às vezes palavra por palavra) a resenha de Henry Sire em Phoenix from the Ashes, (Kettering, Ohio: Angelico Press, 2015), 17-18. Recomendo este livro; é a melhor análise da história da Igreja contemporânea que li.
[5] Não levou adiante esta iniciativa; mas só porque o Imperador o proibiu.
[6] Ver uma vez mais o relatado por Sire en Phoenix, 18-19.
[7] Ver Sire, Phoenix, 384-388.
[8] Segundo a detalhada exposição de Roberto de Mattei. É certo que a palavra heresia era de uso muito mais generalizado em outros tempos, sendo praticamente um coringa para referir-se a tudo o que parecesse sequer heterodoxo, mas na postura temporal de Pascoal II em torno às investiduras subjaz um conceito errôneo do que é a autoridade verdadeira, devida, independente, conferida por Deus e intransferível da hierarquia eclesiástica sobre a temporal. Dito de outro modo: é um assunto de gravidade, não uma mera disputa sobre procedimentos burocráticos.
[9] Para mais detalhes, ver este artigo.
[10] Ver Alcuin Reid, The Organic Development of the Liturgy, 2ª ed., San Francisco, Ignatius Press 2005.
[11] Não tem nada de estranho que quase 400 anos mais tarde o arcebispo Bugnini expressasse em 1963 uma desmedida admiração pelo breviário de Quinones, que em muitos aspectos serviu de modelo para a nova versão da Liturgia das Horas.
[12] Em Phoenix from the Ashes, Henry Sire brinda excelentes comentários sobre muitas das dificuldades levantadas pelo Concílio. Também se pode consultar Roberto de Mattei, O Concílio Vaticano II: uma história nunca escrita, Homo Legens 2018. Monsenhor Bruno Gherardini fez também valiosíssimas contribuições. E Paolo Pascoalucci enumerou 26 pontos de ruptura. Não estou necessariamente de acordo com todos os pontos de Pascoalucci, mas sua descrição basta para demonstrar o desastre causado pelos documentos do Concílio e a era de confusão que acarretaram. O mero fato de que nos últimos cinquenta anos os papas tenham dedicado tanto tempo a fazer esclarecimentos (não há mais que pensar nos rios de tinta que correram em torno a Sacrosanctum Concilium, Lumen gentium, Dignitatis humanae e Nostra aetate) é suficiente para ver que o Concílio não cumpriu sua razão de ser: ajudar aos católicos a conhecer melhor sua fé e vivê-la mais plenamente.
[13] O ponto 24 de Gaudium et spes afirma: «O amor de Deus e do próximo é o primeiro e o maior mandamento», o qual contradiz as palavras do próprio Cristo: «“Amarás ao Senhor teu Deus de todo teu coração, com toda tua alma e com todo teu Espírito.” Este é o maior e primeiro mandamento. O segundo lhe é semelhante: “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”. Destes dois mandamentos depende toda a lei e os profetas» (Mt. 22, 37-40). Como nos querem exigir que ao mesmo tempo aceitemos as Palavras de Cristo, segundo as quais o mandamento primeiro e maior é amar a Deus e o segundo amar ao próximo, e aceitar também Gaudium et spes 24, que diz que o primeiro mandamento obriga a amar a Deus e ao próximo? (cf. Apostolicam actuositatem 8.)
Ainda que o amor a Deus e ao próximo estejam estreitamente vinculados, o amor ao próximo não pode estar ao mesmo nível que o amor a Deus, como se fossem um mesmo mandamento e não houvesse distinção. Por suposto que ao amar ao próximo amamos a Deus e amamos a Cristo, mas Deus é o objeto primeiro, último e próprio da caridade, e se amamos ao próximo é por causa de Deus. Amamos ao próximo e incluso a nossos inimigos precisamente porque amamos mais a Deus e de um modo qualitativamente diferente: o mandamento que obriga a amar a Deus lhe corresponde por sua infinita bondade e supremacia, enquanto que o mandamento que obriga a amar a nossos semelhantes se ajusta à bondade limitada desses e ao lugar relativo que lhes corresponde. Se houvesse um só mandamento de amor, se nos permitiria amar a Deus como nos amamos a nós mesmos –o qual seria pecaminoso– ou ainda amar ao próximo com todo nosso coração, alma e Espírito, que também seria pecado. Em resumo, é impossível que um mesmo mandamento nos obrigue a amar a Deus e ao próximo.
No ponto 161 de Evangelii gaudium do papa Francisco encontramos a mesma postura errônea: «Junto com todas as virtudes, aquele mandamento novo que é o primeiro, o maior, o que melhor nos identifica como discípulos: “Este é meu mandamento, que vos ameis uns aos outros como eu vos tenho amado” (Jo 15,12).» Neste caso se interpreta o texto de João 15, 12 como se falasse do primeiro e maior dos mandamentos, que não o é, segundo ensinou Nosso Senhor mesmo. A mesma confusão é característica de Romanos 13, 8-10 e Tiago 2,8, que são citados em seguida no mesmo ponto 161 de Evangelii gaudium, que dão a entender que a lei da que fala é global, quando em realidade se refere à lei moral. Isto é, que afirmar que quem ama ao próximo cumpre a totalidade da lei quer dizer que faz tudo o que exige a lei em nosso trato mútuo. Não se refere a nossa obrigação de amar a Deus primeiro e sobre todas as coisas, nós mesmos incluídos.
[14] Em Gaudium et spes 63 diz: «O homem é o autor, o centro e o fim de toda a vida econômico-social». Isto poderia ser certo em um universo hipotético no que o Filho de Deus não tivesse sido feito homem (mesmo que persistiria a dúvida, dado que o Verbo de Deus é o protótipo de toda a criação), mas no universo real, do que o homem é chefe, fonte e centro, o fim de toda vida econômica e social não pode ser outro que o Filho de Deus, Cristo Rei, e por conseguinte, a realização de seu Reino. Qualquer outra coisa será uma distorção e uma desviação. Mesmo que o mesmo documento afirme em outro ponto que Deus é o fim último do homem, não dissipa a dificuldade com que nos encontramos no nº 63.
[15] Para uma excelente exposição dos problemas, ver Sire, Phoenix, pp. 331-358.
[16] Os detalhes podem ser encontrados em Michael Davies, Pope Paul’s New Mass, (Kansas City: Angelus Press, 2009), 299-328; Sire, Phoenix, 249, 277-82.
[17] Mensagem para a celebração da Jornada Mundial da Paz 1999. Compare-se a fórmula expressada em uma carta de 1980: «Liberdade para aderir-se ou não a uma religião em particular e integrar-se à comunidade confessional correspondente».
[18] Veja-se este agudo estudo de John Lamont.
[19] Ver este e este artigos meus e este de Ed Feser em First Things. Sem dúvida haverá milhares de respostas mais, todas igualmente eloquentes para mostrar a magnitude do problema que, uma vez mais, criou Francisco para ele e para toda a Igreja.
[20] Para começar, tal suposição contradiz a lei moral e a divina. Em segundo lugar, mesmo que não tivesse nenhum problema doutrinal com o conteúdo dos pertinentes motus proprios, o subsequente aumento considerável de anulações outorgadas com base a pretextos frágeis redundará indubitavelmente em prejuízo dos fiéis ao debilitar o já débil conceito que têm do vínculo indissolúvel do matrimônio e seu compromisso para ele. Assim, será muito mais provável que alguns matrimônios válidos sejam anulados (sancionando-se desse modo o adultério e profanando os sacramentos) e diminuindo a estima que se tem do matrimônio. Bons comentários a respeito os encontrarão aquiaquiaqui e aqui.
[21] Reverendissimi D. Domini Melchioris Cani Episcopi Canariensis, Ordinis Praedicatorum, & sacrae theologiae professoris, ac primariae cathedrae in Academia Salmanticensi olim praefecti, De locis theologicis libri duodecim (Salamanca: Mathias Gastius, 1563), 197.
[22] São Roberto Belarmino: «Do mesmo modo que é lícito fazer frente ao pontífice que agride o corpo, também o é resistir ao que agride as almas ou altera a ordem civil, e sobretudo ao que intenta destruir a Igreja. Sustento que é lícito resistir-lhe desobedecendo suas ordens e evitando que se faça sua vontade; agora bem, não é lícito julgá-lo, castigá-lo nem depô-lo, já que estas ações correspondem a um superior» (De Romano Pontifice, II.29, citado em Christopher Ferrara e Thomas Woods, The Great Façade, 2ª ed. [Kettering, Ohio: Angelico Press, 2015], 187).
[23] El ano litúrgico, Ed. Aldecoa, Burgos 1954, pp. 744-745.

(Traducido por Bruno da Inmaculada. Artigo original)


[1] Ver a propósito o sucinto, mas esclarecedor artigo de Juan Manuel de Prada “Penas de morte”. Em: http://romadesempre.blogspot.com/2018/08/penas-de-morte.html. [NdT]

Nenhum comentário:

Postar um comentário