Ensinamentos que podemos extrair
da História da Igreja: breve retrospectiva dos erros dos papas
22/08/18 16:16 por Peter
Kwasniewski
Tradução de Airton Vieira
Nota da Redação: uma versão anterior deste
artigo se publicou em OnePeterFive em outubro de 2015, com o pseudônimo de Benedict Constable. Em
função de certa polêmica (cuja natureza não vem ao caso), o artigo se retirou do
blog, não sem que antes chegasse a um bom número de leitores e fosse qualificado
elogiosamente como uma das exposições mais úteis redigidas até a data sobre a crise
atual da autoridade eclesiástica. O autor efetuou numerosas correções ao artigo
antes de publicá-lo, graças aos comentários de alguns leitores, entre os que se
contam historiadores da Igreja e expertos em teologia dogmática. Nesta ocasião
aparece com o nome real do autor.
Há católicos que não suportam que se
critique um papa pelo menor motivo, como se o edifício da fé católica fosse
desmoronar caso se demostrasse que um sucessor de São Pedro fosse um sem
vergonha, um assassino, um fornicador, um covarde, um transigente ou um promotor
de ambiguidades, heresias ou indisciplina. Nada poderia estar mais longe da
verdade que afirmar que a fé se viria abaixo; é demasiado forte e estável para isso,
já que não depende de ninguém que exerça o cargo de pontífice. Ao contrário, é
anterior a todos os que ocuparam o sólio pontifício; e de fato são julgados
baseado em que tenham sido ou não bons vigários de Cristo. A fé é confiada aos
papas, do mesmo modo que aos bispos, mas não está sujeita a seu arbítrio.
A fé católica a recebemos de Deus, de
Nosso Senhor Jesus Cristo, Cabeça da Igreja, sua pedra angular imutável,
garantia constante de verdade e santidade [1]. O conteúdo de dita fé não é
determinado pelo Papa, mas por Cristo, e nos é transmitido pelas Sagradas
Escrituras, a Sagrada Tradição e o Magistério. Por Magistério não se entende tudo
o que proceda dos prelados e os papas, mas o ensinamento público, oficial,
definitivo e universal acumulado nos cânones, decretos, anátemas, bulas,
encíclicas e outros instrumentos dogmáticos de doutrina que estejam em harmonia
com os anteriores.
Nos encontramos ante o grave problema
da papolatria, que cega os católicos à
realidade de que os pontífices são seres humanos pecadores e falíveis como
todos nós, e que suas declarações só estão garantidas de estar isentas de erro em
condições muito concretas e definidas [2]. Fora isso, o alcance da ignorância, erros,
pecados e imprudências catastróficas em que pode incorrer um pontífice no exercício
de sua autoridade pode alcançar proporções de longo alcance. Apesar disso, na
história secular não há um elenco de grandes personagens comparável a quase uma
centena de papas santos, assim como [não obstante há] numerosos exemplos de
casos piores que os piores pontífices, o que muito revela sobre a condição do homem
caído.
Com tantos católicos perplexos quanto ao fato de um
papa poder equivocar-se e em que condições, nos parece que seria bom compilar alguns
exemplos, divididos em três categorias: (1) pontífices que cometeram graves
imoralidades em sua vida pessoal; (2) papas que fizeram vista grossa ante heresias
ou guardaram um silêncio culpável ante elas ou mantiveram uma atitude ambígua;
e (3), papas que ensinaram (ainda que não ex cathedra) algo
de índole herética, próximo à heresia ou prejudicial para os fiéis.
Pode ser que nem todos os leitores estejam
de acordo em que cada um dos exemplos que vamos citar seja um exemplo legítimo da
categoria atribuída, mas isso é o de menos. O fato de que existam alguns casos
problemáticos basta para demonstrar que os pontífices não são oráculos
automáticos de Deus que não transmitem senão revelações salutares, boas, santas
e merecedoras de elogio. Se esta afirmação soa a um chiste, não há mais que lançar
um olhar aos católicos conservadores que se esforçam para encontrar algo de bom
em todos os desatinos de Francisco negando rotundamente que Roma possa produzir
frutos podres ou venenosos.
Papas que cometeram graves imoralidades
em sua vida pessoal
Este número, infelizmente, não é difícil de
completar, e não teríamos de dedicar-lhe demasiado tempo. Seria suficiente apontar
seis exemplos extraídos dos casos expostos por E.R. Chamberlin em seu livro Os maus papas. [3]
João XII (955-964) presenteou terras a
uma amante sua, ordenou vários assassinatos e morreu pelas mãos de um homem que
o surpreendeu na cama com sua esposa.
Bento IX (1032-1044, 1045, 1047-1048)
maquinou para ser eleito pontífice em três ocasiões, pois vendeu o cargo e o comprou
novamente.
Urbano VI (1378-1389) se queixou de
que não ouvia suficientes gritos enquanto torturavam os cardeais que haviam conspirado
contra ele.
Alexandre VI (1492-1503) abriu caminho
até o sólio pontifício na base de subornos e pôs todo seu empenho em promover seus
filhos bastardos, como Lucrécia, à que em um dado momento nomeou regente dos Estados
Pontifícios, ou César, a quem Maquiavel elogiou por sua grande crueldade.
Durante seu reinado a libertinagem alcançou cotas nunca vistas: enquanto celebrava
um banquete, Alexandre mandou trazer umas cinquentas prostitutas romanas para
que participando em uma orgia pública deleitassem os convidados. Tão escandaloso
foi seu pontificado que quando faleceu seus clérigos se negaram a dar-lhe
sepultura na basílica de São Pedro.
Leão X (1513-1521) foi um Médici esbanjador que em
uma só cerimônia dilapidou a sétima parte das reservas acumuladas por seus antecessores.
Em sua defesa, há que dizer que promulgou a bula Exurge Domine (1520) contra os erros de Lutero, na
que entre outras condenou a proposição de «que os hereges sejam queimados
é contra a vontade do Espírito» (nº 33).
Clemente VII
(1523-1534), também da família Médici; suas intrigas políticas com França, Espanha
e Alemanha lhe acarretaram o Saque de Roma.
Poderíamos citar mais casos.
Estevão VII (896-897) detestava a tal
ponto seu predecessor Formoso que mandou desenterrá-lo, submetê-lo a processo, lhe
amputar o dedo que levara o anel pontifício e lançar seu cadáver ao Tibre, e declarou
nulo (sem sê-lo) tudo o que mandara Formoso. Por ter mantido tão desacertada declaração,
afetou a vida espiritual de muitos, pois os sacerdotes não consagraram a Eucaristia
nem absolveram validamente os pecados.
Pio II (1458-1464) escreveu uma novela
erótica antes de sua consagração como pontífice.
Inocêncio VIII (1484-1492) foi o primeiro
papa que reconheceu oficialmente seus filhos bastardos, e os encheu de favores.
Paulo III (1534-1549) obteve o capelo
cardinalício graças às influências de sua irmã, amante de Alexandre VI. Também foi
pai de filhos ilegítimos, nomeou cardeais a dois netos seus, de 14 e 16 anos
respectivamente, e promoveu uma guerra a fim de obter o Ducado de Parma para seus
descendentes.
Urbano VIII (1623-1644) praticou em
demasia o nepotismo, e favoreceu a castração de meninos para que pudessem
cantar com voz aguda no coro pontifício. Sua conduta foi censurada por vários cardeais,
entre eles Ludovisi, que chegou a ameaçá-lo de ser destituído por favorecer a heresia.
Ainda que exista polêmica quanto à
medida em que estes pontífices fizeram o mal, ainda deixando-lhes ampla margem,
há que reconhecer que existiram papas que se superaram no que se refere a condutas
impróprias.
Papas que fizeram vista grossa ante a heresia,
guardaram um silêncio culpável ou mantiveram uma atitude ambígua ante ela
São Pedro (†64): Por atrevido que pareça começar por São Pedro, fez
uma concessão vergonhosa na aplicação de um artigo de fé: a igualdade dos cristãos
judeus e gentios e a abolição das leis cerimoniais judaicas; por esta falta o
repreendeu em face São Paulo (cf. Gal. 2, 11). Este episódio foi objeto de
tantos comentários por parte dos Padres e Doutores da Igreja e por autores mais
recentes que não vale a pena que lhe dediquemos mais espaço. É de notar que a
Divina Providência permitiu que seu primeiro vigário falhasse em mais de uma ocasião
para que não nos escandalizemos quando falhe um de seus sucessores. Por esta razão
escolheu também Judas: para que as traições perpetradas por prelados não nos levassem
a perder a fé em que Deus segue mantendo as rédeas da Igreja e da História.
Libério (352-366). Mesmo que a história seja complexa, podemos reuni-la
em poucas palavras. Com a típica arrogância bizantina, o imperador ariano Constantino depôs Libério em 355 por não abraçar o arianismo.
Ao cabo de dois anos de exílio, Libério chegou a um acordo com o Imperador, que
continuava sendo ariano, e este lhe permitiu regressar a Roma. Se desconhece
com exatidão que transação doutrinal assinou, ou inclusive se chegou a assiná-la
(segundo São Hilário de Poitiers o fez), mas não deixa de ser muito
significativo que Libério, papa número 36, é o único dos 54 que houve entre São
Pedro e São Gelásio I que não é venerado como santo no Ocidente. Ao menos
naquela época, não se canonizava os pontífices automaticamente, e menos quando tinham
um desempenho desastroso ou não eram os pastores exemplares que deviam ser.
Virgílio (537-555). Contra Virgílio há quatro acusações. Em primeiro
lugar, intrigou com a imperatriz Teodora, que lhe ofereceu a cadeira de São
Pedro se reinstalasse no trono a Antimo, que havia sido deposto do trono em Constantinopla
[4]. Segunda: usurpou o sólio pontifício. Terceira, mudou de postura com relação
aos três Capítulos (escritos que haviam sido condenados pelos bispos orientais
por exceder-se em sua orientação antimonofisita). Em princípio Virgílio se negou
a aceitar a condenação, mas quando a confirmou o Segundo Concílio de
Constantinopla, cedeu à pressão imperial e ratificou o decreto conciliar. Ao
que parece Virgílio considerava problemática a condenação dos três Capítulos
porque no Ocidente se entendia que socavava a doutrina do Concílio de Calcedônia,
mas ainda assim se deixou persuadir. E por último, sua atitude vacilante nesta questão
e sua decisão definitiva deram lugar a um cisma no Ocidente, já que alguns bispos
da Itália se negaram a aceitar o decreto de Constantinopla. Este cisma entre
Roma e o Oriente haveria de durar muitos anos [5].
Honório I (625-638). Em sua campanha para reconciliar os
monofisitas do Egito e Ásia, os imperadores orientais abraçaram o monotelismo, doutrina
que propunha que mesmo que Cristo possua duas naturezas possui uma só vontade. Quando
os teólogos a rejeitaram por heresia, se propôs uma fórmula de conciliação que fazia
concessões piores, ao afirmar que embora Cristo tivesse duas vontades, estas possuem
não obstante uma só operação. Isto também era falso, mas o patriarca de
Constantinopla se esforçou para promover a reconciliação silenciando o debate e
proibindo discutir o assunto. Em 634 escreveu ao papa Honório em busca de apoio
a sua postura, e o pontífice o concedeu, mandando que não se defendessem nem
uma nem duas operações. Em sua resposta, Honório desautorizou os ortodoxos que haviam
empregado a expressão «duas operações». E algo ainda mais grave: apoiou os
que queriam turbar a claridade doutrinal a fim de reconciliar uma facção que estava
em rebeldia contra a Igreja.
Quinze anos mais tarde, o imperador Constante II promulgou
um documento chamado Typos no que ordenava
precisamente a mesma normativa que havia prescrito Honório. Mas o novo
pontífice, Martinho I, convocou um sínodo que condenou o Typos e manteve a doutrina das duas operações. Irado,
Constante mandou levar Martinho a Constantinopla e, após um cruel encarceramento,
o desterrou a Crimeia, onde morreu. Por esta razão é venerado como mártir, sendo
o último pontífice mártir até a data. Em 680-681, após a morte de Constante, se
celebrou o Terceiro Concílio de Constantinopla, que descartou o intento de harmonização
com os monofisitas em favor da reconciliação com Roma. Alardeando de solidariedade
com o perseguido Martinho, se fez célebre por desautorizar seu predecessor: «Resolvemos
que Honório seja expulso da Santa Igreja de Deus». O pontífice reinante na
ocasião, Leão II, em uma carta na que aceitava os decretos do Concílio condenou
igualmente a Honório de forma categórica: «Declaramos anátema a Honório,
que não esforçou por depurar esta Igreja apostólica com a doutrina da Tradição dos
apóstolos, e com profana perfídia consentiu que esta fé sem mancha se corrompesse».
E em uma carta aos bispos da Espanha, Leão II condenaria novamente Honório
como «o que não sufocou a chama da heresia enquanto brotou, como é próprio
da autoridade apostólica, mas a avivou com sua negligência».
João Paulo II
(1978-2005). O papa Wojtyła convocou o encontro
mundial de religiões celebrado em 1986 em Assis de tal modo que a impressão que
deu de indiferentismo e a comissão de atos sacrílegos e blasfemos não foi acidental,
mas conforme ao programa previamente aprovado pelo Pontífice. Seu beijo no Corão
se tornou célebre. Foi, pois, culpável de abandono de funções na defesa e proclamação
da única fé verdadeira, a católica, causando um escândalo considerável para os fiéis
[7].
Papas que ensinaram algo de índole
herética, próximo à heresia ou prejudicial para os fiéis
Entramos agora em um terreno mais
controverso, mas é indubitável que os casos abaixo enumerados apresentam graves
dificuldades aos otimistas e ultramontanistas, no sentido que adquirido
ultimamente esta palavra: se refere aos que concedem excessiva autoridade ao
que diz e faz o pontífice reinante, como se se tratasse da única norma, ou da principal,
para determinar o que constitui a fé católica.
Pascoal II (1099-1118). Motivado por seu desejo de obter a cooperação
de Enrique V, este papa reverteu a norma de seus predecessores e concedeu ao Imperador
o privilégio de investir os bispos com anel e báculo, símbolos da autoridade temporal
e espiritual. Esta concessão desatou uma avalanche de protestos por toda a Cristandade.
São Bruno de Segni (c. 1047-1123) qualificou em uma carta de herética a postura
de Pascoal II, porque contradizia as decisões de muitos Concílios, e sustentava
que quem defendesse a postura do Papa incorria igualmente em heresia. Em represália,
o Pontífice destituiu São Bruno de seu cargo de abade de Monte Cassino, mas ao
final se impôs o parecer de Bruno e o Papa revogou sua decisão anterior[8].
João XXII (1316-1334). Em suas pregações públicas entre 1º de novembro
de 1331 e 5 de janeiro de 1332 negou a doutrina segundo a qual as almas dos justos
acedem à visão beatífica, e sustentava que esta tardaria até a ressurreição da carne
ao final dos tempos. Este erro havia sido refutado por Santo Tomás de Aquino e
muitos outros teólogos, mas seu ressurgimento pela boca do mesmíssimo Papa
provocou a ardorosa oposição de grande quantidade de prelados e teólogos, entre
outros Durand de Saint Pourçain, bispo de Meaux; o dominicano inglês Thomas Waleis,
cuja oposição pública lhe valeu um processo e uma condenação de cárcere; o
franciscano Nicolau de Lira, e o cardeal Jacques Fournier. Quando o Papa tentou
impor tão errônea doutrina na Faculdade de Teologia de Paris, o rei da França,
Felipe IV de Valois, proibiu seu ensinamento e, segundo conta Jean Gerson, chanceler
de Sorbonne, chegou ao extremo de ameaçar com a fogueira João XXII se não se retratasse.
Um dia antes de morrer, João XXII se retratou de seu erro. Seu sucessor o cardeal
Fournier, que adotou o nome de Bento XII, procedeu a definir ex cathedra a verdade católica a este respeito. São
Roberto Belarmino admite que João XXII sustentou uma opinião materialmente
herética com intenção de impô-la aos fiéis, mas Deus nunca o permitiu [9].
Paulo III (1534-1549). Em 1535, este pontífice aprovou e promulgou o
radicalmente inovador e simplificado breviário do cardeal Quinones, o qual, ainda
que fosse aprovado como optativo para a recitação privada do clero, terminou
por ser utilizado publicamente em alguns casos. Alguns jesuítas o acolheram com
os braços abertos, mas a maioria dos católicos –entre eles São Francisco Xavier–
opuseram graves reparos e se opuseram, às vezes com veemência, ao ver nele um ataque
injustificável à Tradição litúrgica da Igreja [10]. Sua simples inovação constituía
um abuso da lex orandi e portanto da lex credendi. Era
prejudicial para quem o utilizava porque os apartava da Tradição orgânica do
culto; se tratava da invenção de um particular, e supunha uma ruptura com o
legado herdado dos santos. Em 1551, o teólogo espanhol João de Arce dirigiu um enérgico
protesto contra o mencionado breviário aos Padres do Concílio de Trento.
Afortunadamente, Paulo IV repudiou o breviário por um rescriptum em 1558, 23 anos depois da aprovação pontifícia inicial,
e São Pio V proibiu totalmente sua utilização em 1568. Assim pois, cinco
pontífices e 33 anos depois da aprovação original por um papa, ficou sepultada
esta mercadoria avariada[11].
Paulo VI (1963-1978). Por ser o papa que promulgou todos os
documentos do Concílio Vaticano II, toda questão problemática que se encontra
em ditos documentos –questões problemáticas [12] que não são insignificantes
nem poucas, e têm sido identificadas por muitos– deve creditar-se à
responsabilidade de dito pontífice. Se poderiam assinalar, por exemplo, afirmações
materialmente errôneas de Gaudium et Spes (por
exemplo, o nº 24, que diz: «O amor de Deus e do próximo é o primeiro e o maior
mandamento» [13] ou o nº 63, que declara: «O homem é o autor, o centro e o
fim de toda a vida econômico-social» [14]. Mas talvez será a declaração sobre a
liberdade religiosa Dignitates humanae (7
de dezembro de 1965) a que passará à história como o mais baixo que pode cair a
assembleia conciliar. Como uma espécie de carrossel desbocado, a polêmica
hermenêutica em torno a este documento durará até que um papa ou um Concílio
futuros o descartem definitivamente. Apesar dos hercúleos esforços, não isentos
de verborreia, para conciliar Dignitatis humanae
com o magistério anterior, em princípio se pode afiançar verossimilmente que a afirmação
em dito documento de que é um direito natural sustentar e propagar o erro, ainda
que seus partidários o entendam como certo, é contrário à razão natural e à fé católica
[15].
Muito pior é a primeira edição da Instrução geral do Missal romano promulgada com a assinatura
de Paulo VI em 3 abril de 1969, que continha afirmações formalmente heréticas
sobre a natureza do Santo Sacrifício da Missa. Quando um grupo de teólogos encabeçados
pelos cardeais Ottaviani e Bacci apontaram estes graves problemas, o Papa dispôs
que o texto se submetesse a correções a fim de que pudesse apresentar-se uma segunda
edição corrigida. Apesar de que as diferenças no texto são assombrosas, a primeira
edição nunca se repudiou oficialmente nem se ordenou que fosse destruída; foi simplesmente
substituída [16]. Não só isso; mesmo que explicá-lo excedesse os limites deste artigo,
a promulgação do Novus Ordo Missae constituiu em
si um abandono de funções por parte do Papa no que se refere a salvaguardar e promover
a Tradição orgânica do Rito Latino e motivo de imenso dano para os fiéis.
João Paulo II afirmou em numerosas oportunidades o direito a mudar
de religião, seja qual seja esta. Isto só é possível quando se professa uma religião
falsa, porque a falsidade não obriga a ninguém, enquanto que todo o mundo tem a
obrigação de aderir à única religião verdadeira. Se se é católico, é impossível
ter direito, nem natural nem de parte do Deus que criou a natureza, a abandonar
a Fé. Por conseguinte, uma declaração como esta: «A liberdade religiosa,
portanto, é como o coração mesmo dos direitos humanos. É inviolável até o ponto
de exigir que se reconheça à pessoa incluso a liberdade de mudar de religião,
se assim o pede sua consciência» [17] é falsa se tomada ao pé da letra; e ademais
perigosamente, se poderia acrescentar, dada sua base conceitual liberal,
naturalista e indiferentista.
Francisco (1936-). Não se sabe nem por onde começar com este
egrégio Doutor (não o digo no sentido elogioso de Doutor egregiuis). Em realidade, existe todo um portal
de internet, Denzinger-Bergoglio, criado por teólogos e filósofos, que tomaram a
enorme moléstia de enumerar com grande luxo de detalhes as afirmações deste
pontífice que contradizem as Sagradas Escrituras e o Magistério da Igreja
Católica. Contudo, podemos identificar vários ensinamentos falsos
particularmente perigosos.
_____
1.- A aprovação de que se administre a Sagrada Comunhão
a católicos divorciados e recasados que não
têm intenção de viver como irmãos com seu cônjuge, expressada como
possibilidade na exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia e ratificada como algo efetivo na carta
aos bispos argentinos publicada em Acta Apostolicae Sedis [18].
2.- O intento de alterar a doutrina sobre a pena
capital, exposto pela primeira vez em um discurso de outubro de 2017 e agora imposto
à Igreja por meio de uma modificação no Catecismo, apesar de que a nova doutrina
contravém abertamente uma Tradição unânime que têm suas raízes nas Escrituras
[19]. O pior desta modificação, como muitos já têm assinalado, é que proclama a
altas vozes algo muito grato aos progressistas, liberais e modernistas: que doutrinas
transmitidas ao logo de séculos ou milênios e publicadas em todos os catecismos
escolares que saíram das gráficas, são revisáveis, até o ponto de dizer o contrário
quando o Papa baila ao som que marcam os tempos. Sabe Deus que evoluções de doutrina nos aguardam agora que somos
tão modernos e ilustrados e temos mais perspicácia moral que os bárbaros que
nos precederam. A ordenação de mulheres, a superação dos últimos vestígios do
primitivo patriarcado? A legitimação do controle de natalidade e a sodomia, liberando-nos
por fim do biologismo reducionista que foi o pesadelo da doutrina moral
católica com o bicho papão dos atos intrinsecamente desordenados? e assim poderíamos seguir.
Um amigo beneditino costuma dizer: «O
problema não é o problema». E um padre dominicano escreveu muito
acertadamente: «Em realidade, a questão não é a pena de morte. O que querem
é mudar a linguagem para que o Catecismo permita aos teólogos avaliar a doutrina
e o dogma com critérios historicistas. Ou seja: Tal verdade já não vale porque
os tempos mudaram. Os hegelianos saíram pela tangente.»[1]
3.- A reforma das anulações, que na prática equivale
a reconhecer uma espécie de divórcio católico, em
vista do inovador conceito de presunção de invalidez [20].
A retrospectiva que fizemos dos pontífices
desde Pascoal II até Francisco nos permite captar algo essencial: se um papa pode
sustentar e ensinar heresias, mesmo temporalmente ou para um grupo determinado,
é possível com mais razão que atos disciplinares promulgados pelo Santo Padre,
incluso se estão dirigidos à Igreja Universal, sejam ainda mais prejudiciais. Afinal
de contas, a heresia é pior em si que uma disciplina laxa ou contraditória.
* * *
Melchor Cano, aquele eminente teólogo
do Concílio de Trento, é conhecido por esta afirmação:
Quem defende cega e
indiscriminadamente toda decisão do Sumo Pontífice são os que mais socavam a
autoridade da Santa Sé: em vez de afiançar seus cimentos os destroem. Que se
ganha discutindo com hereges que não defendem a autoridade pontifícia com são juízo
mas baseados em sentimentos, nem debatem para pôr à luz a verdade mediante
argumentos convincentes, senão para ganhar outros para suas ideias e sua vontade? Pedro
não tem necessidade de nossas mentiras e adulações [21].
Voltemos ao ponto de partida. A fé católica foi
revelada por Deus, e nenhum homem a pode alterar: «Jesus Cristo é o mesmo ontem
e hoje, e pelos séculos» (Heb 13,8). O Papa e os bispos são os honrosos
servidores de dita Revelação, e têm o dever de transmiti-la fielmente, sem alteração
nem modificação, ao longo das gerações. São Vicente de Lérins o explicou
maravilhosamente: pode haver desenvolvimento no modo de entendê-la e expô-la,
mas nunca contradição nem evolução. As
verdades da Fé, contidas nas Escrituras e a Tradição, foram definidas,
interpretadas e defendidas com autoridade nas atas estreitamente definidas dos pontífices
e os Concílios ao longo dos séculos. Neste sentido, seria bastante apropriado dizer: «Busca-o
no Denzinger; aí está a doutrina da Fé».
O catolicismo é, sempre foi e sempre
será estável, perene, objetivamente cognoscível, um firme rochedo de certidão em
um mar de caos, apesar dos esforços de Satanás e seus sequazes para transtorná-lo.
A crise que atravessamos é em grande medida fruto da amnésia coletiva de haver
olvidado quem somos e em que cremos, junto com uma nervosa tendência ao culto à
personalidade, a querer buscar por todas as partes o grande herói que nos
salvará. Mas nosso Chefe supremo, nosso Rei de reis e Senhor de senhores, é Jesus
Cristo. Seguimos e obedecemos ao Papa e aos bispos na medida em que nos
transmitam a doutrina pura e saudável de Nosso Senhor e nos guiam para seguir a
via de santidade que Ele nos assinalou, não quando nos oferecem água
contaminada ou nos arrastam ao lodo. Assim como Nosso Senhor foi em tudo
um homem como nós menos no pecado, os seguimos a eles em tudo menos no pecado;
seja pecado de heresia, cisma, imoralidade sexual ou sacrilégio. Os fiéis têm o
dever de formar a mente e a consciência para que saibam a quem seguir e quando.
Não somos autômatos nem marionetes.
Os papas tampouco; são homens de
carne e osso, dotados de intelecto, livre arbítrio, memória, imaginação, opiniões,
aspirações e ambições. Podem cooperar melhor ou pior com a graça e desempenhar melhor
ou pior as obrigações de seu supremo cargo. É inquestionável que o Sumo
Pontífice tem uma autoridade singular e exclusiva na Terra como Vigário de
Cristo. Daí se desprende que tenha o dever moral de fazer uso virtuoso dela pelo
bem comum da Igreja. E que pode, claro, pecar abusando de sua autoridade ou não
exercendo-a quando deve ou como deve. A infalibilidade bem entendida é o dom
que recebe do Espírito Santo. O exercício correto e responsável de seu cargo não
está garantido nem muito menos pelo Espírito Santo. Neste sentido o Papa tem
que rezar e trabalhar, trabalhar e rezar, como todos nós. Os pontífices podem da
mesma forma tornar-se merecedores de canonização ou de abominação. Ao final de
sua peregrinação na Terra todo sucessor de São Pedro ganhou a salvação ou a condenação
eternas. E do mesmo modo, todos os cristãos se santificarão seguindo os ensinamentos
autênticos da Igreja e repudiando todo erro e vício, ou se farão credores à condenação
por haver seguido doutrinas falsas e abraçado o erro e o mal.
Já vejo alguns de meus leitores
objetando: «Se o Papa pode descarrilhar-se e deixar de ensinar a fé ortodoxa,
de que serve ter um papa? Acaso a razão de ser do Vigário de Cristo não é que
possamos ter a certeza da verdade da Fé?»
A resposta a esta pergunta é que a fé
católica é anterior aos papas, mesmo que estes ocupem um lugar importante no
que se refere à defesa e formulação dela. Os fiéis podem conhecer a fé com certeza
por inumeráveis meios, entre os quais poderíamos incluir também cinco séculos
de catecismos tradicionais de todo o mundo cujos ensinamentos concordam. O Papa
não pode dizer, parafraseando Luís XIV, «a fé sou eu».
Fixemo-nos por um momento nas cifras.
O presente artigo enumera onze pontífices imorais e dez que, em maior ou menor
medida, incorreram em heresia. No total houve 266 papas. Se fazemos as contas,
temos 4,14% de sucessores de São Pedro que se tornaram dignos de opróbio por sua
conduta moral e 3,76% que o merecem por haver brincado com o erro. Por outro
lado, uns 90 pontífices pré-conciliares são venerados como santos ou beatos, o qual
supõe 33,83%. Poderíamos debater sobre cifras (terei passado de tolerante ou de
severo nas listas?), mas haveria de estar cego para não ver nestes números a mão
palpável da Divina Providência. Uma monarquia constituída por 266 reis que durou
2000 anos e pode jactar-se de semelhantes proporções de logros e fracassos não é
uma obra humana que se mantenha por seu próprio esforço.
Destas cifras se depreendem dois ensinamentos:
em primeiro lugar, nos maravilhamos do evidente milagre que constitui o Papado
e sentimos gratidão. Aprendemos que devemos confiar na Divina Providência, que guia
a Santa Igreja de Deus nas tempestades dos séculos fazendo que dure mais que os
relativamente poucos papas maus que tivemos que suportar, seja por provação, seja
por castigo por nossos pecados. Em segundo lugar, aprendemos a discernir e ser
realistas. Por uma parte, o Senhor conduziu a grande maioria de seus vigários pelo
caminho da verdade para que possamos conhecer que nossa confiança está segura na
nave de São Pedro, com ele ao timão. Mas o Senhor também permitiu que uma pequena
quantidade de seus vigários vacile ou falhe para que compreendamos que não são
justos de um modo automático, nem governam com uma sabedoria inata e sem esforço
nem são porta-vozes diretos de Deus à hora de ensinar. Os pontífices devem
decidir por vontade própria cooperar com a graça que recebem para exercer o
cargo, e também podem descarrilar-se. Podem pastorear bem ou mal a grei, e de
vez em quando até podem converter-se em lobos. É raro que suceda, mas sucede
porque Deus o permite em sua vontade, precisamente para que não abdiquemos da razão,
deixando a fé nas mãos de outros e avancemos sonâmbulos rumo ao desastre. A história
dos papas é um testemunho notável de que um poder espiritual quase milagroso
mantém na linha as forças das trevas para que não prevaleçam as portas do Inferno.
Mas nessa história há os borrões precisamente para que sejamos cautos e estejamos
alerta. O conselho de ser sóbrios e velar não só se aplica à relação com o
mundo que nos rodeia, como também a nossa vida na Igreja, porque «nosso
adversário o Diabo ronda como Leão raivoso buscando a quem devorar» (1 Pe 5,8),
do último dos fiéis ao primeiro da hierarquia.
Nosso mestre, nosso modelo, nossa doutrina,
nossa forma de vida… tudo isto nos é dado gloriosamente manifestado no Verbo
Encarnado, escrito nas tábuas de pedra de nosso coração. Nós não esperamos isso
do Papa, como se eles não existissem já em sua forma acabada. A missão do Papa é
ajudar-nos a crer e a fazer o que o Senhor nos chama a cada um a crer e fazer. E
se algum ser humano na Terra se interpõe –mesmo que seja o próprio Pontífice– devemos
resistir-lhe e fazer o que sabemos que se deve [22]. O grande Prosper
Guéranguer escreveu:
Quando o pastor se transforma em
lobo, cabe ao rebanho logicamente defender-se. Por regra, a doutrina descende dos
bispos ao povo fiel e os súditos não devem julgar a seus chefes na fé. Mas há
no tesouro da revelação certos pontos essenciais dos que todo cristão, pelo fato
mesmo de levar tal título, tem o conhecimento necessário e a obrigação de guardá-los.
O princípio não muda, se trate de ciência ou de conduta, de moral ou de dogma
(…) Os verdadeiros fiéis são aqueles homens que, em tais ocasiões, tiram unicamente
de seu batismo a inspiração de uma linha de conduta; não os pusilânimes que sob
pretexto enganoso de submissão aos poderes estabelecidos esperam para correr
contra o inimigo ou opor-se a seus projetos um programa que não é necessário e não
se deve dar a eles [23].
Notas:
[1] Sobre a
imutabilidade da fé que se deriva da natureza e missão de Cristo, ver meu Discurso de Winnipeg e o artigo que publiquei em
OnePeterFive com o título O culto à mudança frente à imutabilidade
cristã.
[2] Para entender melhor
este ponto, recomendo ler o que disse o Pe. Adrian Fortescue e as excelentes
postagens do Pe. Hunwicke, como esta, esta, e esta. Esta explicação da infalibilidade também merece ser tida em conta.
Quando
a fé se considera mais «aquilo que diz o papa reinante» (simplesmente falando)
que «o que sempre ensinou a Igreja» (coletivamente) nos encontramos ante
uma exaltação da pessoa e função do Papa. Como disse Ratzinger em tantas ocasiões,
o Papa é servidor da Tradição, não dono dela; está sujeito a ela, não tem
autoridade sobre ela. Por suposto, pode tomar e toma decisões doutrinais e disciplinares,
mas serão relativamente poucas as coisas que diga que se ajustem formalmente à infalibilidade.
Tudo o que ensine como papa (quando se veja que se propõe ensinar desse modo) deve
ser acolhido com respeito e submissão, a menos que contenha algo contrário ao
que sempre foi transmitido. Os exemplos que coloquei demonstram que em certos
casos (há que reconhecer que excepcionais) os bons católicos tiveram que
resistir. Segundo entendo, isso é também o que dizem o cardeal Burke e o bispo
Schneider: que se, por exemplo, os sínodos sobre o matrimônio ou a família ou seus
subprodutos papais tratam de impor à Igreja uma doutrina ou disciplina contrária
à Fé, não podemos aceitá-la e é preciso resistir.
[3] E.R. Chamberlin, Los malos papas, Círculo de Lectores, Barcelona
1976.
[4] Segue (às vezes
palavra por palavra) a resenha de Henry Sire em Phoenix from the Ashes, (Kettering,
Ohio: Angelico Press, 2015), 17-18. Recomendo este livro; é a melhor análise da
história da Igreja contemporânea que li.
[5] Não levou adiante
esta iniciativa; mas só porque o Imperador o proibiu.
[6] Ver uma vez
mais o relatado por Sire en Phoenix, 18-19.
[7] Ver Sire, Phoenix, 384-388.
[8] Segundo a detalhada exposição de Roberto de Mattei. É certo
que a palavra heresia era de uso muito mais
generalizado em outros tempos, sendo praticamente um coringa para referir-se a
tudo o que parecesse sequer heterodoxo, mas na postura temporal de Pascoal II em
torno às investiduras subjaz um conceito errôneo do que é a autoridade
verdadeira, devida, independente, conferida por Deus e intransferível da hierarquia
eclesiástica sobre a temporal. Dito de outro modo: é um assunto de gravidade, não
uma mera disputa sobre procedimentos burocráticos.
[10] Ver Alcuin Reid, The Organic Development of the Liturgy, 2ª ed.,
San Francisco, Ignatius Press 2005.
[11] Não tem nada
de estranho que quase 400 anos mais tarde o arcebispo Bugnini expressasse em
1963 uma desmedida admiração pelo breviário de Quinones, que em muitos aspectos
serviu de modelo para a nova versão da Liturgia das Horas.
[12] Em Phoenix from the Ashes, Henry Sire brinda
excelentes comentários sobre muitas das dificuldades levantadas pelo Concílio. Também
se pode consultar Roberto de Mattei, O Concílio Vaticano II: uma
história nunca escrita, Homo Legens 2018. Monsenhor Bruno
Gherardini fez também valiosíssimas contribuições. E Paolo Pascoalucci
enumerou 26 pontos de
ruptura. Não
estou necessariamente de acordo com todos os pontos de Pascoalucci, mas sua
descrição basta para demonstrar o desastre causado pelos documentos do Concílio
e a era de confusão que acarretaram. O mero fato de que nos últimos cinquenta anos
os papas tenham dedicado tanto tempo a fazer esclarecimentos (não há mais que
pensar nos rios de tinta que correram em torno a Sacrosanctum Concilium, Lumen
gentium, Dignitatis humanae e Nostra aetate) é
suficiente para ver que o Concílio não cumpriu sua razão de ser: ajudar aos
católicos a conhecer melhor sua fé e vivê-la mais plenamente.
[13] O ponto 24
de Gaudium et spes afirma: «O amor de Deus e do
próximo é o primeiro e o maior mandamento», o qual contradiz as palavras do próprio
Cristo: «“Amarás ao Senhor teu Deus de todo teu coração, com toda tua alma
e com todo teu Espírito.” Este é o maior e primeiro mandamento. O
segundo lhe é semelhante: “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”. Destes dois
mandamentos depende toda a lei e os profetas» (Mt. 22, 37-40). Como nos querem
exigir que ao mesmo tempo aceitemos as Palavras de Cristo, segundo as quais o
mandamento primeiro e maior é amar a Deus e o segundo amar ao próximo, e aceitar
também Gaudium et spes 24, que diz que o primeiro
mandamento obriga a amar a Deus e ao próximo? (cf. Apostolicam actuositatem 8.)
Ainda
que o amor a Deus e ao próximo estejam estreitamente vinculados, o amor ao próximo
não pode estar ao mesmo nível que o amor a Deus, como se fossem um mesmo mandamento
e não houvesse distinção. Por suposto que ao amar ao próximo amamos a Deus e amamos
a Cristo, mas Deus é o objeto primeiro, último e próprio da caridade, e se
amamos ao próximo é por causa de Deus. Amamos ao próximo e incluso a nossos inimigos
precisamente porque amamos mais a Deus e de um modo qualitativamente diferente:
o mandamento que obriga a amar a Deus lhe corresponde por sua infinita bondade
e supremacia, enquanto que o mandamento que obriga a amar a nossos semelhantes
se ajusta à bondade limitada desses e ao lugar relativo que lhes corresponde. Se
houvesse um só mandamento de amor, se nos permitiria amar a Deus como nos
amamos a nós mesmos –o qual seria pecaminoso– ou ainda amar ao próximo com todo
nosso coração, alma e Espírito, que também seria pecado. Em resumo, é impossível
que um mesmo mandamento nos obrigue a amar a Deus e ao próximo.
No ponto 161
de Evangelii gaudium do papa Francisco encontramos a mesma
postura errônea: «Junto com todas as virtudes, aquele mandamento novo que é
o primeiro, o maior, o que melhor nos identifica como discípulos: “Este é meu mandamento,
que vos ameis uns aos outros como eu vos tenho amado” (Jo 15,12).» Neste
caso se interpreta o texto de João 15, 12 como se falasse do primeiro e maior dos
mandamentos, que não o é, segundo ensinou Nosso Senhor mesmo. A mesma confusão
é característica de Romanos 13, 8-10 e Tiago 2,8, que são citados em seguida no
mesmo ponto 161 de Evangelii gaudium, que
dão a entender que a lei da que fala
é global, quando em realidade se refere à lei moral. Isto é, que afirmar que quem
ama ao próximo cumpre a totalidade da lei quer dizer que faz tudo o que exige a
lei em nosso trato mútuo. Não se refere a nossa obrigação de amar a Deus primeiro
e sobre todas as coisas, nós mesmos incluídos.
[14] Em Gaudium et spes 63 diz: «O homem é o autor, o
centro e o fim de toda a vida econômico-social». Isto poderia ser certo em um universo
hipotético no que o Filho de Deus não tivesse sido feito homem (mesmo que persistiria
a dúvida, dado que o Verbo de Deus é o protótipo de toda a criação), mas no universo
real, do que o homem é chefe, fonte e centro, o fim de toda vida econômica e social
não pode ser outro que o Filho de Deus, Cristo Rei, e por conseguinte, a
realização de seu Reino. Qualquer outra coisa será uma distorção e uma desviação.
Mesmo que o mesmo documento afirme em outro ponto que Deus é o fim último do homem,
não dissipa a dificuldade com que nos encontramos no nº 63.
[15] Para uma excelente
exposição dos problemas, ver Sire, Phoenix, pp.
331-358.
[16] Os detalhes podem
ser encontrados em Michael Davies, Pope Paul’s New Mass, (Kansas
City: Angelus Press, 2009), 299-328; Sire, Phoenix, 249,
277-82.
[17] Mensagem para a celebração da Jornada Mundial da Paz 1999. Compare-se
a fórmula expressada em uma carta de 1980: «Liberdade para aderir-se ou não
a uma religião em particular e integrar-se à comunidade confessional correspondente».
[19] Ver este e este artigos meus e este de Ed Feser em First Things. Sem dúvida haverá
milhares de respostas mais, todas igualmente eloquentes para mostrar a magnitude
do problema que, uma vez mais, criou Francisco para ele e para toda a Igreja.
[20] Para começar,
tal suposição contradiz a lei moral e a divina. Em segundo lugar, mesmo que não
tivesse nenhum problema doutrinal com o conteúdo dos pertinentes motus
proprios, o subsequente aumento considerável de anulações outorgadas com base a
pretextos frágeis redundará indubitavelmente em prejuízo dos fiéis ao debilitar
o já débil conceito que têm do vínculo indissolúvel do matrimônio e seu
compromisso para ele. Assim, será muito mais provável que alguns matrimônios válidos
sejam anulados (sancionando-se desse modo o adultério e profanando os
sacramentos) e diminuindo a estima que se tem do matrimônio. Bons comentários a
respeito os encontrarão aqui, aqui, aqui e aqui.
[21] Reverendissimi D. Domini Melchioris Cani Episcopi Canariensis,
Ordinis Praedicatorum, & sacrae theologiae professoris, ac primariae
cathedrae in Academia Salmanticensi olim praefecti, De locis theologicis libri
duodecim (Salamanca: Mathias Gastius, 1563), 197.
[22] São Roberto
Belarmino: «Do mesmo modo que é lícito fazer frente ao pontífice que
agride o corpo, também o é resistir ao que agride as almas ou altera a ordem
civil, e sobretudo ao que intenta destruir a Igreja. Sustento que é lícito
resistir-lhe desobedecendo suas ordens e evitando que se faça sua vontade; agora
bem, não é lícito julgá-lo, castigá-lo nem depô-lo, já que estas ações
correspondem a um superior» (De Romano Pontifice,
II.29, citado em Christopher Ferrara e Thomas Woods, The Great Façade, 2ª ed. [Kettering, Ohio: Angelico
Press, 2015], 187).
[23] El ano litúrgico, Ed. Aldecoa, Burgos 1954, pp. 744-745.
[1]
Ver a propósito o sucinto, mas esclarecedor artigo de Juan Manuel de Prada
“Penas de morte”. Em: http://romadesempre.blogspot.com/2018/08/penas-de-morte.html.
[NdT]
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