quarta-feira, 5 de março de 2014

A educação religiosa da criança na idade da razão


 Toda criança exige cuidados análogos; igual vigilância, e podem empregar-se para com ambos  idênticos meios de repressão ou estímulos.

Porém na idade da razão a que chegamos é muito diverso; nela se opera naturalmente a separação nos gostos como nos defeitos, tanto nas ocupações como nos brinquedos.

E, com efeito, atentemos no menino que anda brincando: quer uma espada, uma espingarda, e soldados para formar uma batalha; e não sendo isso suficiente aos seus gostos destruidores e à necessidade que sente de ação, não há em torno dele parede que não escale ou arruíne, nem árvore cujo ramo mais alto não busque ir quebrar, nem ninho que possa livrar de suas mãos a preciosa ninhada.


Olha agora para a menina: esta pelo contrário, trata de um passarinho, prepara uma comida, faz honra d’uma sala, adorna uma capelinha, veste-lhe uma boneca e repete-lhe as lições que lhe ensinaram.

Estas oposições de gestos é tão notável, que cada sexo parece fazer consistir a sua glória em não tomar nada do outro. Assim é que se humilha em extremo o menino se se lhe diz que se diverte como uma menina, e se faz corar uma menina se se lhe adverte que escolhe os brinquedos dos meninos. Se passarmos dos divertimentos às dores, descobriremos nas causas  destas as mesmas diferenças que nas alegrias ocasionadas por aqueles. Encontraremos em tudo e, quanto mais estudarmos, tanto mais nos convenceremos de que é necessária uma linha de proceder diferente, completamente adaptada à natureza , às paixões, às aptidões e à vocação especial de cada sexo.

Ei-nos chegado a esse momento chamado idade da razão, em que a criança distingue o bem, e muitíssimas vezes o mal; ao momento que sabe o que é um dever, o que é uma falta, e o que é uma expiação: idade em que tudo é novo e, por uma consequência ordinária, em que tudo é belo; idade dos prazeres ruidosos e, sem embargos, verdadeiros; idade em que são breves as emoções, porém, as impressões, duradouras. A mãe que não cria nela, não deve admirar-se de que fique improdutivo o grão que lhe confia: são muito raras as plantas capazes de suportar a luz do sol sem se queimar, quando não foram refrescadas em tempo oportuno com o orvalho do céu.

Vós, cultivadora desta propriedade divina, vós, únicas encarregadas por Deus do cuidado destas almas, e a quem talvez aterre esta imensa responsabilidade, empregue bem esses instantes tão preciosos; não sejais preguiçosas nem covardes, como diz São Paulo, falando em nome de Deus. Servas fiéis fazei produzir o talento que se vos confiou. Se o não acrescentardes, nem ainda tereis o recurso de o enterrar e conservar intacto; porque vos decrescerá nas mãos, visto que perde sempre aquilo que não ganha.

A criança cresceu, crescei vós também em todas as vossas relações  com ela; e como pede o seu corpo, espírito e coração alimentos mais abundantes e sólidos à proporção que se desenvolve, não vos cansei nunca de lhes apresentar. Continue a acostumá-la na obediência, à franqueza e à mansidão, trindade fecunda, virtudes da infância assim como de todas as idades, raízes cheia de seiva que, crescendo com a criança, se convertem em grandes árvores e se cobrem de frutos de vida. Não vades credes que, a tal dia, a tal hora, ao completar vosso filho sete anos, seja necessário de súbito mudar de proceder para com ele; procedei gradualmente às modificações  necessárias, caminhai com esse passo prudente e pausado com cujo auxílio se pode  resistir tanto às tentações de desalento e de fuga, como aos ímpetos precipitados do zelo; passo que se chega ao fim sem queda, e do qual nos dão constantemente exemplo Jesus Cristo, Sua providência e a Sua Igreja.

Sem conceder uma liberdade cada vez mais perigosa talvez, exercitai essa juvenil inteligência,  prescreva-lhe cada dia uma tarefa metódica e obrigatória, e ocupai-vos da memória, cujo exercício, nesta idade, auxiliam tão poderosamente aos seus desenvolvimentos.

Imponha igualmente um trabalho manual, e nunca relaxeis a regra que uma vez tenha estabelecido, por causa do desgosto que se vos possa manifestar.

Mas lembrai-vos que usar não é abusar. Uma cabeça de sete anos necessita de certas considerações  para suportar se dano todos os objetos novos que se atropelam e se acumulam nela a cada instante. É preciso dar-lhe como contrapeso muitos recreios e brinquedos e até admitir exercícios ginásticos, destinando-se larga parte no emprego do tempo.

Mas tanto nisso como no demais e sempre procedei  com ordem, por ser assim mais conveniente à saúde, aos estudos e à reforma do coração. “ A ordem é a lei inviolável, ou antes essencial, das inteligências”, dizia Malabranche; e, com efeito, fora desta lei, frequentissimamente violada pela irrequieta atividade da natureza decaída, nunca chegamos senão a resultados incompletos ou maus. Inculca-lhe insensivelmente o conhecimento e o amor de uma lei superior, e até o conduz por meio deste amor ao respeito d’Aquele que é o único que está acima de toda lei.

E, além disso, com o dia bem ocupado evita-se um dos inconvenientes que chega a medida em que se desenvolve a razão. Este inconveniente resulta da das amizades íntimas e das relações frequentes com crianças de educação má ou descuidada, ou ainda com crianças que não são virtuosas e sabemos quais serão as consequências.

E em verdade, Deus meu, a melhor companhia para uma criança é a que Deus mesmo tem cuidado de lhe formar. O mundo, tal que é hoje, com seus cálculos frios e egoístas, inveja a posição do filho único para deixar para ele toda a fortuna dos pais, quando se tivesse irmãos deveria reparti-la com eles, ou não ter mais filhos para não “atrapalhar” o desfrutar dos bens.

Pois bem: É lamentável essa posição tão elogiada, esta criança tão feliz por ser só.  Lamentável não só porque irá ignorar toda a vida as doçuras da amizade fraternal; mas é lamentável sobre tudo porque destinada, qualquer que seja sua posição futura, a viver com outros entes que não sejam um pai e uma mãe que chegaram a ser para ele quase idólatras, o seu caráter terá carecido do atrito necessário para se polir, desse atrito por meio do qual teria aprendido a criança ao mesmo tempo a suportar os outros e a conhecer a si própria.

Quando uma mãe tem vários filhos cujas idades se tocam, com tanto que se aplique a ser justa com todos, a manter a harmonia entre eles, evitando o pretexto da inveja, aprendem-se por si sós as considerações e condescendências mútuas, suportam-se os defeitos alheios, e desaparece o egoísmo. Quão feliz é essa mãe.

A tarefa da mãe que tem um filho único é muito mais difícil. Como proceder para que este filho, único objeto das atenções  da família e dos mimos de todos; esta crianças que nunca vê conceder a outros os mesmos cuidados, não crerá ser um ser bastante superior  para receber estes obséquios de todos e não os fazer a ninguém? Por mais que se lhe diga que deve esquecer-se por amor aos outros, dar muito e pedir pouco, etc., os fatos gravam-se e compreende-se melhor que as palavras e não se contrai hábitos escutando discursos.

Quando ouvir pregar sobre a caridade e a abnegação cristã, tirará esta conclusão prática: “O que não se sacrifica por mim, não possui nenhuma destas virtudes”.

Mas em fim, acham-se predestinados e condenados previamente ao egoísmo? Oh! Felizmente não, existem crianças privadas dessas doces relações, nas quais conseguiu uma vontade animosa, alimentada por uma educação bem dirigida e cheia de dedicação cristã, expulsar o personalismo, e torná-las, apesar da sua situação, caritativas, amantes e desinteressadas.

Ensinará por, exemplo, a mãe de um filho único a aproveitar-se destas frequentes ocasiões de se esquecer pelos outros. Que nascem por si mesma e se apresentam todos os dias aos membros de uma família numerosa. Para proporcionar-lhe entretenimentos e satisfações legítimas, saberá esta mãe não ser escrava dos gostos e dos recreios do seu filho, e até os recusará de vez em quando, para fazer-lhe compreender  que os seus desejos devem ceder com frequência o passo dos alheios. Finalmente, sempre que esta criança se achar em contato com outras, obrigá-la-á a ceder-lhe quase em todas as coisas e não só a adotar os seus divertimentos, mas a ocupar os seus divertimentos, mas a ocupar tão somente um ligar secundário na organização destes divertimentos.

Guiada sempre por um pensamento de fé, empregará esta mãe, para inculcar a caridade, um meio mais eloquente e seguro que as frases e os discursos, habituando a criança a praticá-la por si mesma, e fazendo dela um canal ordinário para as boas obras.  Além de que com esse sistema só colherá benefícios; pois apresentadas as suas esmolas por mãos tão puras, parece-me que adquirirão maior merecimento; posto seu filho em relação desde a tenra idade com a miséria e o sofrimento, saberá compreendê-los melhor; e acostumados a aliviá-los quase desde o berço, será para ele a caridade uma espécie de hábito, e sabido é que o hábito é uma segunda natureza. Ditosas as mães que sabem substituir por esta a primeira natureza egoísta que nos deu o pecado! Ditosos seu filhos! Ditosa a sociedade em que abundem tais mães.

Para conseguirmos esse resultado não se deve contentar em dar moedas de vez em quando ao medingo que estende o chapéu, cujo efeito raríssimas vezes  é remediar as verdadeiras misérias.

No campo deve entrar na cabana do faminto e na cidade na casa dos pobres abandonados. Precisa-se de lições de cristianismo e não de filantropia.

 A mãe deveria levá-las ao leito dos enfermos para levar-lhes socorros, prestar-lhes serviços às vezes penosos, e dizer-lhes palavras de consolação.

Uma menina, sobretudo, - não esqueçamos que a elas são consagradas essa obra – uma menina cujo coração é tão inclinado à piedade , cujos lábios sentem falar tão naturalmente de Deus, de esperança e de confiança, cujo destino é tão geralmente aliviar as misérias de outrem, devem habituar-se a essa prática. A mãe que deixasse secar esse coração profanar-se este destino assumiria uma tremenda responsabilidade.

Sem embargo, não podendo extinguir-se súbita e inteiramente o calor nativo do coração, se desviará do seu curso natural: em vez de amar a menina com santa paixão os pobres do bom Deus e o bom Deus nos seus pobres, abrirá a alma a outros sentimentos e talvez paixões.

Uma vez travado o movimento de dilatação, a alma, adotando um andamento retrógrado, se comprimirá cada vez mais, e, ficar-lhe-á quando muito o espaço necessário para ser egoísta.

E vós, mães, não esqueças estas palavras: “Aqui dentro há alguma coisa”, porque este alguma coisa é um gérmen de caridade, e Deus, a família e a sociedade vos pedirão contas dele um dia.

Um perigo porém fácil de prever e cujas consequências são funestíssimas, é o que provém de se acharem em visível contradição os princípios e o proceder da mãe. Não conseguirá insuflar a caridade no coração de sua filha uma mãe egoísta;nunca será ouvida uma mãe que possa dizer-lhe: “Faça o que eu digo mas não faça o que eu faço”:  pois a menina dirá no seu interior: “ Se fosse bom os conselhos da mamãe, seria ela a primeira a pô-los em prática”. Talvez, não obstante, se preste a tudo para evitar as lições e as morais maternas. Essa menina terá aprendido a simular até os sentimentos mais sagrados, e a sua mãe terá ensinado mais um vício: a hipocrisia!

A hipocrisia é um vassalo rebelde que presta juramento de fidelidade ao soberano, com um punhal debaixo da capa; é um traidor que parece submeter-se para conspirar com mais segurança. Em todas as idades é o exemplo um poderoso atrativo; quando porém emana este exemplo duma mãe, e quando é dado a uma menina a quem esta é ídolo e modelo, a uma menina cuja maior ambição se traduz em frases como: Quando for como a mamãe! Se eu fosse como a mamãe!

Nunca expressaremos suficientemente quão nobre e santa, e até muitas vezes doce, é a missão da mãe; porém para se cumprir devidamente é necessário valor. Não esse valor impetuoso que assim faz perder como ganhar batalhas; não esse valor irrefletido cuja fogosa precipitação corre ao encontro do perigo antes de lhe haver calculado a extensão; mas esse valor paciente dos santos, cuja luta ignorada se sustenta sem ostentação; esse valor ao qual nada desalenta, nem a obstinação do inimigo, nem a prolongação do combate; esse valor desconhecido a si próprio, mas com o qual se alcança o triunfo, porque é seu apoio Deus, seu guia a consciência, e seu modelo Jesus Cristo.

Ensina-se à criança que chegou à idade da razão, que está obrigada a ouvir a missa ao domingo, a praticar a abstinência que ordena a Igreja, a respeitar a religião e não falar dela levianamente. Assim como qualquer coisa para se sustentar no espaço é necessário o auxilio alheio, assim também, para que uma criança se eduque cristãmente, principalmente se o pai for irreligioso, é necessário primeiro a mão de Deus, e depois a da mãe: a primeira sabemos que nunca faltará; ocupemo-nos da segunda.


A Mulher Cristã, desde o nascimento até a morte – M.me M. de Marcey

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