Airton Vieira
(tonvi68@gmail.com)
Às vezes me ocorria escrever sobre os
médicos e a medicina, mui provável porque tivesse um pai e irmãos que optaram
por esta área do conhecimento humano, sendo eu e minha mãe os únicos a sair
pela tangente.
Também provável porque alguns médicos e
pessoas ligadas à área tivessem marcado singularmente esta minha cinquentenária
existência. Como por exemplo no dia em que, aos 7 anos um enfermeiro tentava
pela 7ª vez dar “só mais uma picadinha” na tentativa de colher alguns
mililitros de meu sangue infantil a fim de submeter-me à minha primeira
cirurgia. Ao ouvir o meu rotundo “não, chega!” foi obrigado a chamar meu pai,
que na primeira picada abriu caminho para o vital líquido, deixando seu filho,
além de aliviado um pouco mais admirador seu. Ou quando, adolescente,
apaixonei-me pela enfermeira que dispensava-me – como a todos os pacientes – a
atenção devida ao recém acidentado. Ou ainda o médico graças ao qual pude ter
meu braço quebrado quase completamente recuperado devido uma técnica nova de
ortopedia que trazia para o lugar em que vivíamos, e que me apresentou um dia
sua pequena filha, a mesma cujos anos a transformariam numa dessas reconhecidas
atrizes nacionais.
Médicos, enfermeiros, auxiliares, faxineiros,
copeiros, cozinheiros, seguranças, motoristas, que foram passando e deixando
suas marcas, boas ou nem tanto assim...
Mas hoje, dia do médico porque dia de S.
Lucas Evangelista, médico “de corpos e de almas”, ocorreu-me, após 13 anos da
partida de meu médico pai por negligência médica, tomar das Escrituras minha também
homenagem a estas pessoas singulares. E, penso, nada melhor que tomar das Escrituras
para fazê-lo. O farei ao modo de aprendiz de exegeta, ou exegeta amador, o que
dá no mesmo, deixando claro que à Igreja a última palavra, sempre.
O Bastão de Asclépio
Gostaria de começar por uma pequena
observação ligada ao símbolo da medicina, que por sua vez interliga-se à
mitologia grega, mas que remonta à Mesopotâmia antiga. Dele, bastará somente o
fato de ter relação com as Escrituras. O símbolo-imagem do Bastão de Asclépio [do grego. Do latim: Esculápio. Semi-deus da
medicina, “contemporâneo” de Moisés] é o mesmo da imagem-símbolo da serpente de bronze hebraica (cf. Num
XXI, 4-9), confeccionada, diga-se de passagem, a mando de Deus, não para a
perdição, mas para a cura. E fiquemos por aqui sugerindo a leitura do mito
greco-mesopotâmico, que não deixa de produzir interessantes similitudes com a nossa
simbologia judaico-cristã.
O Eclesiástico
Dos livros sapienciais um se destaca
pela profusão de temas que aborda, e que inclui o aqui escolhido: este é o
Eclesiástico. Dele extrairei os versículos abaixo, comentando-os por partes, em
uma poética divagação experimental se me permitem os leitores. Trata-se do
capítulo XXXVIII em seus versículos de 1 a 15, e que começa assim:
Honra
o médico, porque êle é necessário; porque o Altíssimo é quem o criou. Porque
tôda a medicina vem de Deus...
A figura do médico, à semelhança da
figura da mãe, reflete de modo especial os atributos divinos, o que em
consequência acarreta maior responsabilidade. A Queda Original, como se dirá
mais abaixo, foi um adoecer-se, mais, foi um entrar em contato com a até então
desconhecida doença que levaria a até então impensável morte. Como Deus, Ser
por excelência e Bondade absoluta, não poderia criar nada mau, ao optar o homem
por ele oferece-lhe, após o justo castigo, o remédio, lançando as bases à
futura arte médica. No tempo, esta atitude divina será espelhada nas figuras
paterna, que aplica a justa vara após o delito filial, seguida da materna, que
vem com a salmoura mostrando assim ao desobediente filho que tal castigo
corresponde ao verdadeiro amor, que prefere ver o ser amado castigado temporariamente
que eternamente.
...
e receberá donativos do rei. A ciência do médico exaltará a sua cabeça, e será
louvado na presença dos grandes...
Diz as gentes: “Tendo saúde o resto a
gente leva”. Infelizmente muitos médicos hodiernos são muitas vezes como o
elefante: não sabem a [força da] dignidade que tem. Ao se mercantilizar, esquecem-se
de sua característica mais nobre, que é a de conferir a cura. Mesmo um
governante qualquer se lhe é retirada a saúde não lhe resta muita coisa. Os
grandes do mundo podem sucumbir a um resfriado. Ao ter em suas mãos, mas como
dom, a capacidade de voltar a fazer sorrir devolvendo um andar, um acenar, um
sentar-se ou um levantar, uma respiração ou um sono, sua dignidade cobra outro
sentido, que bem material, status ou poder algum paga. Daí que muitos ao se
tornarem políticos passam a matar duplamente: pela ausência nos hospitais e
pela presença nas clínicas de corrupção. Desaprendendo a operar corpos ao tempo
em que aprende a operar transações ilícitas.
O
Altíssimo é quem produziu da terra os medicamentos, e o homem prudente não terá
repugnância por eles... Ao conhecimento dos homens pertence a virtude dos
medicamentos, e o Altíssimo deu aos homens a ciência, para ser por êles honrado
nas suas maravilhas. Com êles cura e mitiga a dor, e o farmacêutico faz
composições agradáveis, e compõe ungüentos saudáveis, e diversifica o seu
trabalho de mil maneiras.
Aqui, uma lembrança: a de que todo dom é
um presente. Triste por isso de quem o sobrepõe ao doador. Que passa a
desconhecer que seu dom, sua arte, seu talento, bem como a medicação que
receita não parte de si, assim tornando o médico que é em um assassino
potencial ou real; o remédio que receita, veneno, invertendo o exemplo da
serpente-símbolo; e que cria enfermidades para vender remédios e enriquecer
indústrias. Não reconhecendo o Autor da medicina acaba por adorar a ídolos
médicos, farmacêuticos, terapêuticos, curandeiros, inventando alternativas às
deixadas por Quem sabe o que fez, e o que criou. Com isso desonra-se o médico
Criador para honrar o médico criatura, que passa a se guiar pelo sibilar da
Serpente crendo-se, também ele, um deus por ter provado do fruto proibido.
Porque
a paz de Deus estende-se sôbre a face da terra.
Limito-me na percepção de que a frase
aparentemente dissonante do restante do período acaba por fazer uma espécie de
elo de ligação entre dois estados, um corpóreo outro incorpóreo: a saúde e a
paz. O Céu é isto: perfeita e infinita paz no gozo da plena e ininterrupta
saúde.
Filho,
não te descuides de ti mesmo na tua enfermidade, mas faze oração ao Senhor, e
êle te curará. Aparta-te do pecado, e endireita as tuas ações, e purifica o teu
coração de todo o delito. Oferece um (incenso de) cheiro suave, e flor de farinha em memória, e seja
generoso o teu sacrifício; e (depois disto) dá lugar ao médico; pois, para isso é que o Senhor o
estabeleceu.
Aqui há mistério também olvidado por
nossa sociedade consumidora de Harry Poters, ayahuascas e galinha preta de
encruzilhada. Graças a uma enxurrada de slogans como bem-estar, qualidade de
vida e carpe diem, de um bom tempo
para cá vimos esquecendo o óbvio: que toda enfermidade é oriunda da Queda
Original. Não por acaso enfermos (= infirmus, sem firmeza, desprovido de
força) passamos a ser todos nós a partir da Queda dos primeiros pais. Toda
queda, por definição, é algo que lança seu objeto a um locus inferior (= inferus,
infernus: lugares baixos); assim,
todo enfermo contrai a marca registrada da queda, seja de imunidade ou do estado
de sanidade. Jesus Cristo bem o demonstrou nos célebres exemplos do coxo
baixado pelo telhado (cf. Mt IX, 1-7) e da hemorroíssa (cf. Mc V, 25-34). Daí
que diga o Eclesiástico que o mal físico [material] está subordinado ao
espiritual, sendo o médico tão somente instrumento e espelho do Médico divino.
Não raro encontramos os que desejam
ouvir: “toma o teu leito e anda”, mas não “os teus pecados te estão perdoados”,
preferindo o prozac ou a dipirona no lugar do ego te absolvo peccatis tuis. O que quero dizer é que a preocupação
sempre recai sobre o corpo em detrimento do espírito. Se esquece que o mundo
está rico de pobres e miseráveis doentes, os mais abastados, belos e vistosos
de aparência. Se esquece ainda que não bastará ter saúde, bem-estar ou qualidade
de vida, se pelo ralo lançamos a Água Viva. Tantos médicos vivem hoje de seus
medicamentos, e nem sempre lícitos... De onde o grande desafio, como já
apontava um Papa recentemente, não ser nem tanto o da economia, das finanças,
da saúde, educação ou moradia, mas o da moral. A corrupção é resultado de uma
moral em baixa, em estado terminal, onde todo o resto segue o mar de lama que
como tsunami arrasta o que tiver pela frente.
Mas se o Senhor estabeleceu o médico
como instrumento de vida, aqui chegamos a um ponto crucial, em que o termômetro
já aponta que se passou dos 40º e sendo assim nossa paciente sociedade não
resistirá muito mais, posto estar já em metástase. É que não poucos médicos
retiraram já suas luvas. Abandonando Hipócrates se lançaram à hipocrisia mais
nefasta. Já não olham mais à serpente do madeiro para curar(-se), mas a do Éden
para matar(-se). Me refiro simplesmente ao assassinato de inocentes, cujo
eufemismo transformou em interrupção desejada da gravidez, que se existe em
grande parte só existe por causa de médicos que ou assassinam ou simplesmente lavam
as mãos, como o assassino do Inocente. É quando já chegamos à mais baixa,
crônica e aguda das enfermidades, a do espírito e da alma.
E
não se aparte de ti, porque te é necessária a sua assistência. Virá tempo em
que cairás nas mãos dêles. E êles mesmos rogarão ao Senhor que envie por meio
dêles o alívio e a saúde, em atenção à sua vida santa.
Hoje poderíamos seguir as Escrituras sem
algum receio de cair nas mãos dos médicos? Somente sendo a nossa fé minimamente
sã. Mas ainda aqui valeria o que sempre valeu desde que o homem é homem [e a
mulher, mulher; não para afrontar o plural genérico, mas dar ênfase à realidade
objetiva hoje tão subjetivada]: “... vai, e não peques mais”. Não que seja
garantia de saúde física o buscar a santidade, mas é garantia de salvação,
coisa de que o médico também participa, especialmente se souber honrar a Deus
em suas maravilhas.
Aquêle que peca na presença de quem o criou, virá a
cair nas mãos do médico.”
Por fim, lembra o Eclesiástico que o
médico pode tornar-se tanto instrumento de castigo quanto de benefício. De toda
forma se existe, existe como consequência, e consequência do pecado do homem.
Se não houvesse o último não haveria o primeiro. Daí a dualidade de sua
significação tão bem representada na serpente [animal], que de seu veneno
proporciona a cura. Da Serpente [espiritual] podemos dizer o mesmo, pois o
Médico dos médicos também sabe dela fazer uso para curar-nos, extraindo dela o
seu veneno tornando-o remédio.
Assim que meu objetivo foi o de dar
graças ao Médico supremo por mais esta demonstração de amor e piedade às suas
enfermas criaturas humanas: a criação de pares dotados do dom de curar. Os anjos
decaídos não tiveram esta sorte, ainda que dela não fazemos muitas vezes bom
uso.
Que São Lucas Evangelista interceda por
todos os médicos e mesmo todos os que se dedicam à área médica, para que seu
labor seja o fiel reflexo do amor divino, cuja devolução da saúde visa uma saúde
maior, que não acaba.
Em tempo: Dos 10 leprosos curados
somente um voltou para agradecer. Qual deles somos?
AV
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