quarta-feira, 29 de agosto de 2018

O assunto McCarrick: o papa sabia. Aqui o motivo pelo qual deve demitir-se


Por Aldo Maria Valli

26 de agosto 2018
Tradução de Airton Vieira – [Nota de Rorate Caeli: o jornalista Aldo Maria Valli é provavelmente o vaticanista mais conhecido da Itália, dado que durante muitos anos foi comentarista sobre o papado em RAI 1, a principal cadeia de televisão italiana, e também em RAI 3.]
“Bispos e sacerdotes, abusando de sua autoridade, cometeram crimes horrendos em detrimento de suas vítimas, menores de idade e fiéis inocentes, e jovens desejosos de oferecer suas vidas à Igreja, ou – ainda – por meio de seu silêncio não evitaram que esses crimes continuassem perpetrando-se.”
Quem escreve estas palavras é um arcebispo, antigo Núncio Apostólico nos Estados Unidos de 2011 a 2016. Agora retirado, decidiu abrir seu coração e contar tudo o que sabe sobre a sequência dos fatos com relação aos abusos sexuais na Igreja. Um testemunho que conclui com um duro e peremptório “convite”: o papa Francisco deve ceder seu posto. Porque ele também sabia mas o encobriu.
O autor desta declaração, como informa hoje La Verità, é Monsenhor Carlo Maria Viganò, de 77 anos, que, antes de ser enviado como Núncio aos Estados Unidos, era o encarregado da Governadoria do Estado da Cidade do Vaticano, e anteriormente Núncio na Nigéria, Delegado dos Representantes Pontifícios da Secretaria de Estado da Santa Sé e membro da Comissão Disciplinar da Cúria Romana.

“Restaurar a beleza da santidade do rosto da Esposa de Cristo, que foi terrivelmente desfigurado por tantos crimes abomináveis”. Este é o motivo da decisão de monsenhor de falar. “Se de verdade queremos liberar a Igreja do fétido pântano em que caiu, devemos ter o valor de rasgar a cultura do segredo e confessar publicamente as verdades que temos guardado escondidas. Devemos rasgar a conspiração de silêncio com a que bispos e sacerdotes se mantêm protegidos a expensas de seus fiéis, uma conspiração de silêncio que, aos olhos do mundo, ameaça fazer a Igreja parecer uma seita, uma conspiração de silêncio nada diferente da que impera na máfia”.


E às palavras seguem os fatos, essa é a notícia. Documentados, descritos em detalhe. O tom está carregado de dor, mas o estilo é seco.
A gota que encheu o copo foi o caso do Cardeal McCarrick. Quando viu que a hierarquia inteira da Igreja foi pilhada de surpresa quando teve de enfrentar-se às malvadas andanças do “tio Ted”, que emergiram em clara evidência nos últimos meses, e tanto mais quando houve a inundação de “Eu não sabia”, Monsenhor Viganò começou a escrever. Uma acusação que começa muito atrás, antes do pontificado de Francisco, e que chega ao momento presente.
“Mas agora que a corrupção alcançou a mesma cúpula da hierarquia da Igreja, minha consciência me dita que revele essas verdades sobre o desalentador caso do Arcebispo Emérito de Washington D.C, Theodore McCarrick, a quem cheguei a conhecer no desenrolar dos deveres que me confiou São João Paulo II, como Delegado das Representações Pontifícias, de 1998 a 2009, e pelo papa Bento XVI, como Núncio Apostólico nos Estados Unidos da América, de 19 de outubro de 2011 até fins de maio de 2016.”
Viganò informa que dois antigos Núncios nos Estados Unidos, ambos mortos prematuramente, Gabriel Montalvo (a serviço de 1998 a 2005) e Pietro Sambi (que esteve no ofício de 2005 a 2011), “não deixaram de informar imediatamente à Santa Sé, logo que o souberam do comportamento gravemente imoral do arcebispo McCarrick com seminaristas e sacerdotes.” Mas ninguém fez nada.
Em particular, Viganó revela que “o Núncio Sambi transmitiu ao Cardeal Secretário de Estado, Tarcisio Bertone, um Memorando de acusação contra McCarrick do sacerdote Gregory Littleton, da diocese de Charlotte, que foi reduzido ao estado laico por violação de menores, junto com dois documentos do mesmo Littleton, no que contava sua trágica história de abusos sexuais cometidos pelo então arcebispo de Newark e vários outros sacerdotes e seminaristas. O Núncio acrescentou que Littleton já havia enviado seu Memorando a umas vinte pessoas, incluídas autoridades judiciais civis e eclesiásticas, polícias e advogados, em junho de 2006, e que era por tanto muito provável que logo se tornasse pública a notícia. Por isso reclamou uma imediata intervenção da Santa Sé.”
Como Delegado das Representações Pontifícias, em 2006, Viganò escreve um memorando sobre o caso Littleton e o envia ao Cardeal Tarcisio Bertone e ao substituto Leonardo Sandri. Afirma que o comportamento atribuído a McCarrick é de tal gravidade e maldade como para provocar desconcerto, mas que as acusações são precisas e há menção também de celebrações da Eucaristia sacrílegas com os mesmos sacerdotes envolvidos nas depravações.
Em consequência, Viganò pede em seu memorando vigorosamente, de uma vez por todas, que as autoridades eclesiásticas intervenham antes que as autoridades civis e antes de que o caso chegue à imprensa. Seria salutar. Mas não há reação de seus superiores. E o memorando nunca lhe foi devolvido.
Viganò não se rende e volta à carga em 2008. Richard Sipe, psicoterapeuta e experto em comportamento sexual de sacerdotes e seus superiores, escreve uma carta nesse mesmo ano a Bento XVI cujo título o diz tudo: “Sua Santidade, tenho a prova. O Cardeal McCarrick é um homossexual. Por favor, atue.” O Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o Cardeal William Levada, e o Cardeal Secretário de Estado, Tarcisio Bertone, são informados imediatamente. E mais. Viganò entrega um memorando neste sentido ao novo substituto Fernando Filoni. E, já postos, ajunta o memorando de dois anos antes, sublinhando outra vez a gravidade da situação. Mas a reação da hierarquia é sempre a mesma: não há resposta.
Graças ao Cardeal Giovanni Battista Re, então Prefeito da Congregação dos Bispos, Viganò chegou a saber que o papa Bento XVI, ao conhecer a denúncia de Sipe, havia ordenado a McCarrick que abandonasse o seminário em que residia e lhe proibiu de celebrar missa em público, a participação em reuniões, dar conferências e viajar, com a obrigação de dedicar-se a uma vida de oração e penitência.
É o Núncio Sambi quem comunica estas medidas a McCarrick durante uma tormentosa reunião. Depois, quando Viganò se converte no Núncio nos Estados Unidos, é precisamente ele quem recorda a McCarrick as ordens do papa, e aquele resmunga uma resposta confusa, tentando torpemente minimizar tudo.
Mas como como fez McCarrick para chegar a ser o que chegou a ser (Arcebispo de Washington, e cardeal, depois de ser Arcebispo de Newark), visto que seu comportamento [sempre] foi o que foi?
Se perguntamos a Monsenhor Viganò, ele coloca a responsabilidade da carreira de McCarrick no Cardeal Ângelo Sodano, Secretário de Estado de 1991 a 2006 e no Cardeal Tarcisio Bertone, seu sucessor. Mas Viganò implica também ao atual Secretário de Estado, Pietro Parolin. Quando torna-se claro para todo o mundo que McCarrick não obedece as ordens de Bento XVI e, ao contrário, viaja mundo afora, Viganò também escreve a Parolin perguntando se as sanções são ainda válidas, mas sua pergunta fica -como de costume- sem resposta.
Outros que sem dúvida sabiam mas guardaram silêncio eram, escreve Viganò, o Cardeal Levada, o Cardeal Sandri, Monsenhor Becciu (agora cardeal) e os Cardeais Lajolo e Mamberti. Em outras palavras: todos os da cúpula.
Não menos devastadora, segundo as revelações de Viganò, é a foto dos Estados Unidos. Também aí todo o mundo sabia, começando pelo Cardeal Wuerl, sucessor de McCarrick em Washington, mas ninguém deu a mais mínima [atenção]. E hoje as declarações de Wuerl, nas que não diz nada, “são absolutamente risíveis.”
Quanto ao Cardeal Kevin Farrell, atual Prefeito do Ministério Vaticano para os Laicos, a Família e a Vida, que por sua vez disse que nunca havia ouvido nada sobre os abusos do Cardeal McCarrick, Viganò escreve: “Dadas suas residências em Washington, Dallas e agora Roma, creio que ninguém pode acreditá-lo sinceramente.”
Em último lugar, do Cardeal Sean O’Malley, Arcebispo de Boston e Cabeça da Comissão Vaticana para a Proteção de Menores, Viganò afirma: “Diria simplesmente que suas últimas declarações sobre o caso McCarrick são desconcertantes e têm obscurecido totalmente sua transparência e credibilidade.”
Neste ponto, contudo, o drama da declaração de Monsenhor Viganò sobe de tom ao implicar o Papa Francisco diretamente.
É em 2013, no mês de junho. Há uma reunião em Roma dos núncios de todo o mundo e também está presente Monsenhor Viganò. Inquieto pela perspectiva de seu primeiro encontro com o novo pontífice, o arcebispo vai à Casa Santa Marta, a residência escolhida por Bergoglio no lugar do Palácio Apostólico, e quem se encontra ali? Nada menos que um relaxado e sorridente Cardeal McCarrick, que tem a batina ornada de vermelho e recebe Viganò fazendo-o saber, em tom burlão: “O papa me recebeu ontem, amanhã vou à China.”
Viganò anota: “Nesse momento eu não sabia nada de sua longa amizade com o Cardeal Bergoglio e do papel importante que havia tido em sua recente eleição, como revelaria o mesmo McCarrick em uma conferência na Universidade de Villanueva e em uma entrevista com o National Catholic Reporter. Nem havia eu nunca pensado no fato de que havia participado nas reuniões preliminares do recente conclave, nem no papel que podia ter tido como cardeal eleitor no conclave de 2005. Portanto não me dei conta imediatamente do significado da críptica mensagem que McCarrick me havia comunicado, mas que se tornaria clara nos dias que imediatamente seguiram.”
A primeira e ansiada reunião de Viganò com o papa tem algo de surrealista e deixa o pobre núncio sem palavras. Mas o pior está ainda por vir.
É domingo, 23 de junho de 2013. O papa recebe Viganò antes do Ângelus. Faz algumas afirmações que soam algo enigmáticas ao arcebispo; em seguida, a queima-roupa lhe pergunta: “Como é o Cardeal McCarrick?” Ao que o núncio responde: “Santo Padre, não sei se conhece o Cardeal McCarrick, mas se pergunta à Congregação de Bispos, há um informe grosso assim sobre ele. Corrompeu gerações de seminaristas e sacerdotes e o papa Bento lhe ordenou que se retirasse a uma vida de oração e penitência.” A reação do papa? Nenhuma em absoluto. De fato Bergoglio muda de tema imediatamente. Bom, se pergunta então um confuso Viganò, por que me fez essa pergunta?
O entendeu a seu regresso a Washington. Toma conhecimento de que entre o papa e McCarrick há uma estreia relação. A pergunta que o papa fez ao núncio era portanto uma armadilha. O fato é que, segundo o informe de Monsenhor Viganò, desde 23 de junho de 2013 pelo menos, o papa Francisco soube do caso de McCarrick.
Neste ponto Viganò comenta: “O papa Francisco pediu repetidamente uma total transparência na Igreja e que os bispos e os fiéis atuem com parrésia. Os fiéis de todo o mundo também o exigem dele de um modo exemplar. Deve sinceramente declarar quando soube pela primeira vez dos crimes cometidos por McCarrick, que abusou de sua autoridade com seminaristas e sacerdotes.
Em qualquer caso, o papa se inteirou por mim em 23 de junho de 2013 e continuou encobrindo-lhe. Não teve em conta as sanções que o papa Bento lhe havia imposto e lhe tornou seu conselheiro de confiança junto ao Cardeal Maradiaga. O último [Maradiaga] está tão seguro da proteção do papa que pode descartar como “boatos” as sentidas apelações de dezenas de seus seminaristas, que encontraram o valor de escrever-lhe depois que um deles tentou suicidar-se pelos abusos homossexuais no seminário.”
Desta forma [conclui-se que] Francisco o sabia. O soube há algum tempo, ao menos cinco anos. “Desde 23 de junho de 2013 soube que McCarrick era um depredador em série”. Mas “apesar de saber que era um homem corrupto, lhe encobriu amargamente até o extremo; em efeito, fez seu o conselho de McCarrick, que certamente não estava inspirado por sãs intensões nem amor à Igreja. Somente quando foi forçado pelo informe do abuso a um menor, outra vez baseado na atenção dos meios de comunicação, que tomou medidas (quanto a McCarrick) para salvar sua imagem nos meios.”
“Agora -continua Viganò- nos Estados Unidos se levanta um coro de vozes, especialmente entre os fiéis laicos, e recentemente a eles se uniram vários bispos e sacerdotes pedindo que demitam todos os que, por seu silêncio encobriram o comportamento criminoso de McCarrick, ou utilizaram-se dele para avançar em suas carreiras ou promover suas intensões, ambições e poder na Igreja.
Mas isto não será bastante para curar a situação de comportamento extrema e gravemente imoral do clero, bispos e sacerdotes. Deve proclamar-se um tempo de conversão e penitência. O clero e os seminários devem recuperar a virtude da castidade. Deve lutar-se contra a corrupção do uso indevido dos recursos da Igreja e das ofertas dos fiéis. Deve denunciar-se a seriedade dos comportamentos homossexuais.”
“Imploro a cada um, especialmente aos bispos, que falem alto com o fim de derrotar esta conspiração de silêncio que está tão estendida, e para que denunciem os casos de abuso dos quais os meios de comunicação e as autoridades civis já tenham conhecimento.
Prestemos atenção à mensagem mais poderosa que São João Paulo II nos deixou como herança: “Não tenhais medo! Não tenhais medo!”
No Ângelus de 12 de agosto Francisco disse que “Todo o mundo é culpável do bem que pode fazer e não fez… se não nos opomos ao mal, o alimentamos tacitamente. É necessário intervir ali onde o mal está se estendendo; porque o mal se estende onde os cristãos audazes deixam de a ele se opor com o bem.”
Se isto é verdade, e o é, quanto mais grave é a responsabilidade do papa, o Pastor Supremo! Não obstante, sustenta Viganò, no caso de McCarrick, o Pastor Supremo “não só não se opôs ao mal como se associou ele mesmo em fazer o mal com alguém que sabia ser profundamente corrupto. Seguiu o conselho de alguém de quem sabia bem ser um pervertido, multiplicando assim exponencialmente com sua suprema autoridade o mal feito por McCarrick. E a quantos outros tantos maus pastores continua Francisco apoiando na destruição ativa que fazem da Igreja!
Francisco está abdicando do mandato que Cristo deu a Pedro de confirmar seus irmãos. Em efeito, por sua ação os há dividido, os há guiado ao erro e há animado os lobos a seguir desgarrando as ovelhas do rebanho de Cristo.”
O papa Francisco deve portanto “reconhecer seus erros e, seguindo o princípio de tolerância zero, o papa Francisco deve ser o primeiro em dar um bom exemplo aos cardeais e bispos que encobriram os abusos de McCarrick e demitir-se com todos eles.”
Esta é a estipulação, peremptória, em termos nada incertos: demissão. A única ação que pode ajudar a recuperação.
A situação é dramática mas Monsenhor Viganò nos convida a não perder a esperança.
Inclusive “na desorientação e a tristeza”, diz, pensemos nos muitos bispos e sacerdotes que cumprem com seu dever e não devemos perder a fé no Senhor. Antes, é precisamente nestes momentos quando “a graça do Senhor se revela abundantemente e torna sua infinita misericórdia acessível a todos; mas lhes concede somente aos que de verdade se arrependem e se propõem sinceramente emendar seus modos. Este é o tempo mais adequado para que a Igreja confesse seus pecados, se converta e faça penitência. Rezemos todos pela Igreja e pelo papa, recordando quantas vezes nos pediu que rezássemos por ele.”
Citações de Monsenhor Viganò tomadas da versão original em inglês aqui: https://assets.documentcloud.org/documents/4784141/TESTIMONYXCMVX-XENGLISH-CORRECTED-FINAL-VERSION.pdf
(Traduzido ao espanhol por Natalia Martín. Artículo original)


Fonte: https://adelantelafe.com/el-asunto-mccarrick-el-papa-lo-sabia-he-aqui-porque-debe-dimitir/




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