[Originariamente publicado no periódico quinzenal Sì Sì No No, XLI, n. 5, 15/3/2015.]
Caro Editor, permita-me, por meio deste breve artigo, usar a primeira pessoa do singular, pois o que estou para expor vem bem a calhar com o tema e com a minha experiência de filho.
Durante o encontro que o Papa Francisco teve com os jornalistas na viagem de volta [das Filipinas] a Roma, a 8 mil metros de altura, falou-se de demografia, de povoamento humano do planeta, de perspectiva próxima ao malthusianismo, de família e, enfim, como corolário do recente Sínodo, de paternidade responsável.
O Pontífice foi claro, claríssimo: basta de super-famílias que representam, aos olhos do progressismo, mais um castigo do que uma bênção de Deus, em contextos pobres tais como as “periferias” do mundo, as Filipinas ou o Brasil por exemplo, onde vivem, por assim dizer, inúmeros meninos de rua. A família que atualmente deveria valer como modelo deveria manter-se num padrão de três filhos, no máximo. Ah sim, porque, como comenta o suposto teólogo Vito Mancuso, para os medievais “todo três é perfeito” (apud “Il pastore del popolo” in La Repubblica, 20/1/2015). Portanto, caros pais, tomai jeito; consultai especialistas, psicólogos, sacerdotes, frequentai centros assistenciais, mas não exagereis em “fazer filhos como coelhos”!
Não parece também a vós, caros leitores, ler ou escutar um anúncio do Planned Parenthood maçônico? Um Papa que se põe a regulamentar os nascimentos como um Malthus qualquer!
Até que enfim uma linguagem clara – alegra-se a imprensa mundial –, uma expressividade popular que tanto agrada e que nunca seria adotada por um João Paulo II ou por um Bento XVI; ainda segundo Mancuso, uma linguagem que, sem subverter a ordem do divino Criador nem cair em aberto malthusianismo, adverte que “pôr no mundo muitos filhos é tentar a Deus”, especialmente onde reina a pobreza.
Para reforçar a sua observação, o Papa Francisco lembrou (pouco discretamente, ele que havia condenado a “fofoca”) ter desaprovado uma senhora que concebera pela oitava vez, depois de ter tido partos cesarianos nas precedentes gestações: “Gostarias de deixar órfãos teus filhos? Tu tentas a Deus!”. Como se vê, é uma constatação malthusiana acompanhada de bom senso econômico que, ao preocupar-se da saúde da mulher e do futuro dos filhos, desconfia daquela Providência de Deus que se preocupa de toda a criação: “Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam, nem recolhem nos celeiros, e vosso Pai celeste as alimenta. Não valeis vós muito mais que elas?” (Mt 6,26).
Portanto, ter comparado a função materna, ainda que cumprida no contexto de um risco, com um “tentar a Deus” parece-nos – e é – sinal de total desconfiança em Deus e na sua potência, bem como de confiança máxima e única nas medidas humanas. “Teus pensamentos não são de Deus, mas dos homens!” (Mt 16,23), diz Jesus a Pedro.
Ademais, a comparação da paternidade generosa com a dos coelhos é indício não somente de linguagem trivial, vulgar e plebeu, e de pensamento superficial e banal, mas também de manifesto escárnio àquele sagrado e misterioso dom, dado diretamente por Deus ao homem, que é a capacidade de contribuir para a reprodução de seres racionais. Mas enfim, este é o Papa que fala, infelizmente, de improviso e que perde a direção, especialmente quando fala na Casa Santa Marta e nos voos, e que faria melhor se dirigisse as suas elevadas e mordazes desaprovações aos políticos das Filipinas, de maioria católica, exigindo a adoção de medidas em apoio e tutela dos pobres e da família, em vez de implicar com os cônjuges “coelhos” e irresponsáveis. A imprensa não captou esse aspecto porque preferiu desfrutar tolamente a hilaridade da analogia acima. É evidente, nessa circunstância, a herética e vergonhosa inversão da lógica cristã.
Em consequência desse reprovável sermão, pensei em meus falecidos genitores e, assim, dirigi-lhes mentalmente esta minha amargurada carta:
“Queridos papai e mamãe, só agora, 20/1/2015, com a idade avançada de 73 anos, durante os quais vos amei como parte de mim mesmo e até mais, só agora, como dizia, compreendo a superficialidade, porém, com que levastes o vosso papel de pai e de mãe. É verdade que, para vossa justificação, influíram muitos fatores negativos, porque o vosso foi um tempo em que, sem televisão, sem informação oportuna, sem movimentos abortistas, sem pílula do dia seguinte, sem ‘nova teologia’, mas com tanta pobreza, tanta santa ignorância, não encontrastes coisa melhor do que colocar no mundo oito – oito, enfatizo – filhos. É verdade que a estes nunca deixastes faltar o pão, ainda que às vezes escasso e seco; é verdade que não soubestes oferecer-lhes uma educação livresca, mas só aquela da simplicidade, da honestidade e da oração; é verdade que tu, papai, não pudeste fazer ainda melhor porque partiste com 41 anos, consumido pelo feroz tumor do câncer e pela irremediável dor da precedente perda do menor de teus filhos, de somente 5 anos, atropelado por um frio automóvel; é verdade que também tu, mamãe, não soubeste então fazer outra coisa senão confiar no Senhor, trabalhando até esgotar-te pelo cansaço, mandando tuas duas filhas praticamente adolescentes ganhar o pão, uma num consultório médico, e outra numa alfaiataria da cidade, e meus outros irmãos aprender um ofício artesanal, e eu ao colégio dos Irmãos Maristas. Tudo isso, queridos pais, custou dor, sacrifício e lágrimas que, agora, depois dessa revelação do Papa, sei que nos podiam ser poupados, se tivésseis sido somente “mais responsáveis” e não “tivésseis tentado a Deus”, tirando do forno um filho atrás do outro. Com um pingo daquela maturidade indicada pelo Papa, vós vos teríeis poupado sofrimentos, preocupações, privações e problemas existenciais. Agora que tu, papai, e tu, mamãe, estais lá em cima, como creio e espero – contanto que Deus não vos tenha responsabilizado pelo bergogliano pecado de “temerária irresponsabilidade” –, cercados de cinco de vossos filhos e meus irmãos, vós vos livrastes das complicações deste mundo e deixastes-me, juntamente com outra irmã e outro irmão, a debater-me neste vale de lágrimas.
Eu deveria, portanto, nutrir para convosco um sentimento de sombria amargura e de compassiva e implícita desaprovação, agora que o Pastor do Catolicismo, Fé na qual eu milito, me fez compreender quão levianos e inconsequentes vós fostes ao colocar-nos no mundo e ter, sobretudo, constrangido o Senhor a empenhar-se a proteger-nos e guardar-nos. Bastavam três, os primeiros três filhos, dos quais dois, já depois de um ano e meio, partiram, vítimas da gripe. Nós, os outros cinco, nunca concebidos, não teríamos de suportar travessias, impedimentos e dores. Teríamos sido um puro nada, e eu não estaria aqui a acusar-vos da vossa inconsiderada prolificação. Então, queridos papai e mamãe, se tivesse de consentir com a doutrina deste Papa, que fala claro, eu vos teria de acusar de nos ter causado, com a vossa irresponsabilidade, dramas e odisseias gratuitas e nunca desejadas.
Mas não é bem assim, não é assim de forma alguma, e vós sabeis disso.
Fostes, na vossa simplicidade de pais analfabetos, os melhores, porque fostes ricos do sorriso do pobre que se satisfaz com pouco, ricos da fé em Deus, ricos daquele bom senso pedagógico, amoroso e severo na medida certa, diante do que desaparecem inclusive os mais refinados e eruditos sistemas educativos laicos. Recordo aquele senso de ingênua e festiva felicidade quando todos, em volta da mesa, esperávamos que tu, mamãe, servisses o modesto, mas merecido jantar. Unidade e amor, confiança e inocência. A vossa ação sempre andou no caminho da honestidade, da sinceridade, da boa vontade, da moderação, da prudência e do respeito. Vós nos educastes para esses valores, para não desejarmos tanto, para não roubarmos, para não praticarmos o vício, e, nos momentos de luto, soubestes confortar-nos, dando-nos a esperança de que tudo, em seguida, terminaria bem. Ainda hoje, à distância de décadas, os vossos rostos estão vivos no nosso ser e presentes na minha casa, retratados em duas pequenas telas, por mim amorosamente realizadas e colocadas ao lado de um quadro da Virgem Maria com o Menino.
Diga o que quiser o “bispo de Roma”, mas o Senhor, longe de vos atribuir culpas, acolheu-vos na sua glória, e estou certo disso porque tu, papai, depois de uma vida, tão breve, transcorrida inteiramente desde a infância entre restolho torrado de trigo e empoeiradas minas, morreste jovem invocando o seu santo Nome e entregando-te à tua preferida Santa Rita; e porque tu, mamãe, nascida num sábado dia 25 de março e, por isso, chamada Annunziata, te reuniste com ele num sábado dia 13 de maio, dia de Nossa Senhora de Fátima.
Amo-vos, hoje ainda mais, tão amados irresponsáveis!
Vosso filho agradecido, sétimo de oito,
L.P.
Santa Maria das Vitórias
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