A verdade nada mais é do que o obvio.
E por falar em sacerdócio, tratemos agora de
uma questão a ele unida, da qual pouco ou nada se sabe, mas que se tornou o
ponto central da pregação de muitos, especialmente os ligados ao segmento da
“teologia da prosperidade”. Quem quiser aprofundá-la aconselhamos ir à fonte
principal aqui utilizada, pois o que será dito não passará de uma sucinta
exposição deste vídeo[1]. E
tudo se resume a um fato óbvio, o fato de nenhum pastor ou seita
protestante poder cobrar o dízimo.
Direto ao assunto
O termo dízimo se refere à “décima parte”
destinada a Deus do que ganhamos (cf. Ex XVI, 32-36; XXIX, 38ss; Lev V, 11,
entre outros), em reconhecimento e gratidão por tudo o que dele recebemos, a
começar pela vida, e ainda como prova da confiança e do abandono à Providência
divina. Como consequência, o dízimo serve para não nos apegar ao terreno,
material e passageiro, considerando que somos cidadãos do céu. Já no Antigo
Testamento Deus estipulou quem possuiria autoridade para cobrar o dízimo, e
estes seriam os sacerdotes e os levitas. Os sacerdotes eram os responsáveis
pelo templo e pelos sacrifícios, e os levitas, seus auxiliares.
Em resumo, o dízimo somente poderia ser cobrado
se existisse um templo (lugar de oração e culto). Mas o templo existia para que
nele fosse feito sacrifícios (de animais) para cultuar, agradecer e obter de Deus
o perdão (expiação) pelos pecados do povo. E somente poderiam existir
sacrifícios se houvesse um altar (não uma mesa para ceia) e um sacerdote para
realizá-los[2]. De acordo com essas leis,
pelo fato de só existir um templo, o de Jerusalém, somente em função dele se
cobravam dízimos. Nenhuma Sinagoga (lugar de reunião para a pregação da Palavra
e o ensino da Lei) tinha o direito de cobrar, pois ali estavam os Doutores da
Lei, não os Sacerdotes, por isso jamais se encontrará na Bíblia a cobrança de
dízimo pela pregação da palavra de Deus. Os Profetas, por exemplo, jamais o
cobraram. Cristo, ao definir a missão de seus discípulos foi de clareza
insofismável: “E, pondo-vos a caminho, pregai, dizendo: Está próximo o
reino dos céus... Dai de graça o que de graça recebestes” (Mt X,
5-8).
Mas dirá alguém: “acaso o operário não é digno
de seu salário?”. Ao que respondemos: sim; todo (bom) operário é digno de seu
salário. O que trabalha deve receber, e isto sempre o ensinou São Paulo e a
Igreja. O que nunca, a Bíblia e Igreja ensinaram é que salário seja igual a
dízimo, que não pode ser cobrado fora de um templo onde se
tenha um altar e um sacerdote para se realizar um sacrifício.
Uma coisa sempre foi, é, e será completamente diferente da outra. As afirmações
dos pastores e obreiros têm por base a maliciosa deturpação das
Escrituras, o que não é de se admirar no protestantismo.
Então, vejamos.
O suposto direito que os protestantes teriam de
cobrar e dar o dízimo supostamente teria respaldo na primeira carta de S.
Paulo a Timóteo (V, 18), em que cita o Deuteronômio (XXV, 4), e os Evangelhos
(Mt X, 10 e Lc X, 7): “O operário é digno de sua paga”. Isto por si será
suficiente a enganadores e enganados, mas, o que os últimos não sabem e os
primeiros “... têm raiva de quem sabe” é que curiosamente paga, salário, soldo, na Bíblia (e fora dela), não são
sinônimos de dízimo, muito pelo contrário.
Voltemos ao mote protestante, então, e perguntemos: “onde está na Bíblia” que
o operário é digno do seu dízimo? Se esta fosse a interpretação correta
o dízimo seria algo a ser destinado por direito ao operário (que por
coincidência neste caso não será ninguém menos que o pastor) pela
cobrança da pregação, o que jamais aconteceu em toda a história de Israel.
Cristo disse “dai de graça...”. Disse também que quando saíssem para pregar a Boa Nova do reino “... em qualquer cidade
em que entrardes, e vos receberem, comei o que se vos puser diante...”
(Lc X, 7s), ou seja, não pedir, mas receber gratuitamente o que será dado. Por
quê? porque o operário é digno de um salário que não necessariamente é dinheiro,
mas condições de sobrevivência, como se deu na vida dos santos, que nunca
cobraram por sua dedicação sobre-humana, e que por vezes os conduzia ao
martírio, mas sempre tiveram o necessário para sobreviver e pregar o Evangelho,
curar e fazer (autênticos) milagres, e principalmente converter e salvar
almas. Um salário cobrado, portanto, para a pregação e administração dos
sacramentos etc, porque esse operário dependerá desse trabalho, que é um
trabalho como qualquer outro, porém superior. Mas daí, entre esse salário e o
dízimo há uma distância estrelar. Em todo o contexto fica claro que não se fala
em dízimo (a décima parte) como sinônimo de pagamento pela pregação ou outra
atividade do operário, ainda mais de qualquer operário.
No Antigo Testamento há três tipos de dízimos
como nos explica o autor do vídeo, nenhum destinado aos “operários da Palavra”:
um se dirigia aos sacerdotes e levitas para a manutenção do templo e de seus servidores, outro para ser consumido na cidade de Jerusalém onde estava o templo, porque ali acorria gente
de várias regiões, e o outro para os pobres e necessitados.
Daí a queixa de Deus através do profeta
Malaquias (III, 5s. 10):
Então aproximar-me-ei de
vós para exercer o juízo, e serei uma testemunha pronta contra os feiticeiros,
e contra os adúlteros, e contra os perjuros, e contra os que defraudam o salário
do trabalhador, as viúvas e os órfãos, e oprimem os
estrangeiros, e não me temem, diz o Senhor dos exércitos.
Desde os dias de vossos
pais vos apartastes das minhas leis, e não as guardastes. Voltai para mim, e eu
me voltarei para vós, diz o Senhor dos exércitos. (...) Levai todos os vossos dízimos
ao (meu) celeiro, e haja alimento na minha casa...;
deixando claro com isso que é “ao (meu) celeiro”,
à “minha casa”, isto é, ao templo (onde eram feitos os sacrifícios no
altar pelo sacerdote) que o dízimo deveria ser destinado,
distinguindo ainda este último do “salário do trabalhador”.
No Novo Testamento os Evangelhos (Mt XVII, 23s;
XXIII, 23; Lc XVIII, 9-12) nos trazem o contexto do dízimo (ou tributo) em
nítida associação com o templo: lugar de sacrifício. As ofertas
das que S. Paulo faz menção em Fil IV, 15-18 e S. João em 3 Jo 5-8, não têm
relação alguma com o dízimo, mas se tratam das mesmas ofertas a que Nosso
Senhor se refere em Mt X, 10 e Lc X, 7; porém, é na epístola (carta) aos
Hebreus que S. Paulo, para evitar posteriores distorções como as que os pastores
e intérpretes da Bíblia fariam,
ensinará de modo infalível (portanto, dogmático): “E certamente os que dentre
os filhos de Levi receberam o sacerdócio, têm ordem segundo a lei de
receber os dízimos do povo, isto é, de seus irmãos, ainda que eles tenham saído
também do sangue de Abraão” (VII, 5).
Quem eram “os filhos de Levi”? Membros de uma
das doze tribos de Israel oriunda de Levi, um dos doze filhos de Jacó, filho de
Isaac e neto de Abraão[3].
Esta tribo, que passou a ser denominada como a dos Levitas foi escolhida
e consagrada para ser uma tribo de sacerdotes. Dela saiu Aarão, irmão de Moisés
e tantos personagens cuja função, entre outras, era a de receber o dízimo para
os serviços do templo e necessidade do povo. Daí o Evangelho dizer que “... os
que recebiam a didracma” (Mt XVII, 23), ou seja, o dízimo ou tributo para o
templo (não o salário para os operários), é que eram os responsáveis por
seu recolhimento. E o próprio Cristo deu o exemplo. Como
detalharemos melhor abaixo, somente a Igreja manteve nos altares de seus
templos o sacrifício pelas mãos dos sacerdotes legitimamente constituídos[4],
os únicos, portanto, que permaneceram com o direito de cobrar o dízimo. De onde
se conclui que:
a) todo dízimo cobrado por todas as seitas protestantes é antibíblico;
b) assim sendo, todo dízimo cobrado em seitas protestantes por pastores ou
qualquer outro auxiliar é fraudulento e perdulário;
c) assim sendo, nenhum pastor jamais
poderia cobrar o dízimo de nenhum membro em nenhuma seita, sendo esta fraude uma grave
ofensa a Deus, porque injusto e abusivo.
Algumas pessoas consideram ter retorno com o
dízimo pago em sua seita, que o cobra sob pretexto de manutenção do “templo”
(sem altar? sem sacerdote? sem sacrifício?) e das obras da
igreja. Havendo boa intenção por parte do membro poderia até se pensar em uma
recompensa divina, ainda que nos mostre o ditado que de boas intenções também o
inferno está cheio. Considerando a sabedoria popular, cabe a pergunta:
agradaria a Deus se, mesmo levados por boas intenções, estivéssemos em uma
igreja que não fosse a Sua, contribuindo com obras que não fossem as Suas,
confiando tais contribuições a homens que não fossem os Seus, tendo como
resultado final a promoção de heresias que a tantos conduzirão à desgraça
eterna[5]?
Não custa lembrar que “quem não é comigo, é contra mim; e quem não junta
comigo, desperdiça”[6].
Talvez seja penoso àqueles que há muito dedicam
sua vida ao erro e à heresia pensar estes assuntos, especialmente se já tiver
contribuído um bocado com obras
e obreiros, se já possuir um retorno material que pensem ser recompensa divina
ou se neste erro estiver familiares, parentes e amigos envolvidos. Tais
motivos, especialmente os últimos, ao contrário do que se imagina deveriam
apontar mais que urgente à porta da saída, como o demonstrou de forma exemplar
o cobrador de impostos Zaqueu[7], pois “... que
aproveita ao homem ganhar todo o mundo, se vier a perder a sua alma?” (Mt XVI,
26)[8].
Concluo com uma reflexão que além de refletir o
verdadeiro pensamento da Igreja reflete ainda o verdadeiro ensinamento de
Cristo. Ela vem de um papa que foi santo, recolhida por um monge que também o
foi. Ao comentar o Evangelho de S. Lucas em seu décimo capítulo, versos de 5 a
12, que toca diretamente a este tema, São Gregório Magno (540-604), recolhido
por S. Tomás de Aquino (1225?-1274), ensina:
Os alimentos que sustentam
o obreiro são já uma parte de seu salário, de sorte que aqui se inicie a graça
do trabalho da pregação, que se completa ali com a visão da verdade. No que deve
considerar-se que se oferecem dois prêmios a nosso trabalho: um nesta vida,
que nos sustenta no trabalho; outro na pátria, que nos remunera na ressurreição.
A recompensa que nesta vida se recebe deve alentar-nos para merecer com mais
segurança a outra. O verdadeiro pregador não deve pregar com o fim de receber a
recompensa desta vida, mas receber recompensa para poder pregar. Todo o que prega somente com o fim do louvor
ou da recompensa deste mundo, se priva da do céu. (San Gregorio in Evang.
hom. 17. Catena Áurea –
http://hjg.com.ar/catena/c0.html)[9]
†
Apresentação do livroIntrodução do livro
[1] https://www.mixcloud.com/carlos-ramalhete/programa-antigo-porque-pastores-protestantes-n%C3%A3o-t%C3%AAm-o-direito-de-cobrar-o-d%C3%ADzimo-pela-b%C3%ADblia/.
Este novo link, ao contrário, do anterior, é o oficial, e nos foi gentilmente
fornecido pelo autor, o prof. Carlos Ramalhete após conhecimento desta
publicação, pelo qual sou grato. No ensejo, comunico, por indicação do mesmo, o
link de outros áudios do prof. Ramalhete para os leitores: https://www.mixcloud.com/carlos-ramalhete/, também
encontrados na página web www.carlosramalhete.com.br.
[2] Como exposto
no capítulo anterior.
[3] Gên XXXII,
28.
[4] Ramalhete nos
recorda que os próprios judeus não podendo mais realizar os seus sacrifícios
devido a destruição do segundo e último templo (70 d.C), nunca mais cobraram o
dízimo, mesmo mantendo as Sinagogas e a instrução do povo (pregação); o que se
verifica também pela ocasião da destruição do primeiro (cf. Sal L, 20s e Dan
III, 37s).
[5] Cf. Lc XIII, 23-28.
[6] Mt XII, 30.
[7] Cf. Lc XIX, 1-10.
[8] A este
propósito, esclarecedora a revelação feita por Jesus à Santa Brígida (As Profecias e Revelações de Santa Brígida
da Suécia), reconhecida pelo beato papa Pio IX. Nelas, Cristo explica que
por justiça e misericórdia permite que muitos dos condenados possuam nesta vida
bens materiais, poder e status, que apesar de aparentar bênçãos não passam de
bondade divina, pois Ele sabe que por toda a eternidade padecerão sofrimentos
inimagináveis no inferno. Não afirmo com isso que todos os protestantes se
encaixem nesta revelação, mas há que examinar as consciências, especialmente à
luz das Escrituras que dizem: “... E, ainda que distribuísse todos os meus bens
para sustento dos pobres, e entregasse o meu corpo para ser queimado, se não
tivesse caridade, nada (disto) me aproveitaria” (1 Cor XIII,
1ss), lembrando, como bem observou recentemente Bento XVI, que a Caridade só se
dá na Verdade.
[9] “Catena
áurea” era uma compilação feita na Idade Média de escritos de Padres da Igreja
(Patrística) quando estes expunham suas interpretações sobre os Evangelhos em
forma de comentários. Através destes escritos a Igreja foi definindo sua
doutrina, ao contrapor o que um e outro escreviam, verificar se não havia
contradições com as Sagradas Escrituras ou entre si. Alguns homens e mulheres
receberam o título de Doutor(a) da Igreja após sua obra ser exaustivamente
estudada e se verificar não conter erros contra a Fé, podendo assim ser
ensinada a toda a Igreja. Aqui temos dois exemplos de doutores. Juntos somam
hoje 35, dos quais S. Tomás é considerado o maior. A mais famosa “Catena” foi a
que ele compilou (séc. XIII), e de onde foi retirado o trecho acima (trad.
livre).
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