Tradução de Airton Vieira – Os quatro cardeais jamais estiveram sós com suas
"dubia".
A prova disto é o que sucedeu em Roma no sábado 22 de abril em uma sala do
Hotel Columbus, a poucos metros da praça São Pedro, onde se reuniram seis renomados eruditos leigos de outros
tantos países do mundo para dar voz ao chamado que se eleva de grande parte do
"povo de Deus", para que seja lançada luz sobre a confusão suscitada
por "Amoris laetitia".
Anna M.
Silvas chegou da Austrália, Claudio Pierantoni do Chile, Jürgen Liminski da Alemanha,
Douglas Farrow do Canadá, Jean Paul Messina de Camarões e Thibaud Collin da
França. Um após o outro no lapso de um dia, fizeram um balanço da crise que produziu
na Igreja o documento do papa Francisco, a um ano de sua publicação.
Settimo
Cielo oferece a seus leitores os textos íntegros das seis intervenções, nos idiomas
em que foram pronunciados. Mas requer uma atenção especial o de Claudio
Pierantoni, estudioso de patrologia e docente de filosofia medieval na
Universidade do Chile, em Santiago, do qual mais abaixo se oferece uma síntese.
Pierantoni
retoma os casos de dois Papas caídos no erro nos primeiros séculos cristãos, no
plano das controvérsias trinitárias e cristológicas, um condenado “post mortem”
por um concílio ecumênico e o outro induzido a corrigir-se em vida.
Mas também
hoje – argumenta – há um Papa que é “vítima”, ainda que “pouco consciente”, de uma
tendência herética que socava os fundamentos da fé da Igreja. E também ele está
necessitado de uma correção caritativa que o reconduza ao caminho da verdade.
Pierantoni
não é o único, dos seis, que tem lembrado as lições do passado, antigo e recente.
Thibaud
Collin, docente de filosofia moral e política no Colégio Stanislas, de Paris, recordou
como exemplo a oposição de numerosos teólogos e episcopados inteiros à encíclica
“Humanae vitae”, de Paulo VI, rebaixada a puro “ideal” e com isso convertida em
inoperante. E mostrou como esta deletéria “lógica” pastoral se pôs de novo no
auge com "Amoris laetitia", no que se refere ao matrimônio indissolúvel
e imediatamente também a respeito das relações homossexuais.
Anna M.
Silvas, australiana de rito oriental, estudiosa dos Padres da Igreja e docente
na Universidade de Nova Inglaterra, sublinhou por sua parte o perigo que a
Igreja Católica avance também ela pelo caminho já recorrido séculos atrás pelos
protestantes e pelos ortodoxos rumo ao divórcio e as segundas núpcias:
justamente agora – agregou surpreendentemente – que a Igreja copta está se orientando
rumo a indissolubilidade sem exceções do matrimônio cristão.
Sobre uma resposta do papa
Francisco às "dubia", assim como também a uma eventual “correção”
sua, Anna M. Silvas se mostrou cética. Propõe melhor uma “opção Bento” para a atual era pós-cristã, inspirada no monarquismo
nos tempos do colapso da idade antiga, um humilde e comunitário “habitar” em Jesus
e o Pai (Jo 14, 23) em confiada espera, feita de oração e trabalho, até que cesse
a tempestade que hoje transtorna o mundo e a Igreja.
Seis vozes,
seis leituras diferentes. Todas profundas e nutridas de "caritas in
veritate". Quem sabe se o Papa, ao menos, os escutará.
A NECESSÁRIA COERÊNCIA DO MAGISTÉRIO
COM A TRADIÇÃO. OS EXEMPLOS DA HISTÓRIA
por Claudio Pierantoni
Nesta
intervenção examinaremos primeiro e em forma breve a história de dois Papas da antiguidade,
Libério e Honório, quem por diferentes motivos foram acusados de desviar-se da Tradição
da Igreja, durante a longa controvérsia trinitária e cristológica que
comprometeu a Igreja do século IV ao século VII.
À luz das
reações do corpo eclesial frente a estes desvios doutrinais, examinaremos em
seguida o debate atual que tem se desenvolvido em torno das propostas do papa
Francisco na exortação apostólica “Amoris laetitia” e das cinco “dubia” propostas
pelos quatro cardeais.
1. O caso de Honório
Honório I
foi o único Papa formalmente condenado por heresia. Estamos nas primeiras
décadas do século VII, no contexto da controvérsia sobre as duas vontades de
Cristo. Honório sustentava a doutrina da única vontade de Cristo, o
“monotelismo”, a qual foi declarada posteriormente em contradição com o dogma
das duas naturezas, a divina e a humana, doutrina solidamente fundamentada
sobre a base da revelação bíblica e solenemente sancionada no ano 451 pelo Concílio
de Calcedônia.
Aqui apresentamos
o texto com o qual, em 681, logo após sua morte, o sexto concílio ecumênico, o
Terceiro Concílio de Constantinopla, o condenou junto com o patriarca Sérgio:
“Examinadas as cartas dogmáticas
escritas por Sérgio, em seu momento patriarca desta cidade imperial,… e a carta
com a que Honório respondeu a Sérgio, e constatado que não são conformes os ensinamentos
apostólicos e as definições dos santos Concílios e de todos os ilustres santos
Padres, que pelo contrário seguem as falsas doutrinas dos hereges, as rejeitamos
e as condenamos como corruptas”.
2. O caso de Libério
Libério,
pelo contrário, foi Papa em um dos momentos mais delicados da controvérsia
ariana, a metade do século IV. Seu predecessor, Júlio I, havia defendido
tenazmente a fé estabelecida pelo Concílio de Niceia, do ano 325, que declarou
o Filho consubstancial ao Pai. Mas Constâncio, imperador do Oriente, apoiou a posição
majoritária dos bispos orientais, contrários a Niceia, que segundo eles não deixava
espaço para a diferença pessoal entre o Pai e o Filho. Fez raptar, depor e
enviar ao exílio, na Tracia, o Papa, quem depois de quase um ano terminou por
ceder.
Deste
modo Libério renegou a fé de Niceia e chegou a excomungar a Atanásio, seu mais
significativo defensor. Agora dócil ao imperador, Libério obteve a permissão de
voltar a Roma, onde foi restabelecido como bispo. Nos meses que seguiram, todos
os prelados filo-arianos que haviam feito carreira graças ao favor de Constâncio
consolidaram seu poder nas principais sedes episcopais. Este é o momento no
que, segundo a famosa frase de são Jerônimo, “o mundo se lamentou de ter-se
convertido em ariano”. Dos mais de mil bispos que contava o cristianismo,
somente três se mantiveram irredutíveis no exílio: Atanásio, de Alexandria; Hilário,
de Poitiers, e Lúcifer, de Cagliari.
Mas Constâncio
morreu imprevistamente, no ano 361, e subiu ao trono imperial Juliano, logo
chamado o Apóstata, quem impôs o retorno do Estado romano ao paganismo,
cancelou de um golpe toda a política eclesiástica de Constâncio e permitiu aos
bispos exilados retornar à pátria. Livre de ameaças, o papa Libério enviou uma
encíclica que declarava inválida a fórmula aprovada por ele anteriormente e exigia
dos bispos da Itália a aceitação do Credo de Niceia. No ano 366, em um sínodo
celebrado em Roma pouco antes de morrer, teve inclusive a alegria de obter a adesão
do Credo de Niceia por parte de uma delegação de bispos orientais. Apenas morreu
foi venerado como confessor da fé, mas rapidamente se interrompeu seu culto, por
causa da lembrança de sua defecção.
Apesar de
suas diferenças, os dois casos de Libério e de Honório têm em comum um
atenuante: é o fato que os respectivos desvios doutrinais tiveram lugar quando ainda
estava em curso o processo de fixação dos respectivos dogmas, o trinitário no
caso de Libério e o cristólogico no caso de Honório.
3. O caso de Francisco
Pelo contrário,
o desvio doutrinal que tem se verificado durante o pontificado atual tem um
agravante, porque não se contrapõe a doutrinas pouco claras ou em vias de fixação,
mas a doutrinas que, além de estar solidamente ancoradas na Tradição, também já
foram exaustivamente debatidas nas décadas passadas e esclarecidas detalhadamente
pelo magistério recente.
Com certeza,
o desvio doutrinal em questão já estava presente nas décadas passadas e com ela,
então, também o cisma subterrâneo que aquela significava. Mas quando se passa
de um abuso a nível prático a sua justificação a nível doutrinal através de um
texto do magistério pontifício como “Amoris laetitia” e através de declarações
e ações positivas do mesmo pontífice, a situação muda radicalmente.
Vejamos,
em quatro pontos, o progresso desta destruição do depósito da fé.
Primeiro
Se o matrimônio
é indissolúvel, mas também em alguns casos se pode dar a comunhão aos
divorciados “recasados”, parece evidente que esta indissolubilidade já não é
considerada absoluta, mas somente uma regra geral que pode sofrer exceções.
Agora bem, isto, como explicou o
cardeal Carlo Caffarra, contradiz a natureza do sacramento do matrimônio, que não
é uma simples promessa, ainda que solene, feita diante de Deus, mas uma ação da
graça que atua ao nível propriamente ontológico. Em consequência, quando se diz
que o matrimônio é indissolúvel, não se enuncia simplesmente uma regra geral, como
que se diz que o matrimônio não pode dissolver-se ontologicamente, porque nele
está contido o signo e a realidade do matrimônio indissolúvel entre Deus e seu Povo,
entre Cristo e sua Igreja. Este matrimônio místico é justamente a finalidade de
todo o plano divino da criação e da redenção.
Segundo
O autor
de “Amoris laetitia” escolheu insistir, em sua argumentação, mais sobre o lado
subjetivo da ação moral. O sujeito, diz, poderia não estar em pecado mortal
porque, por distintos fatores, não é consciente que sua situação é um adultério.
Mas o que
em linhas gerais pode suceder sem mais, na utilização que faz disso “Amoris laetitia”
conduz, ao contrário, a uma contradição evidente. Em efeito, é claro que os tão
recomendados discernimento e acompanhamento das situações particulares
contrastam diretamente com o suposto que o sujeito permanece, indefinidamente,
inconsciente de sua situação.
Mas o
autor de “Amoris laetitia”, longe de perceber tal contradição, a impulsiona até
o ulterior absurdo de afirmar que um discernimento profundo pode levar o sujeito
a ter a segurança que sua situação, objetivamente contraria à lei divina, é
precisamente o que Deus quer dele.
Terceiro
Recorrer
ao anterior argumento, por sua vez, revela uma perigosa confusão que, além da doutrina
dos sacramentos, chega a menoscabar a noção mesma da lei divina, entendida como
fonte da lei natural e refletida nos Dez Mandamentos: lei dada ao homem e como
tal apta para regular seus comportamentos fundamentais, não limitados a circunstâncias
históricas particulares, mas fundamentados em sua mesma natureza, cujo autor é
precisamente Deus.
Em consequência,
supor que a lei natural pode suportar exceções é uma verdadeira e autêntica contradição,
é uma suposição que não compreende sua verdadeira essência e por isso a
confunde com a lei positiva. A presença desta grave confusão está confirmada pelo
ataque reiterado, presente em “Amoris laetitia”, contra os leguleios, os
presuntos “fariseus” hipócritas e duros de coração. Em efeito, este ataque
revela um mal-entendido completo da posição de Jesus a respeito da lei divina,
porque sua crítica ao comportamento farisaico se funda justamente sobre uma
clara distinção entre a lei positiva – os “preceitos dos homens” – aos que são
tão apegados os fariseus, e os Mandamentos fundamentais, que pelo contrário são
o primeiro requisito, irrenunciável, que Ele mesmo pede ao que aspira a ser seu
discípulo. Sobre a base deste equívoco se compreende o verdadeiro motivo pelo
qual, logo após haver insultado os fariseus, o Papa termina por alinhar-se de fato
com sua mesma posição a favor do divórcio, contra a posição de Jesus.
Mas indo ainda
mais a fundo, é importante observar que esta confusão desnaturaliza
profundamente a essência mesma do Evangelho e seu necessário arraigo na pessoa
de Cristo.
Quarto
Em efeito,
segundo o Evangelho, Cristo não é simplesmente um homem bom que veio ao mundo
para pregar uma mensagem de paz e justiça. Ele é antes que nada o Logos, o
Verbo que existia no princípio e que se encarna na plenitude dos tempos. É
significativo que Bento XVI, desde seu discurso "Pro eligendo romano
pontifice", tenha feito justamente do Logos a pedra angular de seu ensinamento,
não por casualidade combatida à morte pelo subjetivismo das teorias modernas.
Outrossim,
no âmbito desta filosofia subjetivista se justifica um dos postulados mais
apreciados pelo papa Francisco, segundo o qual “a realidade é superior à ideia”.
De fato, uma máxima como esta tem sentido somente em uma visão na qual não podem
existir ideias verdadeiras, que não só reflitam fielmente a realidade, senão
que possam também julgá-la e dirigi-la. Tomado em sua totalidade, o Evangelho
supõe esta estrutura metafísica e gnoseológica, na que a verdade é em primeiro
lugar adequação das coisas ao intelecto, e o intelecto é em primeiro lugar o
divino, justamente o Verbo divino.
Nesta atmosfera
se compreende como é possível que o diretor de "La Civiltà Cattolica"
afirme que é a pastoral, a praxe, a que deve guiar a doutrina e não ao contrário,
e que em teologia “dois mais dois podem ser cinco”. Se explica por que uma senhora
luterana pode receber a comunhão junto ao esposo católico: de fato, a praxe, a ação,
é a da Ceia do Senhor que eles têm em comum, enquanto que aquilo no que diferem
são somente “as interpretações, as explicações”, em síntese, simples conceitos.
Mas se explica também como, segundo o superior geral da Companhia de Jesus, o
Verbo encarnado não estaria em condições de pôr-se em contato com suas
criaturas através do meio elegido por ele mesmo, a Tradição apostólica: em efeito,
seria necessário saber que é o que tem dito verdadeiramente Jesus, mas não
podemos, diz, “desde o momento que não houve um gravador”.
Indo ainda
mais a fundo, nesta atmosfera, se explica em última instância como o Papa não pode
responder “sim” ou “não” às “dubia”. Se em efeito “a realidade é superior à ideia”,
então o homem não tem nem sequer necessidade de pensar com o princípio de não-contradição,
não tem necessidade de princípios que digam “isto sim e isto não” e nem sequer
deve obedecer a uma lei natural transcendente que não se identifica com a realidade
mesma. Em síntese, o homem não tem necessidade de uma doutrina, porque a realidade
histórica se basta a si mesma. É o "Weltgeist", o Espírito do Mundo.
4. Conclusão
O que
salta à vista na situação atual é justamente a deformação doutrinal de fundo
que, apesar de ser hábil para esquivar formulações diretamente heterodoxas,
manobra contudo em forma coerente para levar adiante um ataque não só contra os
dogmas particulares como a indissolubilidade do matrimônio e a objetividade da lei
moral, como diretamente contra o conceito mesmo da reta doutrina e, com isso,
da pessoa mesma de Cristo como Logos. A primeira vítima desta deformação doutrinal
é precisamente o Papa, que me atrevo a hipotetizar que é muito pouco consciente
dela, vítima de uma alienação generalizada e histórica da Tradição, em amplos
estratos do ensinamento teológico.
Nesta situação,
as "dubia", estas cinco perguntas apresentadas pelos quatro cardeais,
puseram o Papa em um beco sem saída. Se respondesse negando a Tradição e o magistério
de seus antecessores, passaria a estar também formalmente herege, então não pode
fazê-lo. Se, do contrário, respondesse em harmonia com o magistério anterior, entraria
em contradição com grande parte das ações doutrinalmente relevantes levadas a
cabo durante seu pontificado, por isso seria uma decisão deveras difícil. Elegeu
então o silêncio, porque humanamente a situação pode parecer sem saída. Mas não
obstante se estendem na Igreja a confusão e o cisma “de fato”.
À luz de
tudo isto, se torna então mais que nunca necessário um ulterior ato de valentia,
de verdade e de caridade, por parte dos cardeais, mas também dos bispos e ato
contínuo de todos os leigos qualificados que queiram aderir. Em uma situação
tão grave de perigo para a fé e de escândalo generalizado, não só é lícita como
diretamente obrigatória uma correção fraterna francamente dirigida a Pedro, por
seu bem e pelo de toda a Igreja.
Uma correção
fraterna não é nem um ato de hostilidade, nem uma falta de respeito, nem uma desobediência.
Não é outra coisa que uma declaração da verdade: "caritas in
veritate". Antes de ser Papa, o Papa é nosso irmão.
----------
O texto
íntegro da intervenção de Claudio Pierantoni:
E o de
Anna M. Silvas:
De Douglas Farrow:
De Thibaud Collin:
De Jürgen Liminski:
De Jean Paul Messina:
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Fonte:
http://magister.blogautore.espresso.repubblica.it/2017/04/22/despues-de-los-quatro-cardeais-falan-seis-leigos-quizas-al-menos-el-papa-los-escute/
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