quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Rahner e uma época desromanizada da Igreja


Rorate Caeli - Tradução: Gercione Lima

A estação de televisão canadense Salt and Light ( Sal e Luz) decidiu usar a narração de uma terceira época na história da Igreja desenvolvida pelo famoso teólogo Karl Rahner, SJ (1904-1984) como uma forma de descrever o atual pontificado. Como o padre Thomas Rosica, C.S.B, diretor de Salt and Light e top oficial de língua inglesa da  Secretaria de Imprensa da Santa Sé, coloca em uma entrevista com América:

Eu realmente acredito que, com a vinda do Papa Francisco, esta é a terceira época que Karl Rahner, falou em sua obra "As três grandes épocas da Igreja". Em nosso recente documentário sobre o Papa Francisco em Sal e Luz, começamos toda a história com o ensaio agora épico de Rahner na qual ele fala sobre as três grandes épocas da história da igreja". 
Pois bem, o ensaio ao qual Padre Rosica se refere é intitulado "Rumo a uma interpretação teológica Fundamental do Vaticano II", e nele Rahner afirma que uma nova época da igreja começou com o Concílio Vaticano II.

 A implicação da observação de padre Rosica é que até o presente pontificado, a Igreja tinha sido impedida de entrar realmente na época inaugurada pelo Concílio. E, pelo menos, numa coisa ele disse a  verdade: a rejeição da idéia de Rahner pode ser visto como um dos principais temas do magistério do Papa Bento XVI. 

Já muito antes do início do seu pontificado, Joseph Ratzinger havia se afastado e muito do seu amigo Rahner com relação a essa questão, a qual essencialmente diz respeito ao sentido ou significado da catolicidade da Igreja.

A idéia de Rahner de três épocas da Igreja tem antecedentes (por exemplo, em Joaquim de Fiore), mas a versão de Rahner é singular. Ele vê a primeira época como tendo sido o período muito curto de Cristianismo judaico antes da decisão do Apóstolo de não impor a circuncisão aos gentios. Rahner afirma que a decisão de não impor a lei judaica aos cristãos gentios gerou uma forma radicalmente diferente de Cristandade, uma forma mais apropriada às culturas greco-romanas. Dessa forma, essa segunda época da Igreja, gerou mudanças profundas que atingiam a doutrina moral, liturgia, etc.
Ele então argumenta que com o Concílio Vaticano II, uma nova era foi inaugurada, e que as mudanças que terão que ser implementadas para esta terceira era, terão talvez maior impacto do que as da primeira e segunda era. Nesta terceira era, a Igreja torna-se verdadeiramente uma Igreja mundial. 

Ele acha que essa mudança começou como uma espécie de semente no Vaticano II, como um evento que reuniu Bispos de todas as culturas, com a abertura à liturgia em vernáculo (começando assim por desistir da tentativa de impor a cultura romana sobre os povos não-europeus), em sua afirmação dos elementos positivos em outras religiões do mundo etc. Mas ele argumenta que o processo está apenas começando. Ele se pergunta como o Cristianismo poderá mudar em outras partes do mundo, se não for visto como ligado a noções greco-romano-judaica de lei, moralidade, ceremonial…etc. Será que membros de tribos africanas tem que aceitar a monogamia ou será que a sua forma de Cristianismo poderá incluir também a poligamia? " Será que a Eucaristia, mesmo no Alasca tem que ser celebrada com vinho de uva”? Rahner deixa essas questões em aberto, mas sua idéia é que será necessário realizar uma "redução ou retorno à substância final e fundamental" do Cristianismo, a fim de que ele seja então adaptado a cada cultura. Essa idéia de que o Cristianismo pode ser "reduzido" a uma "substância fundamental" que é separável de determinadas culturas em particular é algo o Papa Bento XVI nunca cansou de refutar. No discurso de Regensburg, ele diz:

"O encontro entre a mensagem bíblica e o pensamento grego não aconteceu por acaso ... o património grego, criticamente purificado, se tornou parte integrante da fé cristã".

Ou seja, Deus se fez homem em uma cultura particular, em um momento particular por razões específicas e providenciais: os elementos da cultura Judaica, Grega e Romana que o Cristianismo integrou em seu próprio Magistério não são separáveis de sua essência porque são verdadeiros. 

Os Padres da Igreja defenderam que Roma foi providencialmente preparada para ser a sede do Papa e que as idéias romanas de universalidade e direito foram uma preparação para a verdadeira universalidade Católica. E o Papa Bento XVI muitas vezes assumiu esse tema, por exemplo, no seu pronunciamento Regina Caeli: 

"Roma indica o mundo dos pagãos e, portanto, todos os povos que estão fora do antigo povo de Deus. De fato, os Atos dos Apóstolos concluem com a chegada do Evangelho a Roma. Nesse caso, pode-se dizer que Roma é o nome concreto da Catolicidade e da Missionariedade, ela expressa a fidelidade às origens, à Igreja de todos os tempos, para uma Igreja que fala todas as línguas e se encontra com todas as culturas".

Isso é exatamente o oposto da posição de Rahner. E esta oposição é baseada em uma compreensão muito diferente do que seja a Fé Cristã. Rahner não diz o que vem a ser essa "substância fundamental" do Cristianismo no ensaio sobre as três épocas, mas fica claro a partir de seus outros trabalhos que se trata de uma afirmação da humanidade como tal. Ratzinger certa vez resumiu a posição de Rahner da seguinte forma: 

[Rahner afirma que] ser um cristão é aceitar sua própria existência incondicionalmente. Em última análise, portanto, é apenas o reflexo explícito do que significa ser humano. Em última análise, isso significa "que o Cristão não é tanto uma exceção entre os homens, mas simplesmente o homem como ele é." (J. Ratzinger, Princípios de Teologia Católica:. Pedras de Construção da Teologia Fundamental, traduzido por Mary Frances McCarthy, San Francisco: Ignatius Press, 1987, 165-166). 

Assim, ser um cristão é ser antes de mais nada autenticamente humano, mas uma vez que existem diferentes culturas humanas, deve haver diferentes formas da Igreja Cristã corresponder a cada uma delas. 

Naturalmente que Ratzinger rejeita essa visão, pois o Cristianismo não é simplesmente o homem como ele é.

O principal ponto da fé tanto no Antigo como no Novo Testamento é que o homem é aquilo que ele deveria ser apenas pela conversão, ou seja, quando ele deixa de ser o que é. (Ratzinger, Princípios de Teologia Católica, 166) 

Nossa convicção é de que a "terceira época" da Igreja é uma fantasia impossível de ser realizada, porque a natureza essencial da Igreja nunca poderá ser mudada. No entanto, a prevalência de uma ilusão dessa natureza entre o clero é susceptível de causar um grande dano.

Nenhum comentário:

Postar um comentário