sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Saúde

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Airton Vieira
(tonvi68@gmail.com)


Às vezes me ocorria escrever sobre os médicos e a medicina, mui provável porque tivesse um pai e irmãos que optaram por esta área do conhecimento humano, sendo eu e minha mãe os únicos a sair pela tangente.

Também provável porque alguns médicos e pessoas ligadas à área tivessem marcado singularmente esta minha cinquentenária existência. Como por exemplo no dia em que, aos 7 anos um enfermeiro tentava pela 7ª vez dar “só mais uma picadinha” na tentativa de colher alguns mililitros de meu sangue infantil a fim de submeter-me à minha primeira cirurgia. Ao ouvir o meu rotundo “não, chega!” foi obrigado a chamar meu pai, que na primeira picada abriu caminho para o vital líquido, deixando seu filho, além de aliviado um pouco mais admirador seu. Ou quando, adolescente, apaixonei-me pela enfermeira que dispensava-me – como a todos os pacientes – a atenção devida ao recém acidentado. Ou ainda o médico graças ao qual pude ter meu braço quebrado quase completamente recuperado devido uma técnica nova de ortopedia que trazia para o lugar em que vivíamos, e que me apresentou um dia sua pequena filha, a mesma cujos anos a transformariam numa dessas reconhecidas atrizes nacionais.

Médicos, enfermeiros, auxiliares, faxineiros, copeiros, cozinheiros, seguranças, motoristas, que foram passando e deixando suas marcas, boas ou nem tanto assim...

Mas hoje, dia do médico porque dia de S. Lucas Evangelista, médico “de corpos e de almas”, ocorreu-me, após 13 anos da partida de meu médico pai por negligência médica, tomar das Escrituras minha também homenagem a estas pessoas singulares. E, penso, nada melhor que tomar das Escrituras para fazê-lo. O farei ao modo de aprendiz de exegeta, ou exegeta amador, o que dá no mesmo, deixando claro que à Igreja a última palavra, sempre.


O Bastão de Asclépio

Gostaria de começar por uma pequena observação ligada ao símbolo da medicina, que por sua vez interliga-se à mitologia grega, mas que remonta à Mesopotâmia antiga. Dele, bastará somente o fato de ter relação com as Escrituras. O símbolo-imagem do Bastão de Asclépio [do grego. Do latim: Esculápio. Semi-deus da medicina, “contemporâneo” de Moisés] é o mesmo da imagem-símbolo da serpente de bronze hebraica (cf. Num XXI, 4-9), confeccionada, diga-se de passagem, a mando de Deus, não para a perdição, mas para a cura. E fiquemos por aqui sugerindo a leitura do mito greco-mesopotâmico, que não deixa de produzir interessantes similitudes com a nossa simbologia judaico-cristã.

O Eclesiástico

Dos livros sapienciais um se destaca pela profusão de temas que aborda, e que inclui o aqui escolhido: este é o Eclesiástico. Dele extrairei os versículos abaixo, comentando-os por partes, em uma poética divagação experimental se me permitem os leitores. Trata-se do capítulo XXXVIII em seus versículos de 1 a 15, e que começa assim:

Honra o médico, porque êle é necessário; porque o Altíssimo é quem o criou. Porque tôda a medicina vem de Deus...

A figura do médico, à semelhança da figura da mãe, reflete de modo especial os atributos divinos, o que em consequência acarreta maior responsabilidade. A Queda Original, como se dirá mais abaixo, foi um adoecer-se, mais, foi um entrar em contato com a até então desconhecida doença que levaria a até então impensável morte. Como Deus, Ser por excelência e Bondade absoluta, não poderia criar nada mau, ao optar o homem por ele oferece-lhe, após o justo castigo, o remédio, lançando as bases à futura arte médica. No tempo, esta atitude divina será espelhada nas figuras paterna, que aplica a justa vara após o delito filial, seguida da materna, que vem com a salmoura mostrando assim ao desobediente filho que tal castigo corresponde ao verdadeiro amor, que prefere ver o ser amado castigado temporariamente que eternamente.

... e receberá donativos do rei. A ciência do médico exaltará a sua cabeça, e será louvado na presença dos grandes...

Diz as gentes: “Tendo saúde o resto a gente leva”. Infelizmente muitos médicos hodiernos são muitas vezes como o elefante: não sabem a [força da] dignidade que tem. Ao se mercantilizar, esquecem-se de sua característica mais nobre, que é a de conferir a cura. Mesmo um governante qualquer se lhe é retirada a saúde não lhe resta muita coisa. Os grandes do mundo podem sucumbir a um resfriado. Ao ter em suas mãos, mas como dom, a capacidade de voltar a fazer sorrir devolvendo um andar, um acenar, um sentar-se ou um levantar, uma respiração ou um sono, sua dignidade cobra outro sentido, que bem material, status ou poder algum paga. Daí que muitos ao se tornarem políticos passam a matar duplamente: pela ausência nos hospitais e pela presença nas clínicas de corrupção. Desaprendendo a operar corpos ao tempo em que aprende a operar transações ilícitas.

O Altíssimo é quem produziu da terra os medicamentos, e o homem prudente não terá repugnância por eles... Ao conhecimento dos homens pertence a virtude dos medicamentos, e o Altíssimo deu aos homens a ciência, para ser por êles honrado nas suas maravilhas. Com êles cura e mitiga a dor, e o farmacêutico faz composições agradáveis, e compõe ungüentos saudáveis, e diversifica o seu trabalho de mil maneiras.

Aqui, uma lembrança: a de que todo dom é um presente. Triste por isso de quem o sobrepõe ao doador. Que passa a desconhecer que seu dom, sua arte, seu talento, bem como a medicação que receita não parte de si, assim tornando o médico que é em um assassino potencial ou real; o remédio que receita, veneno, invertendo o exemplo da serpente-símbolo; e que cria enfermidades para vender remédios e enriquecer indústrias. Não reconhecendo o Autor da medicina acaba por adorar a ídolos médicos, farmacêuticos, terapêuticos, curandeiros, inventando alternativas às deixadas por Quem sabe o que fez, e o que criou. Com isso desonra-se o médico Criador para honrar o médico criatura, que passa a se guiar pelo sibilar da Serpente crendo-se, também ele, um deus por ter provado do fruto proibido.

Porque a paz de Deus estende-se sôbre a face da terra.

Limito-me na percepção de que a frase aparentemente dissonante do restante do período acaba por fazer uma espécie de elo de ligação entre dois estados, um corpóreo outro incorpóreo: a saúde e a paz. O Céu é isto: perfeita e infinita paz no gozo da plena e ininterrupta saúde.

Filho, não te descuides de ti mesmo na tua enfermidade, mas faze oração ao Senhor, e êle te curará. Aparta-te do pecado, e endireita as tuas ações, e purifica o teu coração de todo o delito. Oferece um (incenso de) cheiro suave, e flor de farinha em memória, e seja generoso o teu sacrifício; e (depois disto) dá lugar ao médico; pois, para isso é que o Senhor o estabeleceu.

Aqui há mistério também olvidado por nossa sociedade consumidora de Harry Poters, ayahuascas e galinha preta de encruzilhada. Graças a uma enxurrada de slogans como bem-estar, qualidade de vida e carpe diem, de um bom tempo para cá vimos esquecendo o óbvio: que toda enfermidade é oriunda da Queda Original. Não por acaso enfermos (= infirmus, sem firmeza, desprovido de força) passamos a ser todos nós a partir da Queda dos primeiros pais. Toda queda, por definição, é algo que lança seu objeto a um locus inferior (= inferus, infernus: lugares baixos); assim, todo enfermo contrai a marca registrada da queda, seja de imunidade ou do estado de sanidade. Jesus Cristo bem o demonstrou nos célebres exemplos do coxo baixado pelo telhado (cf. Mt IX, 1-7) e da hemorroíssa (cf. Mc V, 25-34). Daí que diga o Eclesiástico que o mal físico [material] está subordinado ao espiritual, sendo o médico tão somente instrumento e espelho do Médico divino.

Não raro encontramos os que desejam ouvir: “toma o teu leito e anda”, mas não “os teus pecados te estão perdoados”, preferindo o prozac ou a dipirona no lugar do ego te absolvo peccatis tuis. O que quero dizer é que a preocupação sempre recai sobre o corpo em detrimento do espírito. Se esquece que o mundo está rico de pobres e miseráveis doentes, os mais abastados, belos e vistosos de aparência. Se esquece ainda que não bastará ter saúde, bem-estar ou qualidade de vida, se pelo ralo lançamos a Água Viva. Tantos médicos vivem hoje de seus medicamentos, e nem sempre lícitos... De onde o grande desafio, como já apontava um Papa recentemente, não ser nem tanto o da economia, das finanças, da saúde, educação ou moradia, mas o da moral. A corrupção é resultado de uma moral em baixa, em estado terminal, onde todo o resto segue o mar de lama que como tsunami arrasta o que tiver pela frente.

Mas se o Senhor estabeleceu o médico como instrumento de vida, aqui chegamos a um ponto crucial, em que o termômetro já aponta que se passou dos 40º e sendo assim nossa paciente sociedade não resistirá muito mais, posto estar já em metástase. É que não poucos médicos retiraram já suas luvas. Abandonando Hipócrates se lançaram à hipocrisia mais nefasta. Já não olham mais à serpente do madeiro para curar(-se), mas a do Éden para matar(-se). Me refiro simplesmente ao assassinato de inocentes, cujo eufemismo transformou em interrupção desejada da gravidez, que se existe em grande parte só existe por causa de médicos que ou assassinam ou simplesmente lavam as mãos, como o assassino do Inocente. É quando já chegamos à mais baixa, crônica e aguda das enfermidades, a do espírito e da alma.

E não se aparte de ti, porque te é necessária a sua assistência. Virá tempo em que cairás nas mãos dêles. E êles mesmos rogarão ao Senhor que envie por meio dêles o alívio e a saúde, em atenção à sua vida santa.

Hoje poderíamos seguir as Escrituras sem algum receio de cair nas mãos dos médicos? Somente sendo a nossa fé minimamente sã. Mas ainda aqui valeria o que sempre valeu desde que o homem é homem [e a mulher, mulher; não para afrontar o plural genérico, mas dar ênfase à realidade objetiva hoje tão subjetivada]: “... vai, e não peques mais”. Não que seja garantia de saúde física o buscar a santidade, mas é garantia de salvação, coisa de que o médico também participa, especialmente se souber honrar a Deus em suas maravilhas.

Aquêle que peca na presença de quem o criou, virá a cair nas mãos do médico.”

Por fim, lembra o Eclesiástico que o médico pode tornar-se tanto instrumento de castigo quanto de benefício. De toda forma se existe, existe como consequência, e consequência do pecado do homem. Se não houvesse o último não haveria o primeiro. Daí a dualidade de sua significação tão bem representada na serpente [animal], que de seu veneno proporciona a cura. Da Serpente [espiritual] podemos dizer o mesmo, pois o Médico dos médicos também sabe dela fazer uso para curar-nos, extraindo dela o seu veneno tornando-o remédio.

Assim que meu objetivo foi o de dar graças ao Médico supremo por mais esta demonstração de amor e piedade às suas enfermas criaturas humanas: a criação de pares dotados do dom de curar. Os anjos decaídos não tiveram esta sorte, ainda que dela não fazemos muitas vezes bom uso.

Que São Lucas Evangelista interceda por todos os médicos e mesmo todos os que se dedicam à área médica, para que seu labor seja o fiel reflexo do amor divino, cuja devolução da saúde visa uma saúde maior, que não acaba.

Em tempo: Dos 10 leprosos curados somente um voltou para agradecer. Qual deles somos?

AV

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