Por Javier Paredes*
Se
Deus é o Senhor da História, como
afirma João Paulo II, não pode permitir que sua Mãe desentoe do curso da
História. Portanto suas aparições, além da finalidade religiosa, conterão
também um sentido histórico, porque nem Deus
nem a Virgem fazem coisas despropositadas ou vãs. Por esse motivo, quando
inicia a Idade Contemporânea com a Revolução Francesa (1789), a Virgem Maria,
como veremos, aparece de forma distinta de como fizera até então. Há dois
séculos tem baixado do Céu em múltiplas ocasiões, nem tanto para comunicar algo
a um vidente de modo particular, mas para utilizar esses videntes como
intermediários a fim de transmitir mensagens a todos seus filhos.
Em
algo tínhamos, nós seus filhos, estropiado, obrigando a Virgem a atuar de um
modo diferente de como havia feito até então. Sem dúvida, não são poucas as
vezes nas que os homens deram às costas a Deus
ao longo dos séculos. Mas durante a Revolução Francesa, a Filha Primogênita da
Igreja tornou prisioneiro o Papa Pio VI (1775-1799) e, sem respeitar sua dignidade
nem seus 81 anos, foi levado de Roma a França, onde chegou em estado tão deplorável
que faleceu em Valence-sur-Rhône em 29 de agosto de 1799. O clero da Igreja
Constitucional da França, que havia jurado a cismática Constituição Civil do
Clero, negou a Pio VI um enterro cristão. O prefeito da localidade escreveu no
registro de óbitos: “Faleceu o cidadão Braschi, que exercia a função de
pontífice”. E os jornais franceses deram a notícia com a manchete: “Pio VI e
último”.
Mas
a Igreja Católica é tão divina que segue em pé depois de mais de dois mil anos,
apesar das tentativas de destruí-la nestes vinte séculos. E de modo algum nos
surpreende o ódio contra os cristãos, se recordamos que o mesmo Jesus Cristo profetizou que o tanto que perseguiram
a Ele o fariam a seus seguidores.
Os
três tipos de perseguição contra os católicos
Na
tipologia persecutória ou martirial[1]
podem se distinguir três modelos diversos que, ainda que com diferente
eficácia, buscam eliminar da face da terra a Esposa de Cristo. Cada um desses
modelos não exclui necessariamente os outros dois. Ao longo do tempo vão
aparecendo sucessivamente, concentrando-se os três no que se conhece como Idade
Contemporânea, isto é, os anos que transcorrem da Revolução Francesa (1789) aos
nossos dias. Pois bem, ao meu juízo, esta situação de máximo perigo aos
cristãos em que hoje nos encontramos é a que anima a Virgem Maria, que é a Mãe
de Deus e Nossa Mãe, a intervir, a
cobrir-nos sob seu manto de um modo inusitado. Frente a quem se propôs a bloquear
o futuro verdadeiro da Vida Eterna, e reduzir toda nossa existência à pura
materialidade, proclamando o fim da Igreja Católica, a Virgem decide baixar do
Céu a desmenti-lo e a manifestar-se como Nossa Esperança. Suas aparições são,
em definitivo, sua luminosa resposta ao perigo que ameaça a Igreja, acossada
agora pela tríplice tipologia persecutória.
Assim,
no primeiro modelo os perseguidores ignoram que é a graça santificante o que mantém
viva a Igreja e não o número maior ou menor de cristãos. Em consequência pensam
que eliminando o maior número possível conseguirão acabar com a Igreja. Mas seu
erro de princípio explica que obtenham um resultado contrário ao de seus
objetivos, pois como já pôs de manifesto Tertuliano (160-225): “o sangue dos
mártires é semente de cristãos”. Neste modelo encaixam tanto as ações dos
imperadores romanos, como as perseguições comunistas do século XX[2].
O
segundo tipo de martírio apareceu durante a Revolução Francesa. Nesta ocasião
os perseguidores, alguns deles sacerdotes e bispos (porque, ainda que
renegados, são sacerdotes in aeternum), sabendo perfeitamente que o
catolicismo é uma religião sacramental, sabem que é através dos sacramentos que
circula a graça que produz a santidade. O historiador francês Jean de Viguerie,
em um excelente livro intitulado Cristianismo e Revolução, manifestou
como as medidas revolucionárias tinham por objetivo apartar os fiéis dos
sacramentos. E afirma em suas conclusões que esta perseguição sim que foi
eficaz, e o demonstra medindo a prática sacramental na França antes da
Revolução e depois de ser pacificado religiosamente o país após a concordata
assinada por Napoleão em 1802: o declínio é considerável. Se a Igreja se
manteve viva neste país foi porque a revolução também utilizou o primeiro
tipo de martírio, conseguindo que o sangue de milhares de católicos franceses
se convertesse em semente de cristãos, e porque muitos outros viveram a
religião católica na clandestinidade, se negando a participar nas cerimônias
cismáticas oficiadas pelos padres juramentados[3].
A
santidade de um mártir salta com facilidade o trâmite do juízo, mas ao resto
dos franceses penso que terão sido perguntados no juízo particular se
assistiram as missas clandestinas dos padres refratários ou preferiram
participar das cerimônias blasfemas da Deusa Razão, para não sair do sistema. E
por força há que reconhecer que os padres juramentados, que negaram a Pio VI um
enterro cristão e transformaram a liturgia em um culto civil, prolongam sua
influência até os dias de hoje, quando em defesa da espontaneidade, alguns pulam
as normas litúrgicas e celebram uns rituais que com toda propriedade podem ser
qualificados como cismáticos.
Paradoxalmente, certos atos litúrgicos
recomendados, como é o de comungar de joelhos na boca, às vezes há que fazê-los
hoje de modo clandestino.
O
terceiro tipo é o martírio da coerência. Agora já não importa tanto aos
perseguidores se vamos ou deixamos de ir à missa. E mais, se a paróquia em que
se celebra tem uns pedregulhos de uns quantos séculos; o sistema político pode
fazer até com que se financie a manutenção e limpeza do templo. Portanto, em
nosso juízo particular, aos cristãos do século XXI não será perguntado somente se
assistimos missa aos domingos e festas de guarda, além disso será pedido contas
também e especialmente do que
fizemos com esta sociedade dessacralizada. Porque, diferentemente de outras
épocas em que também havia obrigação de dar a face por Jesus Cristo na vida pública, na nossa é especialmente
necessário pelo fato de nossas instituições civis estar mais necessitadas de Deus, e porque além disso o magistério
nos recorda no Concílio Vaticano II que o próprio dos leigos é santificar as
estruturas temporais. E a tarefa não é simples, já que a coerência é
incompatível com a esquizofrenia moral, que farisaicamente pode aprovar o financiamento de templos,
colégios católicos e ONGs bem intencionadas, em troca de que não saiamos das
sacristias, para impedir assim que cristianizemos os parlamentos, a mídia,
as universidades, as fábricas, as diversões, os hospitais...
O
dramático deste terceiro modelo de perseguição é que os verdugos não se encontram
fora da Igreja, pois a coerência dos católicos que puseram na santidade o
objetivo de suas vidas põe em evidência não os ateus, nem os homens sem fé, nem
os “vermelhos”, nem os maçons, mas todos aqueles católicos tíbios e
esquizofrênicos que preferem o juízo dos homens ao de Deus. Esta perseguição que já começou é tão grave e tão
importante na história da Humanidade porque no dia que se generalize será o
último e claro sinal de que entramos nos últimos tempos anunciados no
Apocalipse, que precedem ao fim do mundo, sem que saibamos o tempo que
transcorrerá entre os últimos tempos e o fim do mundo.
Os
trovões e os relâmpagos ficam reservados para o fim do mundo, que – como disse
– virá precedido dos últimos tempos nos que terá lugar esta terceira
perseguição, já iniciada, em um ambiente
tão calmo e normal, que deste momento em diante haverá de estar mui apegado à Santíssima Virgem e à Caridade com os irmãos, porque do
contrário deslizaremos sem nos dar conta
e passaremos a engrossar as fileiras dos verdugos. Ademais, os que se mantiverem
fiéis à verdade serão tachados de radicais, fanáticos e fundamentalistas, como
já ocorre atualmente, mesmo que ainda não se apresente dita acusação com a
virulência e animosidade com que chegará no futuro[4].
O
modernismo
Nas
origens desta terceira perseguição, que converte a ajuda da Virgem como o único
recurso, se encontra o modernismo, que em resumo consiste em edificar a Igreja
utilizando como cimento o pecado contra o Espírito Santo, ao introduzir o
conceito de autonomia do homem no âmbito religioso. A proclamação da autonomia
do homem, reivindicada como um direito fundamental, exigia necessariamente a
negação da concepção do homem como criatura, dependente do Criador. Porque
segundo o peculiar conceito da Criação que têm os deístas do século XVIII,
havia que arrancar de Deus seu
clássico atributo de autêntico Criador, para conceder-lhe quando muito o ofício
de chefe de manutenção de um mundo de que não zela como deveria. A concepção de
homem como um ser autônomo que pode conferir a si mesmo suas próprias leis foi
a ideia nutrícia da ideologia liberal progressista, negando-lhe assim toda
possibilidade de transcendência. E ante semelhante proposta logicamente Pio IX
(1846-1878) saiu ao passo condenando o liberalismo.
As
distintas tendências modernistas podem ser definidas como um novo intento
gnóstico que trata de substituir os fundamentos doutrinais sobre os que o seu
Fundador edificou a Igreja, em um afã de deslocar a fé e a Revelação como base
do fato religioso e colocar em seu lugar os critérios do racionalismo e da
ciência positivista. Em suma, o modernismo subordina a fé ao que os modernistas
denominam “formulações dos tempos modernos”, que por ser opostas à fé acabam
modificando o depósito legado por Cristo.
O
círculo dos modernistas foi muito reduzido, realmente eram muito poucos e
estavam bem localizados. Todos eles eram clérigos entre os que se destacavam o
sacerdote Alfred Fermin Loisy (1857-1940) na França, o jesuíta George Tyrrel
(1861-1909) na Inglaterra, o professor do seminário romano Ernesto Buonaiuti
(1881-1946) e o sacerdote italiano Romolo Murri (1870-1944). Não obstante serem
tão poucas as cabeças mais destacadas, ainda assim influíram sob os católicos,
e isso em primeiro lugar por sua condição de clérigos de quem dependem muitas
almas e, além disso, porque diferentemente dos hereges, acostumados a abandonar
a Igreja, o próprio dos seguidores do modernismo é permanecer dentro dela, pois
o modernista considera ser sua missão reformá-la de acordo com seu próprio
pensamento.
Assim,
por exemplo, o modernista em sua concepção dialética concebe – como tese e
antítese – a coexistência de uma igreja institucional e outra carismática, a
primeira tradicional e a segunda progressista, de cujo enfrentamento surge o avanço;
naturalmente em dita concepção o modernista é o representante dos carismas e do
progressismo. Por isso é que para eles não só não seria compatível, como
inclusive necessário realizar uma crítica aos alicerces mesmos da Igreja e ao
mesmo tempo conservar-se em seu seio. Por isso a estratégia modernista para
evitar uma excomunhão é não utilizar
enfrentamentos diretos, nem fazer afirmações taxativas, ou esconder sua
personalidade assinando suas publicações com pseudônimos, como o de Hilaire
Bourdon que foi o utilizado por Tyrrel. Como estrategista, ninguém tão
habilidoso como Buonaiuti que as manipulou para manter-se dentro da Igreja até
1926, apesar de excomungado em duas ocasiões nos anos 1921 e 24.
Os
modernistas não articularam um corpo orgânico doutrinal e preferiram seguir a
tática de expor suas ideias de um modo difuso, utilizando o recurso das meias
verdades. Tudo isso além de dificultar a atuação das autoridades eclesiásticas
em conseguir estabelecer a divisória entre as publicações de conteúdo errôneo,
oferecia aos modernistas a possibilidade de não tomar conhecimento quando
chegasse a condenação. Apesar de tudo, a claridade e coerência de Pio X
(1903-1914) foi meridiana: a fé da Igreja não tem necessidade de adaptar-se a
nada, devido à plenitude dos tempos já ter se produzido com a revelação de Jesus Cristo, Deus feito homem. Partindo
desse princípio básico que salvaguardava o depósito legado por Cristo, Pio X
denunciou os objetivos dos modernistas mediante o decreto Lamentabili (3-VII-1907),
expôs de um modo organizado a doutrina do modernismo e a condenou na encíclica Pascendi
(8-IX-1907) e estabeleceu toda uma série de medidas disciplinares em vários
documentos, o mais importante dos quais foi o motu próprio Sacrorum
Antistitum (1-X-1910).
O
decreto Lamentabili condena 65 proposições modernistas, algumas das
quais são: a fé proposta pela Igreja contradiz a história; a Sagrada Escritura
não tem origem divina e deve ser interpretada como um documento humano; a
Ressurreição de Jesus não foi um
fato histórico, mas uma elaboração posterior da consciência cristã; os
sacramentos do Batismo e da Penitência não têm origem divina; não há verdade
imutável e esta evolui com o homem; a Igreja, por se aderir a verdades
imutáveis, não pode conciliar-se com o progresso. E concluía, literalmente, o
decreto com a 65ª proposição: O catolicismo atual não pode conciliar-se com
a verdadeira ciência se não se transforma em um cristianismo não dogmático,
isto é, em protestantismo amplo e liberal.
Na
encíclica Pascendi, além de indicar os remédios contra a crise
modernista, Pio X retrata três figuras: a do filósofo modernista, a do crente
modernista e a do teólogo modernista. O primeiro, por fundamentar suas ideias
no agnosticismo e reduzir-se ao fenomênico, acaba por afirmar o princípio de
imanência vital, segundo o qual Deus
é um produto da consciência que o sentimento de cada um engendra; deste modo a consciência religiosa, ou seja, o
“sentimento” religioso de cada um é erigido como autoridade suprema, acima –
por suposto – do magistério e da autoridade da Igreja. O segundo deve
limitar-se a elaborar em seu interior a experiência do divino, e por isso, as
crenças se identificam com as experiências
singulares. Ao último, dizia o Papa que, por partir do princípio de que Deus é imanente ao homem e que em
consequência a autoridade religiosa não é mais que a soma de todas as
experiências individuais, advoga que a autoridade eclesiástica deve reger-se
por critérios democráticos. Este radicalismo religioso, imanentista,
individualista e subjetivista dos modernistas, que esvaziava completamente de
sentido a Igreja, era condenado pelo Sumo Pontífice, por ser o modernismo –
segundo se lê na Pascendi – o conjunto de todas as heresias com
capacidade para destruir não só a religião católica, como qualquer sentido
religioso, devido os pressupostos do modernismo desembocarem, em definitivo, no
ateísmo.
Pois
bem, que Pio X fizesse um diagnóstico certeiro da doença que alquebrava a
Igreja de modo algum pode interpretar-se como que durante seu pontificado já se
pudesse dar alta ao paciente. Certamente que a estratégia dos primeiros
modernistas não foi muito eficaz para atrair um grande número de seguidores.
Propor que se devesse viver à margem do magistério e ser autônomo para que cada
um pudesse decidir as verdades de fé, que podiam ser mudadas para estar em
consonância com a ciência moderna, não teve suficiente impacto social a
princípios do século XX. Mas após décadas de letargia, que alguns interpretaram
equivocadamente como sua morte definitiva, despertaram os modernistas tendo um
êxito sem precedentes, após Paulo VI (1963-1978) publicar a Humanae vitae (25-VII-1968);
a partir daí sim que existiu e continua existindo muitos católicos partidários
de reivindicar sua autonomia, para que, à margem da moral da Igreja Católica,
cada um possa decidir o que está bem e o que está mal no leito conjugal. A
questão é que o depósito da fé e da
moral é indivisível e se começa-se a rejeitar a Humanae vitae acaba-se
por virar as costas a todo o magistério da Igreja.
Não
foi pouco o mérito de Pio X ao descobrir o tumor. Faltava aos sucessivos [Papas]
pôr os remédios para curá-lo e evitar a metástase, porque os modernistas não se
renderam ao longo do século XX, ao ponto de Paulo VI ter de reconhecer
publicamente a fumaça de Satanás metida dentro da Igreja. E nestas estamos,
esperançosos e pendentes de que a Mãe de Deus
e Nossa Mãe abra portas e janelas para ventilar nossos recintos e evitar que
nos asfixie a fumaça modernista de Satanás.
Madri, 28 de março de 2013, festa de Quinta-feira Santa
__________________
* Titular
de História Contemporânea da Universidade de Alcalá.
[1] Na tipologia persecutória ou
martirial: nos tipos de perseguição ou martírio dados aos
cristãos.
[2] Ao que podemos
acrescentar a do Islã na atualidade.
[3] A este propósito e para melhor entender alguns
termos utilizados com relação à revolução francesa ver: “Orlando Fedeli - Napoleão e a Revolução Francesa”,
em: <https://www.youtube.com/watch?v=BxQtBGKDapo&t=295s>. Acesso em:
21 dez. 2018.
[4] Sobre estes dois
últimos parágrafos, reflexo do momento presente, vale a pena conferir o: SEGUNDO SERMÃO: Das enganosas maneiras
que terá o perverso e maldito filho da perdição, o Anticristo
(RAVASI, Javier
Olivera. Sermões de São Vicente Ferrer: o Anticristo e o Juízo Final. Martyria, 2018. pp. 46-68).
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